27 março, 2013

A D. Adosinda trouxe-me notícias do défice

A D. Adosinda trouxe-me notícias do défice. Ela ainda insiste em chamar-lhe deficit, o que é talvez reminiscência de um tempo em que ninguém prestava muita atenção a esse cavalheiro.

A D. Adosinda é a minha consultora para assuntos de economia e finanças. Destas duas coisas ela sabe rigorosamente nada, condição que a meus olhos muito a recomenda e razão pela qual resolvi valer-me dos seus graciosos serviços. O facto de serem graciosos, no sentido de gratuitos, também pesou um pedacinho, vá. Desconfio, aliás, que só são graciosos porque a D. Adosinda ainda não deu conta de que, enquanto me limpa a casa por uma remuneração modesta, me faz o favor de abafar o som do noticiário, susbstituindo-o pela sua inestimável informação, que tem a vantagem de ser compreensível, ainda que às vezes pareça um nadinha fora de propósito.


Hoje, por exemplo, disse-me que estivera com o deficit em Sintra! Apanhado de chofre, limitei-me a arregalar os olhos para não entornar o café. Não sei se foi em Sintra que ele foi oficialmente avistado pela última vez, quando alguém das finanças veio à televisão dizer que tinha sido fortemente reduzido, mas a D. Adosinda garante-me que ele continua um belo rapaz, adjetivação simples que me parece traduzir o apreço da senhora por homens, digamos assim, robustos. Achei sensato não inquirir sobre os pormenores da coisa, uma vez que nesse exato momento a senhora se preparava para limpar o pó à jarra de porcelana que está em cima da cómoda.

As conversas com a D. Adosinda tornaram-se no momento mais luminoso dos meus dias, desde que todos os impostos me começaram a subir como uma violenta urticária, que me impede de sair de casa sem incorrer em despesas incomportáveis. Foi até a D. Adosinda que primeiro me chamou a atenção para o exorbitante preço do bitoque no snack-bar da esquina, que entretanto encerrou, e me sugeriu umas receitas fáceis e económicas, com muito ómega 3. Esta é outra coisa que muito aprecio: o cuidado que ela revela pelo meu nível de colesterol e tensão arterial. Desde o dia em que percebeu que a dilatação das minhas narinas e das veias da região temporal ocorria imediatamente após o aparecimento no écrã da televisão de uma astróloga ou de um economista, começou a desligar o aparelho da tomada para poder usar o aspirador. 

É possível que a motivação da minha consultora não seja puramente altruísta, uma vez que não lhe pago as horas vai já para três meses e um enfarte ocorrido nessas circunstâncias poderia incapacitar-me para a assinatura do cheque. Nisto a D. Adosinda tem a perspicácia dos credores do estado: faz o possível por me manter vivo, solvente e agradecido.     

25 março, 2013

Do ruído e seus malefícios, ou como me proponho ajudar a salvar a pátria sem fazer nenhum e sem ficar doente

O ruído, em geral, incomoda-me. A algaraviada obsessiva dos últimos anos, à força de martelar défices e dívidas como se fossem pregos no caixão de um defunto relutante, pode até tornar-me hipertenso, que é coisa que já eleva o incómodo a um ponto difícil de tolerar e exige cuidados especiais.

Este blogue – cujo primeiro texto exprimiu os meus temperados sentimentos quanto à aluvião opinativa que sedimentou a ignorância geral, e a minha em particular, sobre a arcana coisa económica e financeira que aflige o país e arredores – faz parte do programa de cuidados especiais que resolvi adotar. Faço-o a título meramente experimental e por razões essencialmente egoístas, na convicção, porém, de que o melhor contributo que posso dar para a resolução dos problemas do país é não tentar contribuir de todo.

Ao fazer exatamente coisa nenhuma, mas principalmente não exprimindo opiniões sobre o mal que aflige a economia e complica as contas do défice, também não aumento o nível de decibéis de que a nossa atmosfera está já saturada e que perturba certamente a concentração dos especialistas contratados para reanimar o país-quase-cadáver, que nunca mais decide se quer ser Lázaro, continuar lazarento, ou entregar de vez a alma ao criador (ou a bolsa ao credor, em ordinário vernáculo).


