08 dezembro, 2014

A demanda do bêbedo: exercícios de estatística acrobática para as escolas

Os rankings das escolas começaram por me deixar um pouco mais tranquilo, uma vez que provaram, de maneira que julgo irrefutável, que os funcionários do Ministério da Educação têm acesso a computadores e a máquinas de calcular. Depois dos episódios da colocação de professores, havia sobre o assunto um justificado ceticismo, que agora se dissipou. Julgo, contudo, que os referidos recursos informáticos teriam sido mais úteis ao país se os funcionários tivessem passado os últimos meses a jogar Angry Birds ou a ver vídeos de gatinhos no YouTube. Pelo menos teríamos alguns cidadãos descontraídos, em vez de milhares de pais enganados.

Os rankings, ou “ordenações”, não resultam da avaliação de coisa nenhuma, lançam luz sobre o que já estava iluminado e obscurecem aquilo que queriam dar a ver. O problema da aplicação de métodos quantitativos a questões sociais é muitas vezes este mesmo: medem-se as coisas que podem ser medidas, porque é fácil, e ignoram-se as coisas que precisam de ser medidas, porque é impossível, ou pouco prático. Somar as notas dos exames e fazer a média é exercício de crianças, mas ordenar escolas aplicando a algumas (privadas) este único critério e acrescentando à maioria (públicas) ponderações de quantificação mais ou menos impressionista é coisa mais arbitrária do que o peso de um arrátel na Idade Média (quantas décimas vale a média entre 7 pais operários fabris, 3 canalizadores e 8 escriturários?).

Produzem-se então umas tabelas giras, que agradam especialmente aos diretores de colégios privados, e cria-se a ilusão de que se ficou a saber alguma coisa que não se sabia anteriormente. Recorrer a estes critérios e às tabelas ordenadas que resultam da sua aplicação é fazer como o bêbedo que procurava as chaves de casa debaixo do candeeiro da rua, porque tinha mais luz, em vez de ir à procura delas no sítio onde as perdera. A analogia entre a demanda do ébrio cidadão e os erros produzidos por uma investigação pouco avisada é bastante velha e o ministro Nuno Crato, que parece geralmente sóbrio, percebe-a pelo menos 100 vezes melhor do que eu (mas admito a imprecisão da minha matemática).

Comparar resultados de uma escola privada, que leva a exame 100 alunos selecionados, com os de uma escola pública que leva 500 que ninguém escolheu (alguns dos quais nem sequer frequentaram a dita) é, no mínimo, enganador quanto à qualidade dos estabelecimentos. Assim, os rankings das escolas parecem apenas mais uma modalidade do desporto radical que muitos políticos praticam: a estatística acrobática. Há alguns que dominam perfeitamente o mortal à retaguarda com pirueta e outros que apenas se espalham ao comprido e ficam convencidos de que caíram em pé. Mas não faz grande mal, porque há sempre bastantes eleitores que se deixam enganar e até uns quantos que gostam de ser enganados.  


O senhor ministro acha fundamental que os pais tenham informação sobre as escolas nas quais poderiam inscrever os filhos. Eu também acho, mas a informação que ele disponibiliza só seria útil se estivessem reunidas duas condições. Primeira: que as “ordenações” fossem mais do que a mistura de um conjunto de médias aritméticas obtidas de maneiras diferentes (comparar a média dos nabos com a média das abóboras resulta numa sopa turva). Segunda: que fosse possível ir comprar a escola ao supermercado mais próximo, ou teletransportar as crianças todos os dias para qualquer escola do país.

E afinal, quando a medida se transforma na meta, deixa de ser uma boa medida. É quase inevitável, se a avaliação prevalece sobre o ensino e tende a discriminar arbitrariamente, que a pressão exercida sobre as escolas para melhorarem a sua posição nas tabelas leve à manipulação, ainda que benigna e bem-intencionada, dos fatores que contribuem para a formação das médias. A doce ilusão de rigor que os números facilmente produzem serve assim, pelo menos, para embalar o sono dos inocentes e para dar mais uma inocente facadinha no sistema público de ensino. Quem ganha com estas contas? E quem conta mais para quem tais histórias conta?

24 novembro, 2014

Neptuno, corrupções e teorias imperfeitas

A corrupção pode encontrar-se como se descobre um planeta invisível. A irregularidade detetada na trajetória orbital de Urano só parecia explicável pela força gravitacional de uma grande massa próxima. Urbain Le Verrier calculou um planeta. O “seu planeta” foi depois avistado por Gottfried Galle, que apontou um telescópio na direção que as tabelas astrais de Le Verrier indicavam. Viria a chamar-se Neptuno. Ninguém antes o tinha visto, mas tinha que estar lá, caso contrário a órbita de Urano não seria explicável segundo as leis de Newton. A riqueza inexplicável de certos cidadãos também faz suspeitar de muita massa em órbita próxima. Falta depois um telescópio que a vislumbre e comprove a gravidade da relação.

A analogia entre a descoberta de Le Verrier e os modos de descobrir a corrupção foi feita por Proust, mas não foi lá que eu a encontrei referida esta semana. Também não foi nos jornais e televisões, ocupados com os escândalos de corrupção do momento, que ameaçam desacreditar de vez o sistema político, mas não vão alterar o que sabemos sobre o sistema solar.
Amedee Charles Henri de Noe (Cham): Caricatura da descoberta de Neptuno, em 'Le Charivari', 1-Jan-1847
Tropecei na analogia, hoje mesmo, no livro de um português do qual não temos que nos envergonhar, o astrofísico Pedro Ferreira, professor da Universidade de Oxford. O seu livro The Perfect Theory, publicado em Portugal pela Presença (o título português transforma o artigo do título em indefinido, Uma Teoria Perfeita), esteve entre os seis finalistas do prémio anual da Royal Society para livros sobre ciência (o Royal Society Winton Prize for Science Books). É uma espécie de “biografia” da Teoria da Relatividade Geral, desde Einstein até aos nossos dias, e é tanto sobre as ideias, como sobre as pessoas que as pensaram: humanas, falíveis e geniais. (Que os leigos não temam, porque não há fórmulas matemáticas para decifrar). 

Falo disto apenas porque são estas histórias que a um tempo me distraem e me tornam mais evidente a vil tristeza que povoa o espaço em volta. Não apenas os escândalos de corrupção com certos vistos e ex-primeiros-ministros, mas as vistas curtas e os interesses ocultos dos que podem mudar ou influenciar a política em geral, e a política de educação e ciência em particular.

Os crânios fertilizados pela monocultura dominante reproduzem em mau português e em pior filosofia a ideia, que acham óbvia, da necessidade de ligação das universidades ao mundo empresarial. Acham eles e elas (foi uma Chica qualquer, deputada esperta, que li por estes dias), que as universidades devem ensinar em função de uma certa procura. Ora, uma universidade que responda exclusivamente a clientes não educa nem cultiva, forma. Forma técnicos. Não é a mesma coisa.  

