29 dezembro, 2013

A sopa dos pobres é o chichi dos ricos?

Vivemos hoje uma ironia trágica. Aqueles que nos vendem a ideia da “distribuição dos sacrifícios” (expressão eufemística que significa que os pobres têm que pagar pelas asneiras dos ricos, ou os cidadãos individuais pelos crimes dos bancos) são também os que menos acreditam na “redistribuição da riqueza”. Esta seria a função de uma fiscalidade verdadeiramente progressiva e equilibrada: corrigir assimetrias que ofendem o mais elementar sentido da decência e dividem a sociedade entre uma pequena vara de porcos anafados e crescentes rebanhos de cordeiros escanzelados, corroendo por dentro o corpo social como metástase de um tumor maligno.
   
A ideia de redistribuição por via fiscal, materializada na criação do estado social de tipo europeu, fez escola e caminho nos países mais desenvolvidos desde os reformismos de finais do século XIX até à década de 1970, reduzindo progressivamente o fosso de rendimentos e criando sociedades mais felizes. Não é por acaso que os países com menores diferenças de rendimentos aparecem sempre entre aqueles com mais elevados índices de bem-estar. De então para cá, para desgraça de muitos e benefício de poucos, outra ortodoxia tomou conta do espaço mental e, em consequência, as desigualdades atingiram níveis pornográficos.

O sistema que hoje insidiosamente se semeia, a pretexto de uma muito conveniente crise financeira, protege preferencialmente os lucros, em detrimento dos rendimentos do trabalho, e tem vindo a reduzir progressivamente a proteção e os benefícios sociais que asseguravam uma certa medida de igualdade e de mobilidade social, condições necessárias de uma sociedade justa e saudável. Isto já foi dito por tanta gente (incluindo o Papa) e de tantas maneiras, que se tornou um mero lugar-comum. E, no entanto, é geralmente ignorado, na melhor das hipóteses, com um encolher de ombros condescendente e com uma arrogância intolerável. A crise atual serve apenas como justificação fácil para a tomada de medidas que estão entre os mandamentos de uma doutrina que vem de longe e que é o oposto da social-democracia europeia, do liberalismo americano e da doutrina social da igreja católica.

E tudo em nome de um suposto incentivo ao investimento privado e à criação de riqueza, da qual todos beneficiariam a prazo (nem que seja no longo prazo, quando todo estivermos mortos). Essencialmente, é a teoria do trickle-down economics (designação engraçada que, nem de propósito, se deve a uma graça do humorista americano Will Rogers na era da Grande Depressão). Os seus defensores acreditam, ou querem fazer-nos acreditar, que se os ricos estiverem muito, muito cheios, alguma liquidez lhes escorrerá pelas pernas abaixo e que este acidente urinário fará a todos muito proveito.


Percebe-se que haja quem goste da ideia, mas parece que as coisas não funcionam bem assim. Nem a acumulação de riqueza por uma minoria parece ter direta correlação com o crescimento da economia, nem os pobres ganham com isso mais do que umas migalhas extraviadas e contrafeitas (ver, por exemplo, este livrinho). Como se viu este ano em Portugal, com mais 85 milionários a chorar a caminho do banco e muitos milhares às gargalhadas no banco alimentar, as bexigas dos ricos têm uma notável capacidade de retenção. 



08 dezembro, 2013

À moral de César não bastava ser pobre

Quando tantos sofrem a tortura refinada de voltar a ingerir óleo de fígado de bacalhau; quando se submete o corpo do paciente país às sangrias que o barbeiro receitou, parecem nascer como cogumelos na terra húmida, entre calhaus e tubérculos, os moralistas espontâneos. Devo advertir que são, em geral, nocivos à saúde, embora os efeitos variem de pessoa para pessoa, consoante as defesas que o organismo de cada uma tenha desenvolvido contra os arrogantes dislates e a néscia autossuficiência. No meu caso, o primeiro sintoma é sempre a náusea. 

Aparecem, então, os cogumelos moralistas. Vêm de catecismo e de cacete, de fé e de fado, e veem um país a preto e branco. Dividem sempre tudo em dois: o público e o privado; os preguiçosos e os empreendedores; os que usam chapéu preto e os que usam chapéu branco; os que estão de acordo com as opiniões que eles mesmos geraram ou enxertaram, numa relação endogâmica entre os dois neurónios eremitas a quem arrendam a caixa craniana, e os estúpidos, que são todos os outros.