A justificação desta minha demissão de responsabilidades, que poderia até parecer cobardolas e fraquinha, tem, bem vistas as coisas, um muito sólido fundamento científico. Se não, vejamos. Na radiação eletromagnética, o ruído carateriza-se pela variação aleatória de frequências e amplitudes das ondas. Para o efeito que aqui interessa, e em português corrente, pode definir-se como qualquer som indesejável, que degrada a qualidade de um sinal e provoca perda de informação. Ora, a “informação” que sobra na vozearia deste mercado de jaquinzinhos políticos e postas de pescada economistas é popularmente traduzida assim: “estamos fritos!”.

Se aos vendedores das metafóricas espécies piscícolas a receita pouca diferença faz, mesmo quando acalorada e ignorantemente a discutem, já os peixinhos da exclamação não apreciam particularmente frigideiras, redes ou anzóis e preferiam, se não fosse muito incómodo para suas excelências, que os deixassem nadar em sossego e em silêncio.    

23 março, 2013

A crise económica e a crise dos saberes: observações ignorantes e algo escatológicas sobre uma espécie de dupla recessão


Recostado na confortável cadeira IKEA que o meu generoso salário público me permitiu adquirir antes do apocalipse fiscal, ocorreu-me fazer algumas observações, que só podem ser ociosas e inúteis (como eu gosto e a minha ciência permite), sobre o país em que acidentalmente me encontro desde o dia em que nasci. Primeiro, um parágrafo a armar em culto, que é coisa que também se pode aprender sem estudar muito. 

Há na sociologia da educação um modelo teórico, chamado Teoria dos Códigos de Legitimação (Legimation Code Theory, de Karl Maton et al), que permite demonstrar (ou prever) algo que à vista desarmada se pode apenas intuir. Se me é permitido traduzir sumariamente (certamente traindo) o que o modelo nos oferece para iluminar o estado intelectual do nosso país, diria que o número de opiniões expressas - que cresceu com a crise - e a convicção com que são afirmadas são inversamente proporcionais ao conhecimento produzido - que é pior do que muitas vezes nulo, ou acompanha pelo menos o crescimento negativo do PIB. Ou seja, quanto mais são os sabedores, mais incerto é o saber.

O grau de incerteza deveria talvez ser a primeira medida do clima económico e social. A incerteza é seguramente o inimigo primeiro da tranquilidade de espírito. E agentes económicos (que somos todos nós) intranquilos (quase todos nós também), são garantia de sobressalto, de depressão e, o que é para mim mais encanitante, de um número de opiniões superior ao número de orifícios anais, mas que parece desempenhar função semelhante: a de aliviar os seus proprietários de algum lastro excrementício, para o qual o sistema não encontra proveito.

Se alguém só tem opiniões, não quero saber. Dito de outro modo: quero saber, não me chegam opiniões. Não me interessa se o opinador foi ministro das finanças, se é banqueiro ou economista, se é diretor de jornal ou apenas opinador de jornal (o elo mais baixo da cadeia alimentar, por vezes também conhecido por Camilo Lourenço, o que me parece francamente injusto, uma vez que este aprendeu pelo menos a fazer contas para dar uma aparência científica a algumas ideias feitas). Se não nos tiram desta crise, ao menos que se retirem deste filme, no qual são apenas canastrões a debitar deixas mal aprendidas.

Devo dizer, no entanto, que só tenho um problema com estes exercícios quando eles são oferecidos publicamente. Ou seja, na comunicação social, nas redes sociais, na rua, no café, no táxi, no elevador... portanto, em toda a parte onde me seja difícil evitá-los sem tapar os olhos e os ouvidos. Se há coisa que deveria ser privatizada em Portugal são as opiniões. Toda a gente deveria opinar na privada.

Arde

Mark Rothko, Number 14 (1960) Arde calma a culpa como a tarde cai.   Arde melhor o que não podes ver.   Por baixo da terra atos omiss...