Esta lógica de mercado imediatista teria inviabilizado Einstein e toda a Física Teórica, desde Isaac Newton a Pedro Ferreira, para não falar do ensino das humanidades e das ciências sociais, com exceção, claro está, da economia das escolas que professam a doutrina vigente e fornecem os técnicos de que o sistema carece para se autojustificar e se ir sustentando. É uma forma de corrupção do ensino e da investigação, que não deveriam ter que ser apenas “aplicados”, deveriam antes procurar saber. A universidade portuguesa pensada pelos “mercadistas” (que o neologismo me seja perdoado) poderia até formar técnicos que fabricassem um telescópio, mas dificilmente daria alguém que encontrasse Neptuno.    

09 novembro, 2014

Tragicomédia com pratos voadores

Há uma enorme tensão dramática num diálogo entre alienados com armas na mão. A tensão é quase sempre sustentada pela ameaça iminente de um desfecho trágico. Nos filmes ou no teatro, esse dramatismo faz parte do prazer que o espetador procura. Na vida real, porém, talvez só alguma perversão explique por que vejo tantas vezes o canal parlamento. 


As cenas de teatro que este canal oferece são bastante repetitivas, mas nem por isso menos assustadoras. Um destes dias, por exemplo, atiravam-se entre as várias bancadas alguns números do orçamento para 2015 – o aumento do IMI, a fiscalidade dita verde, a suposta impossibilidade de baixar o IRS – e vários deputados dos partidos que se acostumaram a governar comportavam-se como se brincassem na praia com preciosos pratos de porcelana chinesa pensando que fossem frisbees. Talvez os pratos, que são a vida de todos nós, e para muitos já são apenas cacos, devessem merecer um pouco mais de cuidado. As erráticas trajetórias dos pratos voadores, nestas discussões, provocam-me sempre uma valente dor de cabeça. Às vezes chega a ser uma espécie de violenta enxaqueca. 


Mas se fechar bem os olhos, espetar um indicador em cada ouvido e esperar 20 ou 30 anos, talvez isto passe. Estou a contar com uma esperança de vida que não subtraia muito dinheiro à segurança social com o pagamento da minha reforma (meramente hipotética, ou até mirífica, eu sei), porque o meu principal papel, enquanto cidadão responsável de um país em permanente estado de carência, é garantir o desafogo orçamental suficiente para que os governos competentemente distribuam os proveitos de uma fiscalidade justa por quem realmente merece e precisa. E são muitos os que aparentemente precisam: cônjuges, filhos, sobrinhos, afilhados, amigos, compadres, correligionários, clientes e respetivas empresas de sucesso; bem como gente bem colocada para beneficiar cônjuges, filhos, sobrinhos, afilhados, amigos, compadres, correligionários, clientes e respetivas empresas de sucesso.

Como isto é tudo gente de bem, com famílias numerosas e amigos que também se reproduzem com alguma desenvoltura, não se pode sequer dizer que os beneficiários da governamental munificência sejam uma minoria negligenciável, nem que os seus interesses não devam merecer o nosso abnegado sacrifício. Espera-se de nós – deficitários na fina astúcia de ser amigos, familiares, correligionários, clientes, ou empreendedores especializados na arte de estabelecer relações nos círculos certos, ou em outras figuras da geometria política partidária privatizada (PPP) – que compreendamos o défice das contas públicas, o problema da dívida externa, o fundo de apoio à banca e o fundo de resolução do BES, funções quadráticas, antimatéria, as profecias do Bandarra e a importância dos brócolos numa dieta saudável. Será pedir muito?


Desconfio que foi o Bandarra quem profetizou este grande império de espíritos tansos e que foram os brócolos que obrigaram milhares de portugueses mais fraquinhos, e menos espirituosos, à emigração. Eu até gosto de brócolos e também gostaria de mudar de estado, mas por este andar, só se for para o estado gasoso. O que não seria improvável se eu fosse um banco. Afinal, conhecemos vários casos de bancos que num dia eram sólidos e no dia seguinte passaram diretamente a gasosos, perdendo aquela parte importante entre os dois estados que é a liquidez, num fenómeno de verdadeira sublimação. 


As cenas do teatro parlamentar não aspiram a nada de sublime. Os atores são quase todos toscos, sejam eles figurões ou figurantes, e muitos são apenas parte do trágico coro canino que dobra a cerviz perante a sombra do dono. O que eles representam percebe-se. Quem eles deviam representar demora a perceber.

29 outubro, 2014

Uma conspiração de asnos


O professor mais desejado do mundo, colocado em 104 escolas sem ser já candidato a nenhuma, deveria também ser candidato ao Livro Guinness de Recordes, mesmo contra a sua vontade e vencendo a distância insular do estabelecimento de ensino que se antecipou aos rigorosos métodos continentais de colocação de docentes. Sempre seria mais original do que as habituais entradas portuguesas no prestigiado repositório das ideias mais parvas e imbatível tomo do conhecimento inútil. Quase sempre, as candidaturas portuguesas consistem em cozinhar algo estupidamente grande: a maior caldeirada de peixe, a maior feijoada, a maior empada de atum de lata, o maior arroz de atilhos… e assim por diante, até ao empanturramento final.

Se não quiserem desviar-se excessivamente do motivo gastronómico, podem sempre dizer que se trata da maior “salsicha educativa” do mundo, medida ao vivo nas televisões pelo próprio primeiro-ministro. Ninguém percebeu ainda o que seria a dita salsicha, nem qual a receita que o chefe de governo teria em mente, mas existem fundadas suspeitas de que alguém terá mesmo tentado cozinhar coisa bastante insólita: fosse um ministro em lume brando, ou a escola pública em banho-maria, fosse um secretário de estado flambé ou um diretor geral confitado. Na mais conservadora das teorias da conspiração que por aí circulam, fontes geralmente sóbrias afiançam como muito provável que um agente infiltrado, ao serviço de interesses obscuros, terá concebido um churrasco informático de dantescas proporções para atingir um qualquer objetivo.

O suposto objetivo parece tão vago, ou tão absurdamente incoerente, como a política de educação do ainda ministro Crato e há até quem sugira que são parte da mesma coisa, o que já me parece francamente confuso. Confuso, mas não mais improvável do que a incompetência épica de alguém que não consegue subtrair o nome de um professor de uma lista. Um professor entre muitos, porque houve bastantes competidores involuntários a este recorde da asneira.

Como nenhum dos cozinheiros deste pantagruélico deboche dá um passo em frente e admite a sua incompetência para as funções que desempenha, resta-nos concluir que se trata de uma culpa coletiva e que o ministério da educação está entregue a uma confederação de asnos.      

19 outubro, 2014

As aventuras do capitão Grancho

As chamadas ironias do destino podem ter vários sabores. Por vezes são fantasticamente doces. Deve ter sido isso o que sentiram muitos professores quando tomaram conhecimento da demissão do secretário de estado Grancho, sabendo dos verdadeiros “motivos de ordem pessoal” que a motivaram. 