Dizia um, erguendo a voz e agitando os bracinhos gordos espetados, com as mãos quase postas, como quem impinge o livrinho sagrado das suas receitas, e a cabeça em cima dos ombros como um abacaxi invertido: “Dos verdadeiros pobres ninguém fala!”. E repetia: “Dos verdadeiros pobres ninguém fala!”. Quando ouvi o senhor professor brandir esta síntese da sua perfeita dialética, senti-me naturalmente esmagado sob o peso de tanta densidade filosófica, humilhado na minha confessa omissão, que ele, num golpe de virtuosa retórica, tão perfeitamente flagelava. A ciência do homem! O cume altivo da sabedoria daquele verdadeiro Everest intelectual, tão perto do céu quanto a seres humanos seria possível alcançar, se não tivessem passado da Idade do Bronze e inventado os aviões!

Mas depressa me dei conta do truque. Lá estava mais uma marota divisãozinha em dois: os “verdadeiros pobres” e os que “andam a fingir que são pobres”. Não há nada como dividir os pobres. Os pobres são mesmo bastante divisíveis. São bem mais fáceis de dividir do que os sacrifícios da austeridade e do que aqueles chocolates que nunca partem bem ao meio. Então quando os pobres se multiplicam (mesmo sem se reproduzirem, os madraços!) o melhor é mesmo dividi-los. Para reinar, sim. Estes moralistas são muito reinadios. E a melhor maneira de dividir os pobres é mesmo dizer que só uma parte deles é que é “verdadeiramente” pobre. Reparem como pendurei umas aspas, ou umas orelhas de burro, nas palavras do doutor.

Não é preciso ser filósofo para distinguir a pobreza absoluta daqueles a quem tudo falta – comida, escola, medicamentos, trabalho, um tostão furado e um lugar onde cair morto – da pobreza relativa daqueles para quem, não obstante o que possam ter, não existe garantia de participação plena numa sociedade na qual supostamente têm direitos iguais aos de todos os outros cidadãos – uma casa decente, comida bastante, a melhor escola possível, saúde de acordo com as necessidades, e o rendimento que chegue para garantir esses direitos e, já agora, também o acesso a uns quantos bens materiais e imateriais que só aos filisteus parecem luxo, mas são condição de dignidade. A exclusão social por razões económicas, que limita direitos e reduz a qualidade de vida, ainda que seja apenas por comparação com a qualidade de vida daqueles com quem se partilha a nacionalidade, não merece, na filosofia moral deste católico caridoso, pertencer à categoria de pobreza. É que, ainda por cima, em vez de darem graças a Deus por poderem usufruir de oxigénio gratuito, estes “remediados” (será que o professor os admite ao menos nesta condição?) têm o descaramento de se queixar e “andam a fingir que são pobres”. Não serão pobres, mas são seguramente mentirosos e mal-agradecidos.

Ao venturoso professor César pode faltar a imaginação para se ver na pele dos outros, daí a falta de empatia. Para a lagarta da alface, o mundo é uma alface. Mas o bem-aventurado professor das Neves leu o sermão da montanha e sabe que é seu o reino dos céus, ao qual ascenderá em primeira classe, a dos pobres em espírito.  

21 julho, 2013

A mecânica dos fluidos, ou como usar janelas e evitar as portas

Anda tanta gente ocupada com as pequenas piruetas políticas que abrem os noticiários que, desconfio eu, quase ninguém parece reparar no gorila (prometo que um dia explico esta e outras ilusões cognitivas). No momento em que escrevo estas palavras temos em funções um governo mais ou menos interino e um governo remodelado que não passou do modelo. Houve afobadas correrias pelos corredores do poder para fingir que se costurava à pressa uma roupinha de levar a Belém e agradar ao pensionista residente, mas no fim os impenitentes foram nus. Houve, sobretudo, a aparente impotência generalizada para escapar ao círculo vicioso da intriga palaciana, do cálculo eleitoralista, do dichote parlamentar e da desonestidade intelectual. Este corrupio de cromos e caretos é irritante e até um pouco embaraçoso, e como não resolve nada, resta-nos esperar que também não comprometa nada de essencial. Pode ser que, quando a febre baixar e os olhares se desviarem para outras manchetes, a prazo médio ou curto, mais pobres ou menos folgados, os portugueses esqueçam os crimes agora cometidos em seu nome (em estado de emergência nacional ou de insanidade temporária, conforme as doutrinas) e voltem a ocupar as horas dos noticiários tal como ocupam as casas de banho públicas: por pouco tempo e com dois dedos no nariz.

