O autor
semificcional destas páginas é aquilo a que se costuma chamar anglófilo. Ao princípio, não dói. A
doença poderá ter sido incubada em resultado de uma resposta irrefletida para calar
interrogatório de criança. Disseram-lhe que a cegonha o trouxera de Londres, em
vez de Paris, de onde todas as crianças deveriam, educadamente, proceder. É uma
quase mitologia particular, que poderia explicar duas coisas: a quase traição à
pátria língua dos exclusivistas hábitos de leitura que manteve durante muitos
anos e ainda a dificuldade de cantar em coro sem desafinar. Excentricidades.
A condição
de anglófilo – que aqui se refere às culturas de língua inglesa e não apenas à
Inglaterra – tem várias fases empiricamente observáveis. Na primeira, olha-se muito
para cima. Tudo o que fala inglês é alto e reluz. Na segunda fase, há algum
conforto e sorrisos parvos de reconhecimento. É como andar em casa sem chocar muito
com a mobília e o pescoço já não dói tanto. Depois disso, o inglês já não é bem
uma língua estrangeira. Às vezes é até como se um espelho nos devolvesse a cara
mal amanhecida de um susto qualquer. Abrem-se por fim completamente os olhos e não
é o sol que brilha de todos os traseiros. É também pelo olfato que se sobe à
realidade. (Sobe, sim, porque nunca me pareceu que encontrar a verdade pudesse
equivaler a uma queda, mesmo que a descoberta implique maçãs indigestas e traumatismos
vários).
Hoje, esse
quase-eu que a contragosto subscreve o que agora escrevo é uma espécie de anglófilo anónimo: não tem cura, nem vai
às reuniões, mas admite que tem um problema. Problema que imperfeitamente se resume
no entendimento de que Portugal, que era, segundo Eça, um país traduzido do
francês em calão, é hoje um país traduzido do inglês por calões. Se não fossem
preguiçosos tradutores de ideias pré-fabricadas, políticos, economistas e plumitivos
sortidos teriam mais dúvidas e angústias. Bastava perguntarem ao cozinheiro da
história que se segue.
FOOD STAMPS (vocabulário de inglês alimentar - 1)
Bertrand
Olotara é cozinheiro no Senado dos Estados Unidos, a câmara alta do poder
legislativo americano. Todos os dias alimenta os homens do poder, mas ele
próprio não ganha o suficiente para se alimentar, nem para alimentar os cinco
filhos, que educa sozinho. De nada lhe servem os dois cursos superiores
(Direito e Gestão). Nem com um segundo emprego (numa mercearia) e trabalhando
70 horas, sete dias por semana, as verdinhas lhe chegam para verduras ou
farturas. Precisa ainda de recorrer aos chamados food stamps, cupões para adquirir alimentos que são concedidos aos
cidadãos americanos empregados, ou que se inscrevam em estágios e cursos de
formação, e que não ganhem o suficiente para viver. O ministro Mota Soares
estudou a lição.
Na maior
economia do mundo, quem trabalha, mesmo duas vezes a tempo inteiro, pode passar
grandes privações e não ter sequer dinheiro para pagar a renda de casa. Vivem
muitos em parques de caravanas; outros partilham quartos; alguns ainda dormem
no carro, se o tiverem, ou até na rua, que é mais ventilada. O modelo primeiro
do que se chama “mercado livre” e do individualismo empreendedor; o modelo
mesmo da sociedade capitalista e meritocrática a que muitos dos nossos
tradutores de ideias estúpidas em “econinglês” aspiram, subsidia assim, através
dos food stamps, as empresas que
pagam salários miseráveis. Como a Walmart,
que é propriedade de uma das famílias mais ricas do mundo. E rico, aqui, quer
dizer seriamente, fabulosamente, obscenamente e, já agora, imoralmente rico. A
não ser que a alguém pareça moralmente aceitável a exploração do trabalho
escravo. E que outra coisa se pode chamar a esta maneira de tratar quem
trabalha? Discutir se isto é mais ou menos neo-liberal é apenas uma questão de
pedântico mau gosto.
Quem paga
o salário de Bertrand Olotara é uma empresa privada, naturalmente. Porque estes
estados capitalistas de ideias mais avançadas não podem contratar funcionários
(pecaminosa despesa), mas contratam empresas (que são despesas boas) e
deixam-nas fazer o que entendem, porque o mercado é “livre”. A desonestidade
intelectual e a injustiça social vão assim de mãos dadas, numa simetria que
resulta esteticamente impecável: as empresas choram a caminho do banco e os
empregados correm ao banco alimentar.
FOOD BANKS (vocabulário de inglês alimentar - 2)
Os
cidadãos do Reino Unido acabam de votar maioritariamente no mesmo partido que os
governou durante os últimos cinco anos, manifestando a sua satisfação com a
política a que se chama de “austeridade”, que sábia e corajosamente consiste em
reduzir todas as despesas com coisas inúteis. Ou seja, essencialmente com os
pobres, que não morrem, nem saem de baixo.
Há cinco ou
seis anos, os food banks (bancos
alimentares) eram uma coisa raríssima no Reino Unido. Hoje há mais de mil. Servem
todos aqueles que não têm dinheiro para comer, empregados e desempregados.
Muitos “empregados” recebem apenas as horas que trabalham por semana se os empregadores
precisarem deles, sejam 50, sejam zero (é por isso que se chamam zero-hour contracts), sem nunca saberem
o que os espera ao virar da esquina. Esta “flexibilidade laboral” resulta em
enormes benefícios para a economia, segundo afiançam, também por cá, os mais conscienciosos
sábios. E garante também que há menos trabalhadores obesos, digo eu.
Os
desempregados, por sua vez, não têm outro remédio se não ir pedir comida,
porque perdem os subsídios se não cumprirem as regrazinhas da burocracia dos
centros de emprego, como apresentações regulares (tipo medida leve de coação para
arguidos), mesmo que isso implique gastar o dinheiro que não têm em transportes
que ninguém lhes paga. O governo português também não faltou a essa aula.
Quase 5
milhões de pessoas no Reino Unido não têm o suficiente para comer. Mas a culpa
é dos pobres, como muito bem têm observado os políticos do partido agora reeleito.
Se não, vejamos. Michael Gove, líder parlamentar dos Conservadores, disse que
as pessoas que usam os bancos alimentares “não sabem administrar bem as suas
finanças”. A baronesa Anne Jenkin, que tem assento na câmara dos lordes e
dedicou alguma atenção ao assunto, concluiu (nobremente) que “os pobres não
sabem cozinhar”. A ex-deputada conservadora Edwina Currie afirmou que as
pessoas que usam os bancos alimentares desperdiçam dinheiro em tatuagens e em
comida para cães. Coisas destas não se ouvem por cá, pois não?
Portugal acha
que é um bom aluno de inglês, mas toca muito de ouvido e é meio mouco. Juntamente
com as duas grandes economias anglófonas dos exemplos acima, completamos o trio
de países da OCDE onde as desigualdades entre ricos e pobres são maiores. Já estávamos
nesta posição antes desta crise, que serve de pretexto a tudo, mas não
justifica grande coisa, e estamos agora a fazer as políticas que garantiram aos outros dois
países tão invejáveis posições na tabela classificativa da indignidade. Well done! Parabéns!