Os vagos e formulaicos “motivos de ordem pessoal” servem geralmente para ocultar qualquer coisa. É como quem diz: “não têm nada a ver com isso”. Só que, neste caso, já toda a gente sabia que João fora expulso da sala por ter sido apanhado a copiar os trabalhos de outros meninos. A ironia da coisa é tão perfeita que parece inventada, uma vez que foi este o secretário de Estado responsável pela prova de avaliação dos professores, elemento central de uma política que tem a “exigência” como norte. Um plágio manhoso como aquele que perpetrou parece demasiado bom para ser verdade. 
   
A única “razão pessoal” compreensível para a demissão do dr. Grancho seria um sentimento de vergonha, mas isso não parece possível vindo de alguém que teve a pouquíssima vergonha de ir pregar sobre a “dimensão moral do professor” cometendo no ato a fraude académica mais rasteira e preguiçosa, que consiste na pura e simples reprodução, ipsis verbis, pontuação incluída, de grandes nacos de prosa que outros haviam transpirado, ainda por cima tendo a distintíssima cara de pau de publicar e assinar o servicinho, sem nunca revelar sombra nem penumbra dos verdadeiros autores.

Se Grancho estudou liderança no seu mestrado de administração escolar, deve saber que não há melhor liderança do que a do exemplo. Na nau da educação cujo comando lhe entregaram (seguramente por mérito demonstrado em currículo académico e profissional sólido e sério), mestre João decidiu ser capitão Grancho.


Dustin Hoffman como Capitão Gancho
Num país cuja sociedade entendesse a seriedade da fraude de plágio, o senhor não teria apenas a sua carreira política e reputação académica arruinadas, poderia também sofrer sanções, inclusivamente penais. Mas agora esperem só para ver o castigo que espera este probo e profundo estudioso da autonomia escolar. Aceitam-se apostas.

Sigam o capitão Grancho. Em terra de cegos, piratas são reis.

11 outubro, 2014

Manual de esclarificação

Um professor é colocado em 75 escolas simultanemente (não é gralha, nem hipérbole, vinha no jornal). Pequenino problema. Mas como, estupidamente, a lei não permite a acumulação dos 75 postos de trabalho (privilégio reservado a geniais admistradores de empresas e a imparciais deputados juristas) e o docente também não invocou o direito ao uso do dom da ubiquidade (por coincidência, um direito apenas reconhecido a geniais administradores de empresas e a imparciais deputados juristas), apenas uma vaga ficará preenchida. Ficaria, porque aparentemente o dito professor já desistira do concurso, tendo mais do que uma vez informado a tutela, por ter encontrado emprego numa das ilhas atlânticas.

Pequeno problema? Nem por isso. Escolas e alunos terão simplesmente que aguardar por novo “procedimento concursal”, que usará seguramente as regras do anterior e deverá, portanto, permitir um “normal arranque do ano letivo”, após decreto governamental a declarar que o ano letivo, oficialmente, não começa antes da Páscoa de 2015 (ou 2016, porque um ano é apenas de 1,25% do tempo de vida de alguém que chegue aos 80 e, portanto, tem pouco significado).

Estes soluços de setembro/outubro foram a melhor coisa que poderia ter acontecido aos alunos das escolas bafejadas com os efeitos da implosão programada do ministério. Finalmente regressou a exigência do ensino há tantas décadas perdida e as crianças vão poder adquirir de novo as competências essenciais à sobrevivência numa sociedade ferozmente competitiva (principalmente se a competição for por subsídios do Fundo Social Europeu destinados a tecnotretas ou ONGs espertinhas): como evitar um murro nos queixos; como pregar uma rasteira ao puto dos óculos; como rematar uma bola contra as janelas da sala de professores; como pular o muro da escola para ir charrar na esquina do McDonald's; como forjar a assinatura do encarregado de educação; como escrever uma cábula nas coxas para os testes mesmo difíceis; como ensinar a mãe a parecer adolescente outra vez para ir fazer os exames nacionais com o BI da filha. Enfim, apenas alguns exemplos do currículo quase infinito deste curso nuclear da verdadeira escola que o ministério, sábia e corajosamente, mas perante a incompreensão quase generalizada, em boa hora decidiu pôr em prática.  
   
Já antes disto, o ministro felizmente matemático, cujo ministério criara uma fórmula de cálculo para ordenação de professores que somava os resultados da primeira liga de futebol com resmas de fraldas descartáveis e dividia por dois, parecera ligeiramente surpreendido com o facto de os resultados serem um nadinha absurdos. Igualmente apanhado à traição pelo facto de ter havido casos de dois professores colocados numa única vaga, o ministro felizmente versado na morfologia e semântica do idioma materno, apareceu contrito e, como penitência, desatou a conjugar o verbo manter, procurando manter a compostura.

Depois de tudo devidamente “esclarificado”, o ministério procederá às compensações devidas aos professores afetados. Segundo fonte próxima do ministro (ou segundo um residente em Fonte Boa dos Nabos, no concelho de Mafra, que também é relativamente próximo), o ministério prepara-se para oferecer uma caravana com lugar para quatro pessoas a todos os professores em “mobilidade” que andem a caminho das escolas onde podem, poderão, ou poderiam ficar colocados. Os ditos atrelados serão ainda equipados com computador portátil e ligação móvel à internet, por forma a permitir que os docentes sujeitos aos “procedimentos concursais” à la minuta estejam permanentemente ligados às plataformas do sítio do ministério e, mediante uma divisão de trabalho por turnos com o cônjuge desempregado e um ou dois filhos em idade escolar (e sem professor nas escolas respetivas), possam preencher os formulários e aceitar colocações.

Professora em mobilidade vintage

Este regime facilitado de itinerância resolve vários problemas de uma vez só (a começar pelos da empresa fornecedora das caravanas, que se encontrava em processo de insolvência) mas principalmente o problema de habitação dos professores que habitualmente se viam obrigados e arrendar quartos ou apartamentos, pagando as respetivas cauções, após aceitarem horários numa escola da qual poderiam ser despedidos 48 horas depois, não obstante garantias de que lá ficariam, apesar de não haver para eles horário nenhum. Dividir turmas de 30 alunos em duas estaria fora de cogitação, uma vez que violaria uma média aritmética gira e conduziria inevitavelmente à obesidade do corpo docente por falta de exercício dos membros inferiores e das cordas vocais. Além disso, com turmas de 15 alunos corria-se o risco de poder mesmo dar aulas práticas de línguas ou de ciências, o que era capaz de desgastar desnecessariamente o material e é contrário às melhores práticas dos liceus nacionais das décadas em que vivem os nossos visionários caranguejos.

Engraçado mesmo é que não ouvi piar muitos dos passarinhos que no ano passado cairam dos seus poleiros morais em voo picado sobre os professores em greve que tanto mal faziam às criancinhas inocentes.   

08 outubro, 2014

Tsundoku: caos, acaso e complexidade


O meu escritório é muito dado à ocorrência de um fenómeno que, aparentemente, só os japoneses nomearam. Chama-se tsundoku. Se tsunami, palavra igualmente japonesa mas já universalizada, designa um fenómeno natural de consequências geralmente catastróficas, tsundoku designa um fenómeno, digamos, cultural, que consiste na acumulação mais ou menos desordenada – em pilhas, pirâmides ou torres de pisa – de livros que se adquiriram e continuam ainda por ler (o “ainda” é uma manifestação de obstinada resistência da minha parte ao derrotismo que os mais espessos volumes ou impenetráveis temas e autores podem induzir).