Mas se nada disto vai durar mais do que a espuma do champanhe, haverá alguém que nos explique o que realmente importa saber? Um título de jornal anunciava há tempos o convite endereçado pelo presidente da república a várias dezenas de economistas (como não quero insultar ninguém acima das minhas possibilidades, limito-me a tratar excelências e santidades a golpes de afiada minúscula). O supremo magistrado da nação pretenderia auscultar os ditos sobre os modos de transformar o presente do país num futuro qualquer (parece que a ambição está neste momento pouco acima do nível de sobrevivência, quer do país, quer dos seus cidadãos). Logicamente, chamam-se os economistas. Não um economista ou dois, observe-se. Eram logo às dúzias de padeiro. E se não for para ir a Belém, é para ir aos estúdios de televisão e a todos os jornais. Diariamente, incessantemente, sem fins de semana nem feriados que nos valham, em regime de apneia opinativa, chamam-se sempre economistas. Mas não se dispensam também os politólogos, para já não falar de outros observadores profissionais polivalentes e políticos sentados no banco de suplentes, que ora são promovidos a analistas políticos, ora são apenas designados pelo termo genérico de “comentadores”. O que eles parecem todos ser é “especialistas” da matéria que aflige Portugal e arredores, única razão que vislumbro para que sejam consultados tão ávida e assiduamente. Peço a vossa licença, não obstante, para duvidar… metodicamente.

Façamos uma pequena comparação. Quando temos uma chatice com o carro, mais vale ir a uma garagem e depositar a nossa confiança nos conhecimentos técnicos do mecânico. Temos boas razões para acreditar que ele percebe a natureza do problema e pode facilmente reparar a avaria ou aconselhar-nos a adquirir um automóvel que se pareça menos com um achado arqueológico. O mecânico automóvel é, em geral, um especialista. Ou seja, conhece o sistema de peças e os modos como estas devem ligar-se entre si para que o veículo possa circular em boas condições. Dado o estado das peças individuais e do conjunto do sistema, o mecânico competente pode prever com relativa facilidade o que é passível de ocorrer uns quilómetros mais adiante e até fazer uma estimativa credível sobre a vida útil da viatura, dado um tipo de uso médio e salvo qualquer acidente ou imprevisto de outra natureza. A estimativa baseia-se no conhecimento da mecânica do veículo e da interação deste com os contextos rodoviários típicos para os quais foi concebido, bem como numa quantidade representativa de comportamentos de exemplares semelhantes do mesmo modelo e marca. Dadas essas condições, a previsão do especialista é mesmo bastante fiável.   

À semelhança do carro do parágrafo anterior, o calhambeque a que chamamos Portugal (não sou eu quem está sempre a dizer que o país tem cerca de nove séculos), também está com certos e determinados problemas de circulação. De circulação de dinheiro, neste caso. Os bancos não emprestam, o estado confisca, as pessoas não gastam, os investidores não investem e os desempregados circulam lentamente nas filas dos centros de emprego para esmolar a caridade contrafeita do piedoso cristão da segurança social (ainda por cima, deve ser terrível para a circulação sanguínea, sobretudo para quem sofra de varizes). Logicamente, chama-se quem sabe da matéria. E qual é a diferença entre um mecânico e um economista que faz “projeções”, ou um politólogo que “antecipa cenários”? O primeiro sabe do que fala, os segundos ocupam tempo de antena e gastam oxigénio.

Nassim Taleb chama à economia, entre outras ciências “moles”, qualquer coisa como uma especialidade sem especialistas (with no experts). Por uma razão simples: ao contrário das ciências em que as coisas são passíveis de quantificação mais ou menos exata e todas as variáveis são conhecidas, a economia não permite fazer previsões a médio e longo prazo com nenhum grau de segurança. Repito e sublinho: o grau de segurança é ZERO. Em matéria de conhecimento do sistema que estuda e do rigor das previsões que esse conhecimento permite, a economia está uns passos atrás da meteorologia, conforme o próprio ex-ministro das finanças, Vítor Gaspar, implicitamente reconheceu, depois de uma referência infeliz à influência dos rigores do inverno sobre o crescimento económico no primeiro trimestre de 2013. E, no entanto, chamam-se os economistas e outros “especialistas”. Deve ser porque a maneira de um economista falar sobre aquilo que não sabe é melhor do que a das outras pessoas. Não, não é por causa da linguagem técnica. Verdade se diga que o jargão da economia é o perfeito exemplo daquilo a que se chama “falácia nominativa” (dar nomes às coisas pode criar a ilusão de que se compreendem). Mas não é apenas por isso, é porque eles falam do que não sabem, mas muitos deles nem sequer sabem que não sabem. Parece que foi um economista famoso e já defunto, John Kenneth Galbraith, quem assim se referiu aos prognosticadores em geral, pelo que suponho que ele seria um dos que sabiam que não sabiam e não estava muito preocupado em fazer amigos.

