24 setembro, 2015

O futuro que passou

O que nos levam eles?

Muitos portugueses emigraram nos últimos anos. A maior parte deles não vai votar nas próximas eleições. De certo modo, foi indo-se embora que votaram. Com os pés, literalmente, exprimiram a sua confiança no futuro do país.

Caso alguém não tenha pensado nisso, o futuro do país é o futuro das pessoas que nele vivam. O futuro dos portugueses que emigraram, pelo menos durante uma boa parte das suas vidas, não será o futuro de Portugal, será o futuro dos países para onde emigraram. Aquilo que sabem fazer, aquilo que façam nascer, não será português agora, nem talvez depois, nem possivelmente nunca. A não ser nas histórias sentimentais que aquecem a alma dos amantes de símbolos e saudades, que sempre acham algum consolo remoto nos vestígios de Portugal no mundo, o futuro de Portugal perde quase tudo o que esta gente poderia dar-lhe a ganhar.

Para estes portugueses que emigraram, Portugal é mais passado que futuro. Para nós, que ainda aqui estamos, é um pedaço de futuro que passou. 

E eu, que fiquei por cá, embora contrariado, fico também com uma dúvida: votar naqueles que levaram tantas pessoas a partir, não será traí-las duas vezes? Por favor, não me digam de novo que não havia outra maneira, porque isso é o mesmo que dizer que tudo isto é fado. E tudo isso é triste.    

22 setembro, 2015

As barbas de Henrique VIII

Nunca se viram tantos homens de barba. A coisa não me interessa enquanto tendência. Não sou de modas. Já enquanto economista – doutorado a um fim de semana pela Universidade da Internet de Baixo – e historiador especializado em problemas capilares, a súbita multiplicação de faces hirsutas entre os meus concidadãos do sexo masculino tem-me dado bastante que pensar.

Depois de tomar um chá e de coçar a orelha direita com a mão do mesmo lado, fui à estante da história à procura de luz. É lá que se esconde o interruptor do meu candeeiro de leitura. No exato momento de dar à dita, digamos assim, acendeu-se-me o olhar com as lombadas da história inglesa e a barba refulgente do monarca das seis mulheres. O excesso de cônjuges do oitavo Henrique, e a maneira criativa como dissolveu os matrimónios inférteis em varonil descendência, podem ter desviado as atenções daquele que é provavelmente o seu maior legado à posteridade e fonte de inspiração da minha proposta para aumentar exponencialmente a receita fiscal e resolver de uma penada o problema do défice.


(Henrique VIII por Hans Holbein, o jovem)

Em 1535, numa época em que as caras atapetadas eram tão ou mais frequentes do que hoje, o bom do rei, proprietário ele mesmo de ruivo revestimento facial, impôs, como se impõe, um imposto sobre as barbas. O imposto não era cego e indiscriminado, ao contrário do IVA que os nossos escanhoados governantes nos infligem, e tinha uma óbvia preocupação social. Como recomendam os princípios de uma fiscalidade distributiva, era um imposto progressivo, uma vez que variava com a posição social do barbudo.

Já a sua filha Isabel, primeira do nome enquanto rainha e fruto das segundas núpcias, com Ana Bolena, reintroduziria o imposto, entretanto abolido, com uma variação provavelmente mais justa, que tinha em atenção a dificuldade de adquirir lâminas descartáveis antes da invenção dos supermercados: apenas eram tributadas as barbas com pelo menos duas semanas de crescimento. Não se sabe como é que os inspetores das finanças faziam os cálculos. Devia ser a olho, fazendo uso dos chamados métodos indiciários, que ainda hoje têm muitos adeptos e se traduzem assim: o que parece, paga.

É claro que os monarcas ingleses não foram os únicos a perceber as vantagens de tosquiar por via tributária os cavalheiros negligentes. Pedro I da Rússia, já nos finais do século XVII, quis modernizar à força os costumes e, “em linha com as praças europeias” (segundo redação do meu correspondente na bolsa de detritos linguísticos), obrigou os súbditos a transportar consigo um comprovativo de boa cobrança, sob a forma de uma medalhinha que trazia, de um lado, a águia imperial e, do outro, além de uma representação da parte inferior da face coberta de pelos, uns dizeres que atestavam pagamento do imposto – “dinheiro recebido” – e a justificação lapidar da sua existência: “a barba é um peso supérfluo”. E não é?