Pode haver quem, um pouco levianamente, chame “caos” a esta simples falta de arrumação. Mas é uma aceção fraca da palavra caos. Neste sentido corrente e desvalorizado, caos é uma coisa má e que se resolve de maneira simples: ou se tira uma semana de férias e se arruma tudo alfabética e tematicamente nas prateleiras (se ainda houver nelas espaço para estes novos refugiados da guerra do indivíduo contra a finitude do tempo), ou se chama a D. Adosinda para lhe chegar um fósforo e acender um biblioclasmo privado, assim consumindo, numa estúpida solução final, qualquer ideia que me pudesse amanhecer no entreabrir de uma negligenciada janela impressa. A simplicidade da solução ignora a maravilhosa complexidade do problema.

“Complexidade” é outro termo, aliás parente científico do conceito de caos (e que as pessoas usam também de uma maneira que pouco ou nada quer dizer) que explica melhor as propriedades emergentes de uma pilha de livros na sua potencial interação com uns neurónios acesos. Na aceção que significa alguma coisa de jeito, “complexo” não quer dizer complicado, nem difícil, nem simplesmente designa um sistema com muitos elementos. No sentido corrente – o sentido simples de complexidade, um quase paradoxo engraçado – para perceber um problema basta dividi-lo nas partes que o constituem, analisar cada uma delas e juntá-las todas outra vez. Chama-se a esse método “reducionismo” e o seu sucesso pressupõe que o todo seja igual à soma das partes. O motor de um automóvel é um bom exemplo destes sistemas simples, redutíveis à soma das partes (o que não quer dizer que não seja impenetrável para pessoas como eu).

Muita ciência opera, com assinalável sucesso, segundo esse princípio metodológico. Mas num sistema realmente complexo, que também é designado como dinâmico e adaptativo – o que quer dizer que muda pelo facto de ser “composto de mudança”, sem que agente algum controle o sentido dessa mesma mudança – o todo não é igual à soma das partes. Ou seja, não é possível, em rigor, prever o resultado das carambolas de bilhar dos muitos elementos que o compõem. Imaginem uma mesa de bilhar com 20 bolas em movimento e pensem o que seria calcular a trajetória de cada uma delas ao longo de uma simples meia dúzia de choques. Não é muito difícil, é bem mais parecido com “muito impossível”.

As propriedades destes sistemas dizem-se “emergentes” porque são o resultado das “iterações” dos mesmos pela “interação” das partes que os compõem e são algo que não existia anteriormente. A rede complexa de nódulos e ligações atualiza-se e transforma-se a cada instante (as células de um organismo, por exemplo), numa espécie de imponderabilidade quântica em que tudo é probabilístico, mas o grau provável de confiança em qualquer previsão pode ser como jogar numa fantástica lotaria.

A cada instante, ainda que impercetivelmente, um sistema complexo é, portanto, uma coisa nova, aparentada com o seu estado anterior – como a nossa cara pela manhã se parece geralmente com a cara da véspera, salvo qualquer erupção cutânea ou ressaca violenta – mas já irreversivelmente outra. Por isso as ideias de que a história se repete, ou de que o país não muda, são por vezes perigosas literalizações de simples figuras de estilo. É certo que tem graça identificar o parentesco entre o comendador Acácio e uns quantos traseiros parlamentarmente assentados, mas convém não esquecer que até as moscas e as suas preferências gastronómicas evoluem por seleção natural.

Os sistemas complexos/dinâmicos/adaptativos são uma das fronteiras da ciência moderna. Quando se diz que os meteorologistas se enganam muito, ou que os arquitetos urbanistas de hoje são piores do que os romanos, ou que os psicólogos e sociólogos não servem para nada, é porque não se percebe que os problemas que estes enfrentam são desta espécie de complexidade (desconfio que alguns deles também não percebem, mas isso é outro problema). Quem não conviva prudentemente com o grau de incerteza próprio de sistemas biológicos, sociais e ecológicos (três caixinhas chinesas a contar de baixo), está mais ou menos condenado a pensar como o dr. Marinho e Pinto, economistas das Neves e analistas Lourenços, ou os ouriços-cacheiros de Isaiah Berlin (pensadores de uma única ideia à qual reduzem, ou reconduzem, todo o universo e arredores). 

O que me traz de volta ao fascinante tsundoku que me rodeia. Neste meu pequeno sistema complexo, em que livros se encontram por aparente acidente, nunca se sabe bem o livro que se segue. Não sei o livro que vou ler a seguir; não sei se a seguir vou ler mais do que um livro; não sei sequer se a seguir me apetece ler qualquer destes livros (o carteiro continua a entregar encomendas e as livrarias ainda não fecharam); não sei o que algum destes livros poderá mudar na arrumação do meu sótão de neurónios e sinapses… Só sei que não vou arrumar nada hoje. E isso é bom.

08 agosto, 2014

O verão é BEStial


Para quem só veja telejornais, até pode parecer que as vozes que comentam a solução do BEStial problema se dividem de acordo com as muito previsíveis trincheiras de situação e oposição, o que torna também previsível que os simpatizantes do governo digam “sim senhor” e os outros redigam “senhor não”. Mas as dúvidas quanto às garantias de defesa do contribuinte aparecem de toda a parte, e não vêm de perigosos comunistas, nem de céticos impenitentes, nem de portugueses que são suspeitos de malandragem ou ideológicas perversões apenas por serem portugueses escaldados e não filiados.

Só por exemplo, caiu-me na caixa de correio o post de um blogue, cujo título em português poderia ser “Como saquear um país, à maneira do Espírito Santo”, de uma certa Frances Coppola (eu sei o que o nome lembra, mas o Padrinho, por cá, tem outro sal). Traduzo uma parte do texto sobre o dinheiro do Fundo de Resolução que o estado vai emprestar, os 4,4 ou 3,9 mil milhões extraídos dos fundos da troika reservados para recapitalização dos bancos: [O dinheiro] pode estar reservado para esse fim, mas continua a ser dívida pública. A não ser que possa ser refinanciado com dinheiro do setor privado MUITO rapidamente, a declaração do Banco de Portugal de que capitalizar o novo banco “não terá qualquer custo para o erário público, [nem para os contribuintes]” não é remotamente realista.

O dinheiro deste fundo é em grande parte público por várias razões, que não vêm ao caso, mas principalmente porque quando o risco de espinhas é mesmo, mesmo sério, os privados génios da gestão e da finança esperam sempre até que o robalinho esteja escalado. Os contribuintes, por sua vez, seguram o coração nas mãos, porque nos bolsos já pouco há para segurar, e esperam o pior de quem já tantas vezes lhes assegurou que estava tudo bem na banca. Agora, com este novo banco, que não passa de um banco de urgência, os principais financiadores do estado temem naturalmente que lhes venham dizer como poderão involuntariamente contribuir (mais uma vez) para salvar a pátria que outros esmifram.