A realidade económica e política é demasiado fluida e complexa (a globalização tornou-a ainda incrivelmente mais complexa). Mesmo que fosse possível um conhecimento completo dos fatores que estiveram na origem de crises e ciclos negativos passados, bem como daqueles que contribuíram para a sua resolução, isso não seria suficiente para afirmar com qualquer grau de segurança que adotar determinadas políticas bastaria para resolver situações presentes e garantir resultados futuros. Como a nossa situação atual demonstra, os modelos existentes são, no mínimo, um pedacinho imperfeitos, para não dizer que são monstros acéfalos.

Mas há pessoas que supostamente sabem destes assuntos. E sabem umas coisas, naturalmente. O que não podem é saber aquilo que a ciência deles ainda não descobriu. Pensem, por analogia imperfeita, no cancro. Já se sabe bastante sobre uns quantos tipos de cancro e os tratamentos são hoje mais eficazes do que no passado, mas isso não significa que se tenha descoberto a cura do cancro. Um especialista em oncologia que seja responsável prognostica em função dos limites do que efetivamente sabe. Mas nem todos os especialistas são assim e, aparentemente, os das disciplinas em que a insegurança nos prognósticos é maior são os mais atrevidos. A chatice é que ser reconhecido como especialista cria uma maior necessidade de autoilusão quanto à própria competência, que é desse modo elevada acima da competência efetiva, e suscita um reflexo incontrolável para tentar salvar a face, fugindo em frente e ignorando, se necessário for, as evidências (encontra-se uma boa explicação disto mesmo na obra de Daniel Kahneman, um Nobel da Economia que é psicólogo). Esta compulsão para dar respostas quando não é possível saber a resposta certa tem como consequência que os “especialistas” errem tanto ou mais do que a massa bruta dos cidadãos medianamente informados.



A inutilidade prática de dar atenção a supostos especialistas de disciplinas em que o conhecimento do passado e do presente é insuficiente para prever o futuro ficou provada num impressionante estudo levado a cabo por Philip Tetlock, que ao longo de 20 anos pôs à prova as previsões de analistas políticos e economistas. Tetlock entrevistou 284 pessoas profissionalmente remuneradas como consultores ou comentadores em questões de política e economia e pediu-lhes que avaliassem a probabilidade de certas ocorrências num futuro relativamente próximo, quer sobre as áreas do planeta nas quais eram especialistas, quer sobre regiões que conheceriam menos bem. Estes especialistas apenas tinham que dizer se achavam que determinada situação permaneceria inalterada, ou se haveria mais ou menos de uma coisa qualquer, fosse crescimento económico, fosse liberdade política. Perguntou também aos entrevistados como é que chegavam às suas conclusões, como é que avaliavam os dados que não confirmavam as suas opiniões e como é que reagiam quando se provava que estavam enganados. Ao todo, reuniu mais de 80 mil previsões. Os resultados foram aterradores. Os “especialistas” teriam acertado mais vezes se tivessem atribuído o mesmo grau de probabilidade a qualquer dos três cenários possíveis. Confirmou-se também que os maiores especialistas são por vezes os que mais erram, por excesso de confiança nos seus conhecimentos e capacidades. E o mais engraçado de tudo é mesmo a dificuldade de admitirem os erros e a criatividade das justificações encontradas.    

Como se viu recentemente com o caso da demissão de um ministro, que pensou sair pela porta grande, foi acusado de escolher a porta pequena e afinal se encontrou numa porta giratória, nem os mais argutos comentadores foram capazes de prever fecho nem desfecho. Esta não é, certamente, uma ciência certa! Já se o método escolhido para retirar o ministro das Necessidades, em vez da demissão, tivesse sido a defenestração, bastaria um conhecimento elementar de física para estimar que, a uma velocidade uniformemente acelerada, o encontro do grave estadista com o pavimento teria tido consequências realmente irrevogáveis.  



