Mostrar mensagens com a etiqueta Défice. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Défice. Mostrar todas as mensagens

08 março, 2014

O verdadeiro carnaval: entremez e desfile de um país emburrecido


Acordo num país mal ataviado, de barba por fazer
e a notícia da manhã traduz o que importa
numa língua morta.

As frases recitadas
que todas as noites nos embalam o sono
e nos tolhem os sonhos,
são uma missa entoada em latim vulgar,
não dão pra dançar.

Ouço cantar uma língua de contas
e de trapos
e vejo aos saltos coelhos e cartolas,
merkels e mercados,
bancos e bandidos,
e muitos passos
perdidos.

Desfilam sociedades secretas
e casas de segredos,
arranjinhos e arremedos,
piores emendas para maus sonetos
e muitos bichos caretos.

Entre um estômago meio cheio
e uma cabeça meio vazia,
olhamos como se esperássemos
um milagre de maria.

Mas diz que, não tarda, vamos ali ao mercado
e que é tudo fiado,
mas com juros baixinhos.
Pra comprar jaquinzinhos?

Diz que o país, se calhar,
vai crescer um cabelo.
E o tamanho do pelo
vai pagar o pão?

Diz que dívida assim
e o défice anão; 
diz que pouco salário
e menor pensão;
diz que quem fala do alto
é quem tem a razão,

mas o maior défice
é de imaginação.


27 março, 2013

A D. Adosinda trouxe-me notícias do défice

A D. Adosinda trouxe-me notícias do défice. Ela ainda insiste em chamar-lhe deficit, o que é talvez reminiscência de um tempo em que ninguém prestava muita atenção a esse cavalheiro.

A D. Adosinda é a minha consultora para assuntos de economia e finanças. Destas duas coisas ela sabe rigorosamente nada, condição que a meus olhos muito a recomenda e razão pela qual resolvi valer-me dos seus graciosos serviços. O facto de serem graciosos, no sentido de gratuitos, também pesou um pedacinho, vá. Desconfio, aliás, que só são graciosos porque a D. Adosinda ainda não deu conta de que, enquanto me limpa a casa por uma remuneração modesta, me faz o favor de abafar o som do noticiário, susbstituindo-o pela sua inestimável informação, que tem a vantagem de ser compreensível, ainda que às vezes pareça um nadinha fora de propósito.


Hoje, por exemplo, disse-me que estivera com o deficit em Sintra! Apanhado de chofre, limitei-me a arregalar os olhos para não entornar o café. Não sei se foi em Sintra que ele foi oficialmente avistado pela última vez, quando alguém das finanças veio à televisão dizer que tinha sido fortemente reduzido, mas a D. Adosinda garante-me que ele continua um belo rapaz, adjetivação simples que me parece traduzir o apreço da senhora por homens, digamos assim, robustos. Achei sensato não inquirir sobre os pormenores da coisa, uma vez que nesse exato momento a senhora se preparava para limpar o pó à jarra de porcelana que está em cima da cómoda.

As conversas com a D. Adosinda tornaram-se no momento mais luminoso dos meus dias, desde que todos os impostos me começaram a subir como uma violenta urticária, que me impede de sair de casa sem incorrer em despesas incomportáveis. Foi até a D. Adosinda que primeiro me chamou a atenção para o exorbitante preço do bitoque no snack-bar da esquina, que entretanto encerrou, e me sugeriu umas receitas fáceis e económicas, com muito ómega 3. Esta é outra coisa que muito aprecio: o cuidado que ela revela pelo meu nível de colesterol e tensão arterial. Desde o dia em que percebeu que a dilatação das minhas narinas e das veias da região temporal ocorria imediatamente após o aparecimento no écrã da televisão de uma astróloga ou de um economista, começou a desligar o aparelho da tomada para poder usar o aspirador. 

É possível que a motivação da minha consultora não seja puramente altruísta, uma vez que não lhe pago as horas vai já para três meses e um enfarte ocorrido nessas circunstâncias poderia incapacitar-me para a assinatura do cheque. Nisto a D. Adosinda tem a perspicácia dos credores do estado: faz o possível por me manter vivo, solvente e agradecido.     

Instantes

1   Diziam, pela calada agonia dos instantes que eram mudos.   Julgavam-nos pela constância infinita das lamentações pelo fôlego breve do pá...