22 janeiro, 2016

Que o próximo presidente seja o último




As eleições presidenciais são já neste domingo. Mal consigo disfarçar a minha esfuziante indiferença. Há um candidato sobre o qual sei demais para poder votar nele; vários sobre os quais não sei o suficiente, e outros dos quais nem quero saber. Recomendo, portanto, vivamente, que toda a gente ignore aquilo que penso sobre o assunto.

Como não quero ser acusado de aconselhar a abstenção, sugiro que façam uma de duas coisas: convençam-se de que algo muito importante depende do inquilino de Belém (se já estavam convencidos disso, lamento), ou então arranjem um pretexto qualquer para justificar a deslocação à assembleia de voto, nem que seja para ir fazer um donativo aos bombeiros. Por mim, planeio um domingo sossegado, que felizmente terminará com a derrota da maioria dos candidatos.

As eleições para um órgão unipessoal, como se costuma chamar à Presidência da República, chateiam-me por um número de razões indeterminado (porque ainda nem tive tempo para as contar), mas a principal é ele ser mesmo “unipessoal”. Um órgão de soberania composto por uma pessoa só não é um órgão, é uma gaita de beiços. Sinto uma imediata antipatia pelas pessoas que têm o ego suficientemente desenvolvido para se candidatarem ao cargo. Como não me imagino a oferecer-me para presidir a uma comissão de festas composta por dois elementos (contando comigo), a presunção de alguém que pensa em ser chefe de um estado (mesmo que ele fosse o estado de coma) parece-me mais difícil de imaginar do que a infinitude do universo, o jackpot do euromilhões, ou a inocência de Sócrates e Salgados. E uso estas moderadas comparações apenas para não me acusarem de usar a hipérbole como figura de estilo.

Espero que o domingo vos seja leve. Não sei se me seria possível sobreviver a uma hipotética segunda volta, a não ser que ela fosse a última e o cargo de Presidente da República fosse logo a seguir constitucionalmente abolido e substituído por qualquer coisa mais útil, como novas vias para ciclistas ou cantinas económicas para políticos sem subvenção vitalícia. 

11 janeiro, 2016

Todos os dias alguém

Woman sitting under a light at a bus stop: Rupert Vandervell


Todos os dias alguém
alguma coisa, parte de nós enfim
se perde.

Parte, de ir embora
de nos deixar em cacos
parte de uma história que ninguém
sabe contar.

No peito, o coração divide-se sempre duas vezes
e duas vezes mais apenas, mas fora dele
a metafórica forma dele
quantas vezes mais pode partir.

Todos os dias morre
alguém nos morre
e não podemos ser nunca mais
a coisa inteira.

Todos os dias alguém apaga uma luz
a noite sobra.   

Lázaro

Hoje, muita gente vai homenagear David Bowie. Com os bons sentimentos não se deve ser cínico. Os que forem verdadeiros acrescentarão ao mundo algum bem. Escolham a vossa canção. Eu escolho aquela que tem o nome do morto que se voltou a erguer. Por isso mesmo, que não é verdade. Porque é canto de cisne. Porque tem alguns músicos de jazz de quem gosto muito. E porque sim.

08 janeiro, 2016

Uma coisa com penas (última canção)

Damien Hirst, The Crow

É uma coisa com penas
que contigo se levanta
e vai contigo dormir.

Todos os dias vem pousar
no teu ombro, pousa aonde
o olhar pousou, repousa
nunca, encobre o sol, assombra
todas as lembranças, não
deixa o silêncio ser teu.

Penas o vento não leva
voam baixo querem chão
devoram a tua carne
deixam só o coração.

Dói-te um sonho de menina
morre o som na tua voz
e essa coisa com penas
que contigo quer dormir
nem deixa o sonho ser teu.

É uma coisa com penas
que contigo se levanta
e vai contigo partir.

06 janeiro, 2016

Dia seis, de reis




Dia seis, de reis

nesta república quase nada passa


o ano sim, o mês, a ocasião


o vento pela praça e por uma sorte estreita


ao abrigo da aragem de janeiro


passa um cão


e um dia assim como outro dia


sem epifania.




(publicado como António Manuel Azevedo, em As escadas não têm degraus, nº 3,  Livros Cotovia, Março 1990)

03 janeiro, 2016

Revólver na cabeça

Sunrise, F.W. Murnau (1927)

Não é por serem verdade os versos
achados numa página da internet
que copias o poema para arremessar
à boca do inferno. Vingança talvez
a cantiga é o revólver vais fazer
uma revolução à queima-roupa
queimar a roupa da cama afogar
na banheira quem sabe o último amor.

Roubadas máximas, mínimo esforço
aforismo afora transcreves sentença, encolhes
o medo, as saudades apertam ainda e o coração
mora sozinho com um canário amarelo no terceiro andar.

Os versos falavam de quê, não importa
vinham acordar uma dor qualquer, um baixo
profundo que pulsa, impercetível pulsa
mas não pode dizer nada, pode ouvir
quase nada e quase nada pode ser.

Não precisam falar verdade os versos
basta que firam basta que rimem menos mal
com o mal que tão imperfeitamente fingem ser.

Ali em baixo passava um rio, ou riacho
acho (é fácil esquecer o que sempre é presente
mal se sente. Sabemos só o que falta
quando o tempo falta). Fala alto, esfrega as mãos
os versos também podem fazer frio
atas um fio na ponta de um pau desces
até à margem lamacenta, os pés entre mínimos
girinos, como se fosses pescar o que perdeste.

E sentado na lama viste nada claro
acendeste um cigarro
farol de marinheiros de águas doces
que até entre as mãos perdem a cabeça. 

Instantes

1   Diziam, pela calada agonia dos instantes que eram mudos.   Julgavam-nos pela constância infinita das lamentações pelo fôlego breve do pá...