08 maio, 2013

Profetas e precipitações

A minha ignorância não tem limites. Até aqui, nada de novo. Vivo menos mal com a consciência desta limitação congénita, mas todos os dias mexo uma ou duas palhas no sentido de me ilustrar um pouco e merecer um lugar à mesa de jantar. Há, porém, uma descoberta recente que me tem provocado alguma perda de apetite e reparei até nuns olhares de soslaio da figura canhota que me observa quando faço a barba. Não é para menos. É que, pelas minhas contas, devo ser praticamente a única pessoa do mundo (pelo menos fora da Coreia do Norte) que não previu a crise financeira de 2008, nem a recessão, nem as crises da dívida e do défice que se lhe seguiram. Estou que não posso.

A verdade nua e crua – como a verdade se quer a caminho do verão e perto do mar, sempre com uma pitada de sal – é que estou já um nada estrábico, fiquei até meio surdo e ando bastante deprimido de tanto ler e ouvir aqueles que, ao contrário de mim, previram tudo. Todos me dizem que se estava mesmo a ver. Só podia ter sido assim. Economistas, paraeconomistas, pseudoeconomistas, taxistas, aqueles que começam as frases com, “eu não percebo nada de economia, mas…”, para já não falar dos licenciados por equivalência nas universidades que economizam em aulas para emitir diplomas, todos, mas todinhos, previram este castelo de cartas em que só nos caem duques. Podiam ter avisado. Ao menos teria metido as cuecas na mala e desligado o fogão.

Esta minha exclusão do pouco exclusivo grupo de profetas tem, é claro, uma explicação muito simples: é que as perspicazes previsões foram quase todas feitas após as nefastas ocorrências. Ah! Pois claro! Parece um nadinha como fazer batota, não é? Estes oráculos, espontâneos ou avençados, que foram rotundamente incompetentes para prever fosse o que fosse, não deixam que esse pormenor lhes venha agora empeçar os movimentos da língua, nem embaraçar a segurança com que explicam o que não entenderam. Quem ainda lhes dê atenção, não deixará de observar a fascinante ousadia com que agora falam do futuro, a segurança com que esgrimem gráficos, contam contos e acrescentam pontos, para provar, por um lado, que o que aconteceu não poderia deixar de ter acontecido e que, em consequência, o que tem que ser não deixará de fazer valer a sua força.

O problema que me aflige é que há diagnósticos e prognósticos para todos os gostos e as receitas não podem, forçosamente, coincidir. Assim sendo, que garantias temos nós de que esta gente sabe mesmo do que fala? Se todos sabem, mas não concordam uns com os outros, que coisas saberão realmente? Que saber é este e onde está ele guardado? Podemos confiar em alguma das coisas que diariamente ouvimos? A resposta é aterradoramente fácil: claro que não. Alguém há de acertar, mas será quase por acaso. Mas atenção, eles não fazem por mal, são apenas gente como nós.

A mente humana tem uma enorme dificuldade em lidar com a incerteza e com o acaso. Grande parte dos erros cognitivos e falácias lógicas em que todos os dias incorremos (uns mais do que outros) devem-se aos esforços subconscientes para conferir ordem e sentido a fenómenos complexos e sem verdadeira coerência, ou até a simples coincidências. Tal como os índios norte-americanos pensavam que a chuva caía, após longa seca, só porque tinham dançado na véspera (ignorando todas as vezes em que a chuva se recusara a cair), também nós temos tendência para estabelecer nexos causais entre acontecimentos apenas porque ocorreram em tempos ou lugares próximos entre si (Post hoc ergo propter hoc, será que o latim ainda impressiona alguém quando basta ir ao Google buscar a definição?); procuramos confirmação para aquilo em que acreditamos, ao mesmo tempo que ignoramos os factos que poderiam provar o erro de tais convicções; vemos monstros nas nuvens, figuras mitológicas nas constelações e a Virgem Maria numa tosta mista.


Tudo isto se deve à extraordinária aptidão do nosso cérebro para garantir a sobrevivência da espécie na selva ou na savana, mas é um pouco disfuncional numa cultura saturada de sinais, em que a racionalidade faz mais falta do que os instintos primitivos. Na selva, ou na savana, mais valia errar por excesso do que por defeito. Fugir da própria sombra porque ela, por um segundo que fosse, se parecia com o leão à procura do almoço, não teria consequências nenhumas. Já ignorar a sombra, que poderia mesmo ser o leão à procura do almoço, implicaria a probabilidade, ainda que remota, de uma viagem sem regresso pelo aparelho digestivo da fera. O problema é que o nosso cérebro é ainda praticamente igual ao dos caçadores-recoletores, e esta fascinante capacidade para reconhecer padrões, quando chamada a lidar com a complexidade da selva semiótica, resulta muitas vezes em divertidas leituras de folhas de chá. Veem-se ou inventam-se padrões onde eles não existem e constroem-se narrativas para ligar ocorrências desconexas. A nossa memória, então, é particularmente criativa e infiel a engendrar histórias com os destroços do passado, à procura de um sentido para a seta do tempo.