Eu não faço ideia nenhuma se o “fundo de resolução” pode resolver alguma coisa, ou apenas ajudar a dissolver o que a enxurrada ainda não levou, porque não faço fé nas previsões de financeiros, nem de políticos, independentemente da doutrina económica que professem. E não por rabugice, ou embirração, mas apenas por semialfabetizada cautela quanto à ciência possível de sistemas complexos e, vá lá, admito, porque já ouvi muitos destes indivíduos dizer tantas asneiras e aldrabices com olhinhos cândidos ou poses de doutor, que não me sinto inclinado a deixar-me de cautelas, nem de caldos de galinha.

Considerando que todos os erros e desastres são no fim explicados com aquilo que “na altura” não se podia adivinhar, como agora aconteceu e sempre tem acontecido para justificar medidas de emergência de todos os tamanhos e feitios, que descanso estival nos podem garantir as garantias que agora nos dão?

Quem disse que neste verão o país não arde? 

23 junho, 2014

A atenção é um bicho com asas

Jimmy Giuffre, saxofonista, clarinetista, flautista, arranjador e compositor de jazz, escreveu e tocou música para pessoas, pássaros, borboletas e mosquitos. Há hoje quem ache que as primeiras, na altura, não lhe prestaram suficiente atenção.

Mas esta não é a história de Jimmy Giuffre, nem um ensaio sobre génios mais ou menos ignorados. Não é sequer a história da menina que perdeu a boneca porque se distraiu a olhar para o gato que se atirou da janela atrás de um pássaro que voou atrás do mosquito que era afinal a flauta tocada por Jimmy Giuffre. Estas frases eram apenas uma maneira de chamar a atenção. De chamar a atenção de pessoas, já que não sei tocar instrumento que possa prender à terra criaturas que facilmente dão à asa.  

“O Pintassilgo” de Carel Fabritius (1654)
A atenção é um recurso escasso. Na economia do tempo das nossas vidas, é talvez o menos abundante dos recursos. É pela nossa atenção que lutam publicitários e políticos, por exemplo, quando apontam, de modo mais ou menos subtil, a ranhura onde esperam a inserção do nosso cartão de débito ou o crédito do nosso voto. Todos os que acham que têm algo para dizer querem a nossa atenção, evidentemente. Todos os que gostam de nós esperam a nossa atenção, naturalmente. E há ainda os que apenas querem a atenção de quem quer que seja, mesmo que não tenham nada para oferecer em troca: um dedo de talento, amor algum, beleza bastante, saber que sirva.

Obviamente, não há atenção que chegue para tudo, nem para todos. A procura excede muito claramente a oferta. Sendo recurso tão escasso, a atenção é um bem precioso. Não sendo metal ou mineral, vale a sua ausência de peso em ouro. Mas há diferenças importantes entre atenção e quaisquer recursos transacionáveis. A primeira não pertence ao governo ou ao patrão, que dela não podem dispor como provavelmente gostariam – cortando, plafonando, taxando ou confiscando. Esta diferença interessa-me. Significa que, quer o tempo que tenhamos seja curto ou longo, aquilo a que damos atenção é da nossa exclusiva e indeclinável responsabilidade. Sobretudo para aqueles que vivem com muito pouco, ou com pouco mais do que o bastante para manter a cabeça colada aos ombros e o estômago descolado das costas, não existe mais poderoso capital. No entanto, são estes também os infelizes que, geralmente escravos de labores puramente alimentares, menos liberdade têm para escolher aquilo a que gostariam de dedicar a sua atenção.

Outra diferença entre atenção e bens apropriáveis, e talvez a mais importante, é que a atenção não se pode comprar. Pelo menos na nossa língua, os verbos que lhe servem de predicado não sugerem comércio. Dizemos “dar atenção”; dizemos “prestar atenção”; dizemos “chamar a atenção” e “desviar as atenções”. Em inglês diz-se “pay attention!”, mas na verdade não é a atenção que se paga, paga-se dando atenção, o que é sinal de boas maneiras. Pode pagar-se o tempo de alguém que se emprega para que se dedique a uma tarefa, mas o que é remunerado é o tempo nela despendido e/ou o produto do trabalho, não aquilo que durante a execução da tarefa possa ter ocupado a mente e os sentidos do executante. Ao coser um sapato, o sapateiro pode muito bem ganhar asas nos pés, como certo deus grego; sapatear uma valsa em tempo de swing, como Fred Astaire, ou encher de calçado o traseiro do seu ódio de estimação, como qualquer de nós faz quando sonha acordado.    

Mas é aqui que a proverbial fêmea do mamífero bunodonte, artiodáctilo, não ruminante e doméstico torce o rabo. Uma vez que tanta coisa é feita para atrair atenções, toda a prudência é pouca na maneira de as distribuir. Se há muito quem esbanje dinheiro, ou desaproveite aquilo que tem, mais são ainda os que malbaratam uma insanidade de horas entregando os sentidos a coisas que não fazem sentido nenhum, como se atenção sobrasse para atender a tudo e não houvesse sequelas associadas ao mau uso do tempo. O cérebro é que paga. Se muitos pensam cuidar suficientemente da saúde pelos particulares cuidados que dedicam à parte do corpo a sul do pescoço, já a matéria esponjosa alojada a norte absorve essencialmente fast-food mental, certamente porque é pré-cozinhado e de mais fácil digestão, mas também porque atrai mais atenções. Em português também se diz “prender a atenção”. Como se fosse um pássaro? O que nos prende pode ser o que nos perde.

Exemplos disto mesmo: o grosso da matéria publicada em jornais e revistas, e seus correlatos televisivos e radiofónicos, sob a designação de notícia, reportagem ou comentário, bem como muitas das obras ficcionais e programas de entretenimento que os meios de radiodifusão produzem e importam. Esta espécie de carne processada, feita de ideias acriticamente repetidas e de simplificações patetas, é por muita gente consumida em quantidades que impedem a normal circulação de estímulos elétricos entre os neurónios, os quais deveriam criar novas redes de ligações, assim aumentando a maravilhosa complexidade da máquina pensante e, quem sabe até, com sorte, gerar ideias novas.

Se todos tratassem da cabeça com os cuidados que já vão dedicando ao coração e ao estômago e não deixassem que as suas atenções fossem desviadas pelas conversas da treta que o mercado mediático tem que produzir constantemente, talvez procurando alimento mental de maior substância e uma maior variedade de estímulos sensoriais (como os que todas as artes proporcionam, por exemplo) talvez houvesse esperança de salvar, já não digo a pátria, mas a própria vida.   

O que ocupa a atenção também pode ser o que a liberta. A atenção é um bicho com asas. Como aqueles que Jimmy Giuffre tocou.

O pintassilgo de Donna Tartt, que ganhou o prémio Pulitzer desde ano, nas substanciais 800 páginas que prenderam já a atenção de muitos milhares de leitores. 

22 maio, 2014

Eurovisões

1
Para a maioria dos portugueses, não há muita diferença entre votar nas eleições para o Parlamento Europeu ou no Festival da Eurovisão. A grande diferença é que, num dos casos, a votação é precedida de música. Obviamente, refiro-me à campanha eleitoral.

