12 setembro, 2016

Filhos de Pandora

Liverpool

A esperança, Aurora
é o último dos males.
Não abras por isso
o coração.



Deixa correr primeiro
uma cortina até que o sol
caia no mar, vamos antes
acabar esta garrafa.
A esperança há de ser
a última gota.



É difícil dizer já é tarde
demais, está tudo fechado
é para sempre feriado
as ruas ficam eternamente a cheirar
à noite passada.



Mas não cantes mais não digas
mais nada, é só o mundo
que acaba, não abras
por tão pouco a porta de casa.



Guarda-te de gente
como eu, habitual
e obrigada, que sonha
de costas deitada no chão
e acende a luz com medo
de acordar o cão.  



A esperança é a última
a sair da festa, leva num saco
de plástico os restos do jantar
para jantar sozinha amanhã
e depois



e depois, quando já nada mais
puder acabar
em nenhum lugar
Aurora
o dia recomeça.

11 agosto, 2016

Até o céu precisa de porteiro




O verão vai quente e o cérebro lento, pelo que até as notícias mais importantes podem levar algumas semanas a desbravar a curta distância entre os sentidos e a consciência. Eu até vejo, ouço e leio, mas abate-se-me sobre o crâneo tal canícula, percorre-me o corpo um torpor tal, que muitas das coisas que deveriam realmente interessar-me são levadas pela maré antes de o gelo da caipirinha derreter. Mas cedo ou tarde, ébrio ou sóbrio, vou-me dando conta das momentosas ocorrências que engordam os títulos dos jornais e agitam o estio dos portugueses. 

Só agora me amanheceu, por exemplo, a felicidade arenosa em que o país se rebola desde princípios de julho. De repente, parece que há portugueses a ganhar imensas coisas improváveis e eu nem tinha dado conta dos alvores do quinto império. Que faz bem à alma ver o mérito de alguém recompensado, não tenho dúvida. Então quando uma pessoa dedica uma vida inteira a aperfeiçoar qualidades, a aprofundar conhecimentos e atinge depois os cumes da fama e do proveito, ou simplesmente conquista o respeito daqueles que sabem apreciar o seu talento, temos direito a ficar um bocadinho mais felizes e a sentir quase restaurada a nossa fé na humanidade. Mesmo que a recompensa mais alta de uma carreira pareça modesta, o que verdadeiramente importa é que as aptidões de cada um sejam premiadas. Já de quinto império, se me dão licença, só depois da quinta imperial.

Mas esqueçam por instantes os desportistas, e até os escritores e os artistas, ou mesmo os cientistas, e todas as taças, medalhas e prémios internacionais com que se vai enchendo a arca do tesouro da mitologia nacional. Reservem uns momentos deste vosso verão azul, uns centímetros cúbicos do vossos corações vermelhos para, se quiserem até com orgulho patriótico, porem bem os olhos no modesto português que inesperadamente foi projetado para as elevadas funções de… porteiro. Digo bem, porteiro. Parece pouco. Porém, culminando uma carreira de abnegado serviço público, na qual pôs o interesse nacional acima de ambições egoístas e interesses mundanos, o nosso compatriota José Manuel foi agora reconhecido, exclusivamente, pelo enorme talento que aparentemente possui para “abrir portas” (nas palavras de um investigador da matéria citado em publicação hebdomadária). 

Pensem só no grau de especialização que não deve ser necessário para que, ao fim de décadas de denodo, alguém saiba fazer supremamente bem apenas uma das duas coisas que habitualmente se fazem com as portas. Ainda por cima, o José Manuel vai abrir portas numa instituição à qual o mundo inteiro deve estar grato pela revolução que operou nas vidas de milhões de pessoas e de dúzias de países, que descobriram finalmente as vantagens do despojamento material. A Goldman Sachs é o verdadeiro farol da conduta moral e não canoniza os virtuosos com tanta facilidade como a Santa Sé. E o José Manuel é um santo homem.

Os invejosos dirão que aquilo que o José Manuel vai fazer não é bem abrir portas, mas segurar portas abertas, talvez por causa das correntes de ar. Para isso, insistem os maledicentes, bastava usar aquela espécie de calço que se entala entre a porta e o soalho. Francamente, não sei se vejo o José Manuel a baixar-se para meter cunhas. 