E é por isso que as crises parecem hoje fáceis de explicar. Retrospetivamente, claro. Porque entretanto já sabemos quais as variáveis que se conjugaram para nos tramar. O problema é que na altura não se estavam mesmo a ver, porque aquilo que era possível enxergar tinha a complexa configuração, não de um, mas de múltiplos caminhos que se bifurcam e nenhum parecia necessariamente mais provável. Podia temer-se o pior, é certo, porque sabemos que o pior pode sempre acontecer, mas é preciso ter azar.

Quanto ao futuro, e ao contrário do que os irreprimíveis profetas possam vislumbrar nos seus berlindes de cristal, é apenas mais uma nuvem, que pode ou não precipitar-se.   

02 abril, 2013

Será que preciso de mais um livro?

Os livros são um produto de primeira necessidade para os cidadãos portugueses, como facilmente se constata observando as longas filas de clientes que se formam às portas das imensas e bem recheadas livrarias deste país, de norte a sul e ainda nos arquipélagos atlânticos, incluindo o das Berlengas. Fazem lembrar as filas para comprar pão e leite no já distante ano de 1975.

Neste período de apertos, porém, até os mais ávidos dos muito vorazes leitores em que os portugueses se transformaram (nos meus sonhos da noite passada), podem hesitar na hora de decidir entre comprar ou não comprar mais um livro (ou sete).

Foi para os ajudar nesse dilemático momento que transportei para esta página um sofisticado esquema que torna o processo muito simples. Comigo resulta sempre!



 Não têm nada que agradecer.

01 abril, 2013

O acordo ortográfico é inútil, mas inofensivo. Agora, descontraiam!


A exaltação com o acordo ortográfico, que há muito deveria ter entrado em vigor em todos os países de língua oficial portuguesa, mas não entrou, parece uma interminável tempestade em copo de aguardente. Mas não é apenas a falta de sobriedade que caracteriza o argumentário expendido, sobretudo pelos rezingões que passiva ou ativamente resistem à adoção do perigoso documento. A qualidade intelectual e científica da discussão deverá ficar para a história da cultura portuguesa como o equivalente contemporâneo dos debates teológicos medievais sobre o número de anjos que poderiam dançar na cabeça de um alfinete. 
  
Fez-se o acordo em nome de uma uniformização que favoreceria a compreensão mútua e fortaleceria a posição do português enquanto língua internacional. Ora, para os falantes de qualquer das variedades, a ortografia era um inimigo tão terrível como um exército de liliputianos armados com ovos de codorniz. Já do ponto de vista de qualquer estrangeiro que não conheça a língua em grande profundidade, as mudanças não serão mais visíveis do que uma caganita de mosca no fundo de um poço às escuras. Alguém ia ficar ofendido com a presença de uma consoante muda aqui ou ali? (“Minha senhora, não se incomode, assim calada até gostamos mais de a ouvir”). E alguém vai agora dar pela sua falta? Só se tiverem muito pouco que fazer, preocupações bem mesquinhas ou uma visão muito distorcida da importância fonética de um vestígio etimológico.



Para ser breve, faço apenas uma quase lista das principais razões por que acho o acordo inútil, mas inofensivo. Não há convergência entre variedades de uma língua se não houver contacto entre elas. O tipo e a frequência do contacto são também fatores determinantes. Em situações de contacto, há sempre uma variedade dominante, mas a convergência entre as variedades em contacto não significa uniformização. Essa convergência parcial ocorre naturalmente na pronúncia (por neutralização de traços mais marcados) e ainda no léxico e, talvez em menor grau, na gramática. A ortografia só seria um obstáculo se as diferenças fossem impeditivas da compreensão dos textos. Portanto, apenas na comunicação escrita. Ora, essas diferenças nunca antes impediram que em português nos entendêssemos, nem deixariam de o fazer simplesmente em virtude do acordo, que consente ainda bastante variação.