2
Não sei quantas pessoas elogiaram a qualidade das listas dos maiores partidos. Devem ser listas de pijama, porque me dão muito sono.

3
Uma vez que perto de um terço dos eleitores sondados manifesta ainda a intenção de votar nos partidos que transformaram a caixa de aposentações numa caixa de esmolas e os funcionários públicos em vaquinhas leiteiras para dar de mamar a outros, o suicídio começa a parecer-me uma alternativa menos negra e uma carreira de bombista oferece um futuro mais promissor e um cinto menos apertado.

Curso do Instituto de Emprego e Formação Profissional

4
O candidato a Presidente da Comissão Europeia apoiado pelos partidos do governo acha que as pessoas são tão importantes como o feijão de lata Continente, o papel higiénico Renova, ou as loiças de Valadares. Ainda não cheira mal?    

5
Assis tem justificação para a pobreza do seu discurso europeu. É franciscano. Mas é o Rangel quem anda a comer como um passarinho e entrou em dieta rigorosa de ideias próprias (alguma vez teve?).  

08 maio, 2014

Enfiar a cachaça na veia: brevíssimo tratado sobre os perigos da erosão semântica

Já todos fizemos aquela experiência, um pouco infantil, que consiste em repetir a mesma palavra muitas vezes, até termos a sensação de que ela não faz sentido algum, de que não passa de um conjunto de sons arbitrariamente reunidos. Pois bem, se não é essa a sensação que os portugueses têm quando ouvem palavras e expressões como “ajustamento”, “despesa do estado”, “défice orçamental”, “crescimento”, “recessão”, “espiral recessiva”, “austeridade”, “regresso aos mercados”, “saída limpa”, “estado social”… Se não é essa a sensação que têm até quando ouvem dizer “esquerda” e “direita”, então é porque andam muito distraídos, ou podem estar a marchar, como regimento de soldados cegos, para a trincheira onde os conduza a voz da autoridade à qual escolheram obedecer. Pode até parecer que ali ao fundo há um jardim, mas é mais provável que exale um fedor de fim.


A repetição mecânica e preguiçosa de conceitos sujeita as palavras que os sustentam a um processo de erosão semântica que é tanto mais acelerado quanto maior é o número de pessoas que acefalamente as usam. Ao passarem de boca em boca, gastas pela saliva de políticos de aviário, porta-vozes oficiosos, comentadores incontinentes e cidadãos incautos, as palavras comportam-se como calhaus cujas arestas vão perdendo definição. A contundência da primeira pedrada, aquele momento original em que o vocábulo, à força de querer dizer qualquer coisa, poderia abrir uma janela onde ela antes não existia (ou, quem sabe, até uma cabeça), esse poder de operar na renitente espessura da realidade uma incisão que deixe penetrar alguma luz sobre a noite opaca da ignorância, dissipa-se progressivamente no rotundo de gordas frases e na moleza de arremessos verbais que tanto caem no banco, como na serradura, carpinteirando apitos para caçar patos. Até que, por fim, a rocha não passa de areia, que se atira aos olhos de quem não quer ver e suporta bem a reiteração de mentiras sobre maleitas e mezinhas. A familiaridade dos bordões pode dar algum conforto aos supersticiosos; os repetidos refrões podem até embalar os tolos, mas eu, enquanto música de fundo, aprecio pouco, e como sucedâneo de pensamento político, prefiro margarina sem sal. Escorrega melhor e não faz tanto mal. Se o absurdo não liberta (como diria Camus), pelo menos alivia (diria eu).

Mas se há palavras e expressões cujo uso frequente decorre de fatores estreitamente conjunturais, e que rapidamente voltarão à sua vidinha nas notas de rodapé e apêndices de relatórios e contas, sem que daí decorra prejuízo para o erário público ou para a saúde do corpo social, outras há que – submetidas à usura do expediente político e das mais piedosas intenções – quando esvaziadas de sentido, fazem esquecer a razão pela qual as pessoas se organizam em grupos e em estados e tornam a ideia de regressar ao estado natural para caçar o almoço e reduzir o número de concorrentes comensais um pouco menos repelente. Se o medo assalta as pessoas sob a forma de qualquer insegurança, a revolta é compreensível e a lei uma mula.

Se continuarem a dizer “desigualdade” e “pobreza” como se elas não fossem mais do que borbulhas irritantes no rosto da crise que passa, arriscam-se a não perceber que a doença é funda, vem de muito longe, se tem agravado nos últimos 30 anos e não se trata com cuidados paliativos. Não perceberam ainda que há uma “selva” em “capitalismo selvagem” e que segundo a “lei da selva” todos fazem parte da cadeia alimentar, mas a maioria acaba no sistema digestivo do predador mais forte?

Segundo Hobbes (que selvaticamente traduzo), o “estado natural”, caso não existisse uma comunidade política (uma sociedade organizada), “não deixaria lugar para produzir nada, porque os frutos da produção seriam incertos. Consequentemente, não valeria a pena cultivar a terra, nem navegar, nem haveria utilidade para as mercadorias importadas, nem construção de espaçosos edifícios, nem máquinas para transportar ou remover coisas pesadas, nem conhecimento do mundo, nem maneiras de medir o tempo, nem artes, nem letras, nem sociedade e, o pior de tudo, haveria medo constante e perigo de morte violenta, e a vida das pessoas seria solitária, embrutecida e curta.”

Se não há aqui nada reminiscente da abdicação voluntária de educação, saúde e justiça – oferecidas a todos em condições de real igualdade – camuflada pela erosão semântica da expressão “estado social” que estrategicamente penduraram nas falácias dos défices e das dívidas, é porque há muita gente interessada em “enfiar a cachaça na veia” (a expressão original, que o leitor já gastou também, metia avestruzes e areia e já não dava pedra).       

18 abril, 2014

Uma vida normal, ou o regresso da ovelha que não gosta de rebanhos

Este blogue mudou de nome. Não sei se agora será ainda a mesma coisa. O título original, “Crises e coisas feias”, conduzia os seus temas possíveis à viela estreita em que o país se deixou enfiar, ou no qual acordou encafuado por artes da quadrilha de contabilistas criativos e engenheiros da finança a quem entregou a pasta e o papel. Era um óbvio produto destes tempos difíceis e das erupções cutâneas que os fala-barato me provocam. Num certo sentido, acabava por padecer, por contágio e por contexto, de um dos males que queria diagnosticar: a redução da política a meros “ajustes de contas” – quer em sentido literal, quer figurado – e a redução do mundo e da vida à linguagem da gestão e dos mercados.

Governar, hoje, consiste quase exclusivamente em reduzir o défice (a qualquer preço) e fazer política não é mais do que o arremesso de projéteis avulsos ao telhado do vizinho. É pobrezinho. Na cabeça de demasiada gente, já não vivemos numa economia de mercado, mas numa “sociedade de mercado”, em que tudo se pode comprar e vender – desde os melões, às atenções – e em que tudo tem um preço, mas nada tem grande valor. Viver, assim, não é preciso.

