23 junho, 2014

A atenção é um bicho com asas

Jimmy Giuffre, saxofonista, clarinetista, flautista, arranjador e compositor de jazz, escreveu e tocou música para pessoas, pássaros, borboletas e mosquitos. Há hoje quem ache que as primeiras, na altura, não lhe prestaram suficiente atenção.

Mas esta não é a história de Jimmy Giuffre, nem um ensaio sobre génios mais ou menos ignorados. Não é sequer a história da menina que perdeu a boneca porque se distraiu a olhar para o gato que se atirou da janela atrás de um pássaro que voou atrás do mosquito que era afinal a flauta tocada por Jimmy Giuffre. Estas frases eram apenas uma maneira de chamar a atenção. De chamar a atenção de pessoas, já que não sei tocar instrumento que possa prender à terra criaturas que facilmente dão à asa.  

“O Pintassilgo” de Carel Fabritius (1654)
A atenção é um recurso escasso. Na economia do tempo das nossas vidas, é talvez o menos abundante dos recursos. É pela nossa atenção que lutam publicitários e políticos, por exemplo, quando apontam, de modo mais ou menos subtil, a ranhura onde esperam a inserção do nosso cartão de débito ou o crédito do nosso voto. Todos os que acham que têm algo para dizer querem a nossa atenção, evidentemente. Todos os que gostam de nós esperam a nossa atenção, naturalmente. E há ainda os que apenas querem a atenção de quem quer que seja, mesmo que não tenham nada para oferecer em troca: um dedo de talento, amor algum, beleza bastante, saber que sirva.

Obviamente, não há atenção que chegue para tudo, nem para todos. A procura excede muito claramente a oferta. Sendo recurso tão escasso, a atenção é um bem precioso. Não sendo metal ou mineral, vale a sua ausência de peso em ouro. Mas há diferenças importantes entre atenção e quaisquer recursos transacionáveis. A primeira não pertence ao governo ou ao patrão, que dela não podem dispor como provavelmente gostariam – cortando, plafonando, taxando ou confiscando. Esta diferença interessa-me. Significa que, quer o tempo que tenhamos seja curto ou longo, aquilo a que damos atenção é da nossa exclusiva e indeclinável responsabilidade. Sobretudo para aqueles que vivem com muito pouco, ou com pouco mais do que o bastante para manter a cabeça colada aos ombros e o estômago descolado das costas, não existe mais poderoso capital. No entanto, são estes também os infelizes que, geralmente escravos de labores puramente alimentares, menos liberdade têm para escolher aquilo a que gostariam de dedicar a sua atenção.

Outra diferença entre atenção e bens apropriáveis, e talvez a mais importante, é que a atenção não se pode comprar. Pelo menos na nossa língua, os verbos que lhe servem de predicado não sugerem comércio. Dizemos “dar atenção”; dizemos “prestar atenção”; dizemos “chamar a atenção” e “desviar as atenções”. Em inglês diz-se “pay attention!”, mas na verdade não é a atenção que se paga, paga-se dando atenção, o que é sinal de boas maneiras. Pode pagar-se o tempo de alguém que se emprega para que se dedique a uma tarefa, mas o que é remunerado é o tempo nela despendido e/ou o produto do trabalho, não aquilo que durante a execução da tarefa possa ter ocupado a mente e os sentidos do executante. Ao coser um sapato, o sapateiro pode muito bem ganhar asas nos pés, como certo deus grego; sapatear uma valsa em tempo de swing, como Fred Astaire, ou encher de calçado o traseiro do seu ódio de estimação, como qualquer de nós faz quando sonha acordado.    

Mas é aqui que a proverbial fêmea do mamífero bunodonte, artiodáctilo, não ruminante e doméstico torce o rabo. Uma vez que tanta coisa é feita para atrair atenções, toda a prudência é pouca na maneira de as distribuir. Se há muito quem esbanje dinheiro, ou desaproveite aquilo que tem, mais são ainda os que malbaratam uma insanidade de horas entregando os sentidos a coisas que não fazem sentido nenhum, como se atenção sobrasse para atender a tudo e não houvesse sequelas associadas ao mau uso do tempo. O cérebro é que paga. Se muitos pensam cuidar suficientemente da saúde pelos particulares cuidados que dedicam à parte do corpo a sul do pescoço, já a matéria esponjosa alojada a norte absorve essencialmente fast-food mental, certamente porque é pré-cozinhado e de mais fácil digestão, mas também porque atrai mais atenções. Em português também se diz “prender a atenção”. Como se fosse um pássaro? O que nos prende pode ser o que nos perde.

Exemplos disto mesmo: o grosso da matéria publicada em jornais e revistas, e seus correlatos televisivos e radiofónicos, sob a designação de notícia, reportagem ou comentário, bem como muitas das obras ficcionais e programas de entretenimento que os meios de radiodifusão produzem e importam. Esta espécie de carne processada, feita de ideias acriticamente repetidas e de simplificações patetas, é por muita gente consumida em quantidades que impedem a normal circulação de estímulos elétricos entre os neurónios, os quais deveriam criar novas redes de ligações, assim aumentando a maravilhosa complexidade da máquina pensante e, quem sabe até, com sorte, gerar ideias novas.

Se todos tratassem da cabeça com os cuidados que já vão dedicando ao coração e ao estômago e não deixassem que as suas atenções fossem desviadas pelas conversas da treta que o mercado mediático tem que produzir constantemente, talvez procurando alimento mental de maior substância e uma maior variedade de estímulos sensoriais (como os que todas as artes proporcionam, por exemplo) talvez houvesse esperança de salvar, já não digo a pátria, mas a própria vida.   

O que ocupa a atenção também pode ser o que a liberta. A atenção é um bicho com asas. Como aqueles que Jimmy Giuffre tocou.

O pintassilgo de Donna Tartt, que ganhou o prémio Pulitzer desde ano, nas substanciais 800 páginas que prenderam já a atenção de muitos milhares de leitores. 

Instantes

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