As diferenças lexicogramaticais são bem mais significativas e potencial, ou pontualmente, impeditivas da comunicação. Isto porque são também diferenças de significantes e é para produzir significados que falamos e escrevemos. Ora, como as questões lexicogramaticais não podem ser objeto de legislação avulsa, e resistem mesmo à codificação em gramáticas prescritivas – que por cá se insiste em fazer, sem cuidar de exaustivamente descrever a língua que efetivamente falamos – acordos ortográficos são meros exercícios de impotência perante um fenómeno natural, uma espécie de dique de papel contra um tsunami. As reações a esse arranjo meramente decorativo, por seu lado, sobretudo as dos prolixos abencerragens que habitam a filologia do século XIX, atingem proporções de um absurdo quixotesco. Bastaria ler com alguma atenção as reações a anteriores reformas e acordos para se perceber a triste figura que estes cavaleiros ranzinzas hoje fazem. Vá lá, descontraiam! 

27 março, 2013

A D. Adosinda trouxe-me notícias do défice

A D. Adosinda trouxe-me notícias do défice. Ela ainda insiste em chamar-lhe deficit, o que é talvez reminiscência de um tempo em que ninguém prestava muita atenção a esse cavalheiro.

A D. Adosinda é a minha consultora para assuntos de economia e finanças. Destas duas coisas ela sabe rigorosamente nada, condição que a meus olhos muito a recomenda e razão pela qual resolvi valer-me dos seus graciosos serviços. O facto de serem graciosos, no sentido de gratuitos, também pesou um pedacinho, vá. Desconfio, aliás, que só são graciosos porque a D. Adosinda ainda não deu conta de que, enquanto me limpa a casa por uma remuneração modesta, me faz o favor de abafar o som do noticiário, susbstituindo-o pela sua inestimável informação, que tem a vantagem de ser compreensível, ainda que às vezes pareça um nadinha fora de propósito.


Hoje, por exemplo, disse-me que estivera com o deficit em Sintra! Apanhado de chofre, limitei-me a arregalar os olhos para não entornar o café. Não sei se foi em Sintra que ele foi oficialmente avistado pela última vez, quando alguém das finanças veio à televisão dizer que tinha sido fortemente reduzido, mas a D. Adosinda garante-me que ele continua um belo rapaz, adjetivação simples que me parece traduzir o apreço da senhora por homens, digamos assim, robustos. Achei sensato não inquirir sobre os pormenores da coisa, uma vez que nesse exato momento a senhora se preparava para limpar o pó à jarra de porcelana que está em cima da cómoda.

As conversas com a D. Adosinda tornaram-se no momento mais luminoso dos meus dias, desde que todos os impostos me começaram a subir como uma violenta urticária, que me impede de sair de casa sem incorrer em despesas incomportáveis. Foi até a D. Adosinda que primeiro me chamou a atenção para o exorbitante preço do bitoque no snack-bar da esquina, que entretanto encerrou, e me sugeriu umas receitas fáceis e económicas, com muito ómega 3. Esta é outra coisa que muito aprecio: o cuidado que ela revela pelo meu nível de colesterol e tensão arterial. Desde o dia em que percebeu que a dilatação das minhas narinas e das veias da região temporal ocorria imediatamente após o aparecimento no écrã da televisão de uma astróloga ou de um economista, começou a desligar o aparelho da tomada para poder usar o aspirador. 

É possível que a motivação da minha consultora não seja puramente altruísta, uma vez que não lhe pago as horas vai já para três meses e um enfarte ocorrido nessas circunstâncias poderia incapacitar-me para a assinatura do cheque. Nisto a D. Adosinda tem a perspicácia dos credores do estado: faz o possível por me manter vivo, solvente e agradecido.     

25 março, 2013

Do ruído e seus malefícios, ou como me proponho ajudar a salvar a pátria sem fazer nenhum e sem ficar doente

O ruído, em geral, incomoda-me. A algaraviada obsessiva dos últimos anos, à força de martelar défices e dívidas como se fossem pregos no caixão de um defunto relutante, pode até tornar-me hipertenso, que é coisa que já eleva o incómodo a um ponto difícil de tolerar e exige cuidados especiais.

Este blogue – cujo primeiro texto exprimiu os meus temperados sentimentos quanto à aluvião opinativa que sedimentou a ignorância geral, e a minha em particular, sobre a arcana coisa económica e financeira que aflige o país e arredores – faz parte do programa de cuidados especiais que resolvi adotar. Faço-o a título meramente experimental e por razões essencialmente egoístas, na convicção, porém, de que o melhor contributo que posso dar para a resolução dos problemas do país é não tentar contribuir de todo.