Eu sei que há ainda as portas que Portas abriu, e as portinholas abertas por uns enérgicos e energéticos secretários de estado socialistas, mas vai longa a prosa e alto o sol. O país continua lindo, mas ainda não chegámos ao Brasil.


10 julho, 2016

Full English Brexit ou Dog's Breakfast? (Lição de inglês moderno para cidadãos europeus)




O pequeno-almoço inglês, ou full English breakfast, que pode também designar-se apenas como full English, ou até fry-up, pode variar um pouco de região para região do Reino Unido, mas inclui geralmente bacon, ovos estrelados, salsichas, feijão cozido, cogumelos fritos, tomate frito, torrada com manteiga e muitas vezes black pudding (um chouriço de sangue). Ou seja, é uma coisa entre o fartote e o enfarte. Os dois efeitos não são, aliás, mutuamente exclusivos: lambem-se agora os beiços e afaga-se o estômago, mas um dia pode ser necessário chamar o 999 (o número de emergência britânico). Pode dizer-se, portanto, que há um efeito de curto prazo e um efeito de médio ou longo prazo.  


Os meus perspicazes leitores (que costumam ler pelo menos os títulos), já perceberam o trocadilho barato em que me meti e temem certamente que me prepare para mastigar uma metáfora gastronómica até à náusea, às costas do que vem acontecendo no Reino Unido desde o referendo do dia 23 de junho. Porém, uma vez que o pequeno-almoço inglês e o abuso das metáforas para fins retóricos são coisas cujo consumo frequente me parece pouco recomendável, vou queimar gorduras, atalhando razões.


Antes de consumado o Brexit (a saída a prazo do Reino Unido da União Europeia), apetece-me saborear, irresponsavelmente, as consequências imediatas do exercício do poder por uma classe de meninos muito bem educados, nos melhores colégios privados ingleses, e exemplos acabados do establishment conservador. Os campeões da campanha, de um lado e do outro da barricada, que deviam ter um plano de contingência para o dia seguinte e que afinal não tinham sequer um guarda-chuva, fugiram como ratos, ou foram apanhados nas suas próprias ratoeiras: David Cameron, que prometeu o referendo apenas para ganhar as eleições, vai ficar mais famoso por alegadamente ter introduzido o membro viril na boca de um porco morto, do que por ter retirado os britânicos da lista de membros da UE.

David Cameron

Boris Johnson, que defendeu a saída da UE apenas para se distinguir de Cameron  e lhe suceder no cargo (uma vez que antes era europeísta), vai para sempre ficar pendurado nas suas contradições.

Boris Johnson

Michael Gove, o homem que não queria ouvir especialistas (e presumivelmente se preparava para governar rodeado de leigos) atraiçoou Cameron e Johnson e foi depois atraiçoado pela sua violenta estupidez.

Michael Gove

Nigel Farage, o racista e xenófobo “provocador” (que já nos tempos de escola andava pelos montes a cantar hinos da juventude nazi), cujas arengas demagógicas e populistas no Parlamento Europeu foram partilhadas milhares de vezes por portugueses ignorantes, admitiu que o principal slogan da campanha a favor da saída da UE  era uma aldrabice, no próprio dia em que os resultados do referendo foram anunciados. Demitiu-se imediatamente da liderança do UKIP com a sensação de dever cumprido. 

Nigel Farage

Exeunt Omnes, “saem todos (do palco)”, como diziam antigamente as didascálias em latim nas peças de teatro. Ou, neste caso, Brexeunt Omnes! Quem vier a seguir…


A dog’s breakfast é uma expressão idiomática que não tem nada que ver com refeição nenhuma, nem dos cães nem dos donos, e que serve para qualificar os “lindos serviços” (ou grandes porcarias) de pessoas pouco hábeis. Curiosamente, parece ter origem na Escócia, que não manifestou interesse em partilhar o pratinho.


Instantes

1   Diziam, pela calada agonia dos instantes que eram mudos.   Julgavam-nos pela constância infinita das lamentações pelo fôlego breve do pá...