O novo título do blogue, “A agenda do eremita”, sugere a liberdade que uma certa forma de solidão permite. Sem pertencer a nenhuma forma de organização coletiva (ser sócio do ACP não conta!), nem me sentindo especialmente atado por baraços profissionais (sinto-me, na minha corporação, um corpo estranho, ainda que essencialmente inerte), fico desobrigado de seguir o rebanho e dispensado de balir em uníssono na hora da ordenha. Esta ovelha não dá leite. E para o atual peditório já todos demos mais do que a conta. Só não demos os tiros que alguns mereceriam, se a revolução certa se pudesse fazer na rua.


LS Lowry: "Man Lying on a Wall", 1957

E há, certamente, uma revolução a fazer, mas é uma revolução de dar voltas à cabeça, exercício que provoca algumas vertigens. Hei de voltar a essas voltas um dia destes (se entretanto não mudar de ideias), mas a minha vida não é isto. É que, ao contrário do que os escritos anteriores poderiam sugerir, a economia e a política ocupam uma parte bastante pequenina dos meus dias. Aliás, uma das minhas estratégias de sobrevivência consiste mesmo em evitar noticiários, debates e entrevistas sobre o estado de sítio, não vá a coisa passar-me a peçonha e deixar-me a falar (e a pensar?) como os jornalistas da bolsa e dos negócios: “abrindo em baixa”, “em linha com outras praças”, “seguindo no vermelho” ou “encerrando em contra ciclo”. Ah! A pura poesia dos mercados… passados, futuros e derivados!

Este blogue estava a precisar que eu o deixasse ter uma “vida normal”, como todos os portugueses estão a precisar que os deixem ter uma vida normal. Numa vida normal e num país decente, cada um deveria poder dedicar-se à sua atividade cuidando apenas de fazer bem (e de, não podendo ou não sabendo amar, ao menos não fazer mal aos outros). Numa vida normal e num país tolerável, ninguém deveria estar entalado entre as angústias do Sudão e os impostos da Suécia. Numa vida normal e num país que não me desse urticária, eu não me ocuparia só de crises e de coisas feias por causa do bom e do bonito.

Por enquanto, ainda há quem se lembre da vida antes do eufemístico “ajustamento”: dos cortes que foram uma ceifa, da poda que foi um desbaste e do enxerto que foi de porrada. A nossa vida não é isto.

30 março, 2014

Armados e perigosos

Regresso hoje ao que mais me exaspera e deprime nas conversas diárias sobre a crise. Como tenho tentado dizer nestas páginas, de várias maneiras e com insucesso garantido (ver posts anteriores), há menos verdade nas ideias que determinam decisões políticas e económicas do que muitos, nas suas vãs filosofias, gostariam de acreditar, ou de fazer-nos acreditar. “Há mais coisas entre o céu e a terra, Horácio!” Há mais de mil maneiras de fazer bacalhau, mais do que uma maneira de esfolar o gato, e até, obviamente, várias maneiras de pagar uma dívida. É a política, estúpido!

E a política, além de ser “a arte do possível, do alcançável – a arte da segunda melhor escolha” (tradução aproximada das palavras de Bismarck) é necessariamente discurso e retórica, porque as palavras são as suas armas principais. A expressão “luta política” diz quase tudo sobre a herança belicosa dos confrontos verbais mais ou menos ritualizados a que hoje praticamente se resumem os debates parlamentares e os comícios e passeatas de fim de semana para consumo televisivo.



As palavras desta “luta” são muitas vezes armas sujas e de pontaria incerta, o que significa que têm incalculáveis danos colaterais. Quase sempre ocultam mais do que revelam e os bordões a que recorrem traem uma indigência intelectual perigosa, a prevalência inquietante de atávicos simplismos, ou ambas as coisas simultaneamente. As ideias da “culpa” da dívida e da sua “expiação”, mediante certos “sacrifícios”, por exemplo, que estão implícitas ou explícitas em muitos discursos pseudo-explicativos, são noções arquetípicas que caem bem ao puritanismo calvinista e ao masoquismo católico – ou ao casamento feliz dos dois na conjuntura atual – subjacentes até nas palavras dos mais laicos pensadores, mas ensinam coisa nenhuma sobre a natureza realmente complexa dos sarilhos em que estamos metidos. Causa não é sinónimo de culpa; dívida não é sinónimo de pecado e o “sacrifício” de pessoas inocentes no fogo do inferno do desemprego e da pobreza não devia ser solução aceitável.

Dava jeito aos pobres portugueses que os políticos deixassem de usar metáforas mortas e se libertassem dos seus amuletos verbais; que parassem de procurar, ou fingir que procuram, culpas e culpados (tirando os óbvios criminosos), e que tratassem de encontrar explicações válidas e verdadeiras soluções. O chumbo de dispersão verbal com que mutuamente se alvejam polui o ar que respiramos e deixa atrás uma nuvem negra que leva tempo a dissipar-se e não permite discernir na linha do horizonte saída “limpa” (lavada dos pecados?) para futuro algum.

Brandindo armas que usam mal, ou usam com segundas intenções, os políticos são perigosos e deveriam ser vigiados por quem os soubesse obrigar a morder a língua e a morrer do seu próprio veneno. Os vigilantes que hoje temos não servem, porque muitos jornalistas e comentadores não sabem, ou não querem, falar língua diferente e apenas ecoam as palavras que os políticos preferem que se ouçam.

O mundo muda todos os dias, mas nós estamos metidos numa camisa de forças políticas cujo discurso estagnado amortalha o país, que só não vai morrer porque é teimoso. 

08 março, 2014

O verdadeiro carnaval: entremez e desfile de um país emburrecido


Acordo num país mal ataviado, de barba por fazer
e a notícia da manhã traduz o que importa
numa língua morta.

As frases recitadas
que todas as noites nos embalam o sono
e nos tolhem os sonhos,
são uma missa entoada em latim vulgar,
não dão pra dançar.

Ouço cantar uma língua de contas
e de trapos
e vejo aos saltos coelhos e cartolas,
merkels e mercados,
bancos e bandidos,
e muitos passos
perdidos.

Desfilam sociedades secretas
e casas de segredos,
arranjinhos e arremedos,
piores emendas para maus sonetos
e muitos bichos caretos.

Entre um estômago meio cheio
e uma cabeça meio vazia,
olhamos como se esperássemos
um milagre de maria.

Mas diz que, não tarda, vamos ali ao mercado
e que é tudo fiado,
mas com juros baixinhos.
Pra comprar jaquinzinhos?

Diz que o país, se calhar,
vai crescer um cabelo.
E o tamanho do pelo
vai pagar o pão?

Diz que dívida assim
e o défice anão; 
diz que pouco salário
e menor pensão;
diz que quem fala do alto
é quem tem a razão,

mas o maior défice
é de imaginação.


24 fevereiro, 2014

Clube dos austríacos mortos

Sabem qual é a melhor maneira de governar o país? Eu não sei, mas quanto mais é o pouco que sei, mais me surpreende a segurança dos que presumem saber.