Ao fazer exatamente coisa nenhuma, mas principalmente não exprimindo opiniões sobre o mal que aflige a economia e complica as contas do défice, também não aumento o nível de decibéis de que a nossa atmosfera está já saturada e que perturba certamente a concentração dos especialistas contratados para reanimar o país-quase-cadáver, que nunca mais decide se quer ser Lázaro, continuar lazarento, ou entregar de vez a alma ao criador (ou a bolsa ao credor, em ordinário vernáculo).


A justificação desta minha demissão de responsabilidades, que poderia até parecer cobardolas e fraquinha, tem, bem vistas as coisas, um muito sólido fundamento científico. Se não, vejamos. Na radiação eletromagnética, o ruído carateriza-se pela variação aleatória de frequências e amplitudes das ondas. Para o efeito que aqui interessa, e em português corrente, pode definir-se como qualquer som indesejável, que degrada a qualidade de um sinal e provoca perda de informação. Ora, a “informação” que sobra na vozearia deste mercado de jaquinzinhos políticos e postas de pescada economistas é popularmente traduzida assim: “estamos fritos!”.

Se aos vendedores das metafóricas espécies piscícolas a receita pouca diferença faz, mesmo quando acalorada e ignorantemente a discutem, já os peixinhos da exclamação não apreciam particularmente frigideiras, redes ou anzóis e preferiam, se não fosse muito incómodo para suas excelências, que os deixassem nadar em sossego e em silêncio.    

23 março, 2013

A crise económica e a crise dos saberes: observações ignorantes e algo escatológicas sobre uma espécie de dupla recessão


Recostado na confortável cadeira IKEA que o meu generoso salário público me permitiu adquirir antes do apocalipse fiscal, ocorreu-me fazer algumas observações, que só podem ser ociosas e inúteis (como eu gosto e a minha ciência permite), sobre o país em que acidentalmente me encontro desde o dia em que nasci. Primeiro, um parágrafo a armar em culto, que é coisa que também se pode aprender sem estudar muito. 

Há na sociologia da educação um modelo teórico, chamado Teoria dos Códigos de Legitimação (Legimation Code Theory, de Karl Maton et al), que permite demonstrar (ou prever) algo que à vista desarmada se pode apenas intuir. Se me é permitido traduzir sumariamente (certamente traindo) o que o modelo nos oferece para iluminar o estado intelectual do nosso país, diria que o número de opiniões expressas - que cresceu com a crise - e a convicção com que são afirmadas são inversamente proporcionais ao conhecimento produzido - que é pior do que muitas vezes nulo, ou acompanha pelo menos o crescimento negativo do PIB. Ou seja, quanto mais são os sabedores, mais incerto é o saber.

O grau de incerteza deveria talvez ser a primeira medida do clima económico e social. A incerteza é seguramente o inimigo primeiro da tranquilidade de espírito. E agentes económicos (que somos todos nós) intranquilos (quase todos nós também), são garantia de sobressalto, de depressão e, o que é para mim mais encanitante, de um número de opiniões superior ao número de orifícios anais, mas que parece desempenhar função semelhante: a de aliviar os seus proprietários de algum lastro excrementício, para o qual o sistema não encontra proveito.

Se alguém só tem opiniões, não quero saber. Dito de outro modo: quero saber, não me chegam opiniões. Não me interessa se o opinador foi ministro das finanças, se é banqueiro ou economista, se é diretor de jornal ou apenas opinador de jornal (o elo mais baixo da cadeia alimentar, por vezes também conhecido por Camilo Lourenço, o que me parece francamente injusto, uma vez que este aprendeu pelo menos a fazer contas para dar uma aparência científica a algumas ideias feitas). Se não nos tiram desta crise, ao menos que se retirem deste filme, no qual são apenas canastrões a debitar deixas mal aprendidas.

Devo dizer, no entanto, que só tenho um problema com estes exercícios quando eles são oferecidos publicamente. Ou seja, na comunicação social, nas redes sociais, na rua, no café, no táxi, no elevador... portanto, em toda a parte onde me seja difícil evitá-los sem tapar os olhos e os ouvidos. Se há coisa que deveria ser privatizada em Portugal são as opiniões. Toda a gente deveria opinar na privada.

Instantes

1   Diziam, pela calada agonia dos instantes que eram mudos.   Julgavam-nos pela constância infinita das lamentações pelo fôlego breve do pá...