Já estão certamente a ver onde quero chegar e antecipo até as objeções práticas que podem ser colocadas à proposta, que ainda mal esbocei, de penalizar as barbas e salvar a nação das garras dos credores. Provavelmente estão a pensar que o imposto nunca arrecadaria receita que se visse, uma vez que os nossos enérgicos cidadãos imediatamente boicotariam a medida através de um barbeamento estratégico. Errado, porque o meu programa tem as contas feitas e essa não seria uma medida isolada. Para impedir a evasão fiscal por ausência de pilosidade, seriam também tributados, como artigos de luxo, as lâminas de barbear e todos os instrumentos passíveis de atingir fins semelhantes, como cremes depilatórios, navalhas, machados, moto-serras e pedras lascadas.  

Agora vou fazer a barba, que é o único luxo que me resta.

13 setembro, 2015

Política de preços baixos



As campanhas eleitorais são como as campanhas de promoções dos hipermercados. Se os hipermercados baixam os preços, como forma de levar as pessoas a entrar nas lojas e a gastar dinheiro em coisas de que não precisam, enquanto se abastecem do essencial; nas campanhas eleitorais os partidos embaratecem a conversa e baixam os custos das políticas futuras, de maneira a levar as pessoas a votar na fada dos dentes. Aquilo que antes poderia parecer coisa de sonhos improváveis, afigura-se de súbito realizável pela introdução de um papelinho numa ranhura, como dentinho caído que se introduz num recanto secreto para que a fada da especialidade no seu lugar deixe, sei lá, uma quantia correspondente à sobretaxa do IRS, que por abnegação deixámos cair do bolso, ou aquela parte dos salários e pensões que voluntariamente sacrificámos ao serviço da dívida.
   
Por isso é que não me meto em campanhas. Ou antes, não compro mais do que o indispensável. Nem aos hipermercados, nem aos partidos grandes, que são os verdadeiros hipermercados da política. Se aos primeiros vou apenas quando estritamente necessário, dos segundos espero tão pouco que já nem os panfletos deles uso na lareira, porque aquilo pega mal e liberta estranhos odores.

É claro que a maioria dos portugueses não pensa como eu. A julgar pelas sondagens, quase ninguém resiste a ideias em saldo. “Não conhecem outras”, diz o meu amigo Inácio. E é capaz de ter razão, porque mesmo quem lê jornais não acha lá mais variedade. As sondagens, que tenho visto pelo canto do olho, sugerem até que há cerca de um terço dos portugueses que sofrem de “síndrome de Estocolmo” e se preparam para abraçar quem os fez reféns de uma miséria que já parecia em vias de extinção. Digo “reféns” porque a dita “austeridade” é apenas o pretexto para amarrar o país a uma política de liberalização da economia que apenas vai acentuar o que nos foi vendido como consequência da crise. E dizem que isso é bom. Como o óleo de fígado de bacalhau e o arroz de atilhos?

Se há hoje mais pobres miseravelmente pobres; pobres que antes eram remediados; remediados que antes viviam com desafogo e – por contraponto meramente acidental e benigno, claro – ricos que estão hoje mais ricos, o que parece previsível é que os três primeiros grupos (essencialmente os que dependem de um salário), sejam cada vez mais entregues a si próprios e aos caprichos das lotarias financeiras, enquanto os quartos colherão os benefícios das desregulações dos mercados todos, abatendo à carga todo o lastro que os possa prender à terra, sobretudo coisas maçadoras como os “custos do trabalho”.  

Os portugueses inocentes foram convencidos de que tudo isto é inevitável e até benéfico. Se calhar porque se atreveram a respirar o ar que não lhes pertencia, pagam agora os juros do oxigénio emprestado. Reconhecidos, muitos acreditam que o ladrão lhes vai devolver a carteira. Os verdadeiros responsáveis só não choram a caminho dos bancos porque já lá estavam a beber champanhe, celebrando antecipadamente a colheita das contribuições que esperam roubar à segurança social. Quem não puder pagar, que se governe com menos.

Ainda pelas mesmas sondagens, há quantidade quase igual de portugueses que têm esperança de que o hipermercado do lado faça preço diferente e estão dispostos a consumir lá os próximos quatro anos. Não digam que fui eu a avisar, mas suspeito que a diferença está quase toda no rótulo e, quando muito, vão receber um brinde barato que não dura seis meses. 

Instantes

1   Diziam, pela calada agonia dos instantes que eram mudos.   Julgavam-nos pela constância infinita das lamentações pelo fôlego breve do pá...