Quem conseguisse ouvir, de orelhas limpas, o que dizem políticos e comentadores, de todos os orientes ideológicos, deveria ficar confuso. Admitindo a possibilidade de alguém ser objetivo ao ponto de não deixar nenhum preconceito afetar o seu juízo, a variedade de soluções governativas incompatíveis que cobrem o céu e encobrem o sol conferiria a todos o direito à perplexidade e à ignorância. Contra lógica e razão, porém, há demasiada gente que parece nunca ter dúvidas quanto aos benefícios desta política, ou aos malefícios daqueloutra. 

Na verdade, só não fica toda a gente de olhos trocados perante discórdias e dislates, porque todos temos um filtro automático, que deixa facilmente penetrar no crânio aquilo que nos agrada e que rejeita, ou aceita com muita dificuldade, tudo o que ameace levantar o pó das ideias recebidas. É compreensível, mas é forte pena, porque significa que o nosso nível de exigência com programas políticos é demasiado baixo e se resume, em geral, a cair para o lado da cama em que dormimos melhor. No fundo, esperamos apenas que nos ofereçam o conforto das opiniões para as quais o contexto social que habitamos nos moldou e os nossos interesses nos empurram. Ninguém pense que é imune a este tipo de preconceito. Mudar de ideias, e sobretudo ser persuadido a mudar de ideias pelos argumentos de alguém que não nos seja próximo e estimado, é mais difícil do que mudar as pintas do leopardo.

Esta predisposição natural é o que explica convicções ideológicas que não passam daquilo a que me apetece chamar uma “doença mimética degenerativa”. Ou seja, tendemos a reproduzir inconscientemente, mas com crescente grau de imperfeição relativamente ao modelo original, coisas que no seu tempo não passaram de boas hipóteses explicativas para realidades outras, mas que continuamos a aceitar como se fossem os equivalentes políticos e económicos da lei da gravidade: coisas universais e imutáveis. Só que não pode haver duas leis da gravidade! Segundo as leis da física, as coisas caem todas na mesma direção e não é provável que se ouça alguém defender acaloradamente opinião contrária, a não ser, talvez, num manicómio.

Não sendo possível provar que todos os políticos, economistas e comentadores sejam loucos ou desonestos (não vale fazer piadas fáceis), conclui-se das suas divergências que, no conhecimento das sociedades e no governo das nações, as leis são menos evidentes do que nas ciências em que se podem fazer demonstrações experimentais e matemáticas. Nas ciências sociais, das três, uma: ou ainda não se encontrou uma lei da gravidade, ou a sua demonstração está por fazer, ou, simplesmente, ela não existe. Eu sei qual das três hipóteses me parece a mais provável, mas deixo que os leitores façam as suas próprias escolhas. 
           
Como não se espera que um político, muito menos um político que ocupa ou se candidata a um cargo executivo, exprima dúvidas e responda “não sei”, os países são governados com base em convicções que só podem ser, na melhor das hipóteses, “ideológicas” e, nos casos piores, a defesa de interesses instalados mais ou menos óbvios. Dando de barato a indecência desta segunda hipótese, é interessante saber como se formam as ideologias da primeira. De onde se retiram as certezas quanto à justeza (já não digo à “verdade”) do que se pensa? Como os políticos não são feitos de matéria diferente do resto dos humanos, na falta de conhecimento seguro, usam os mesmos filtros automáticos, lugares comuns e ideias “mimeticamente degeneradas” a que quase toda a gente recorre quotidianamente.

Os políticos que hoje estão em exercício, em Portugal e em muitos outros países, não revelam maior espessura intelectual do que um filete de cavala, e a linguagem que utilizam trai a origem das suas poucas ideias. Aqueles que agora nos governam pertencem, alguns sem o saberem, ao “clube dos austríacos mortos”, que continua a dominar o pensamento dos que acreditam que se descobriu uma fórmula político-económica para o melhor governo das sociedades apenas porque ficaram demonstrados o fracasso e os crimes dos regimes comunistas, mas em que o próprio conceito de sociedade é enfraquecido pelo individualismo que constitui o núcleo da doutrina. Na famosas palavras de Thatcher: “There is no such thing as society. There are individual men and women, and there are families.” (Não há sociedade. Há homens e mulheres individuais e há famílias.)

No livro Ill Fares the Land (2010), o historiador Tony Judt traçou sumariamente a descendência intelectual das ideias dominantes que desde a década de oitenta fizeram marcha atrás nas reformas sociais do período posterior à 2ª Guerra Mundial. Se a origem próxima da fé cega nas virtudes do mercado, mais ou menos desregulado, e do suposto imperativo de reduzir o papel do estado à insignificância, está nos chamados “rapazes de Chicago”, a doutrina destes é já uma degenerescência de ideias anteriores, nascidas num contexto político e social bem diferente daquele em que vivemos hoje.

F. A. Hayek e Ludwig von Mises.

Mas o problema não está nas ideias de Friedrich Hayek ou Ludwig von Mises, que inspiraram a doutrina do mercado livre da “Escola de Chicago”, nem na ideia de “destruição criativa” do capitalismo de Joseph Schumpeter, muito menos na “sociedade aberta” de Karl Popper, ou até nos métodos de gestão de Peter Drucker. A Áustria em que todos eles nasceram, viveram e da qual todos eles escaparam, entre o crepúsculo do império Austro-Húngaro e as convulsões políticas e económicas que se prolongaram até ao fim da Guerra Fria, sob a ameaça permanente e sucessiva de regimes opressivos e sanguinários movidos por ideologias arregimentadoras e coletivizantes, pode explicar em boa parte o seu excessivo individualismo e a resistência a conceitos e categorias que lhes recordassem tribulações passadas. Compreensível instinto, e uma defesa contra extremos indesejáveis, mas que exige contextualização e distância crítica, que nos protejam hoje de outros dogmatismos, receituários simplistas, ou “ideias mimeticamente degeneradas”.  

Traduzo aqui algumas palavras de Tony Judt:

“(…) quando recapitulamos os clichés convencionais sobre mercados livres e liberdades ocidentais, estamos de facto a fazer eco – como luz de uma estrela que empalidece – de um debate inspirado e ocorrido há setenta anos, entre homens na sua maioria nascidos em finais do século XIX. É verdade que os termos económicos em que somos levados a pensar hoje em dia não são geralmente associados a estas distantes divergências e experiências políticas. A maioria dos estudantes de pós-graduações em gestão nunca ouviram falar de alguns destes exóticos pensadores estrangeiros e não são encorajados a lê-los. E no entanto, sem um entendimento das origens austríacas da sua (e da nossa) maneira de pensar, é como se falássemos uma língua que não compreendemos inteiramente.”
E vamos continuar a falar. E a ouvir. E a não compreender muito bem aquilo que dizemos ou ouvimos. Mas nem por isso duvidando o suficiente. Duvidamos dos políticos e, no entanto, vamos caucionando as políticas. Só porque precisamos de acordar amanhã e de acreditar que é outro dia, mas sem sabermos bem o que nos dizem, ou o que aquilo que nos dizem quer dizer.     

Instantes

1   Diziam, pela calada agonia dos instantes que eram mudos.   Julgavam-nos pela constância infinita das lamentações pelo fôlego breve do pá...