24 fevereiro, 2014

Clube dos austríacos mortos

Sabem qual é a melhor maneira de governar o país? Eu não sei, mas quanto mais é o pouco que sei, mais me surpreende a segurança dos que presumem saber.

Quem conseguisse ouvir, de orelhas limpas, o que dizem políticos e comentadores, de todos os orientes ideológicos, deveria ficar confuso. Admitindo a possibilidade de alguém ser objetivo ao ponto de não deixar nenhum preconceito afetar o seu juízo, a variedade de soluções governativas incompatíveis que cobrem o céu e encobrem o sol conferiria a todos o direito à perplexidade e à ignorância. Contra lógica e razão, porém, há demasiada gente que parece nunca ter dúvidas quanto aos benefícios desta política, ou aos malefícios daqueloutra. 

Na verdade, só não fica toda a gente de olhos trocados perante discórdias e dislates, porque todos temos um filtro automático, que deixa facilmente penetrar no crânio aquilo que nos agrada e que rejeita, ou aceita com muita dificuldade, tudo o que ameace levantar o pó das ideias recebidas. É compreensível, mas é forte pena, porque significa que o nosso nível de exigência com programas políticos é demasiado baixo e se resume, em geral, a cair para o lado da cama em que dormimos melhor. No fundo, esperamos apenas que nos ofereçam o conforto das opiniões para as quais o contexto social que habitamos nos moldou e os nossos interesses nos empurram. Ninguém pense que é imune a este tipo de preconceito. Mudar de ideias, e sobretudo ser persuadido a mudar de ideias pelos argumentos de alguém que não nos seja próximo e estimado, é mais difícil do que mudar as pintas do leopardo.

Esta predisposição natural é o que explica convicções ideológicas que não passam daquilo a que me apetece chamar uma “doença mimética degenerativa”. Ou seja, tendemos a reproduzir inconscientemente, mas com crescente grau de imperfeição relativamente ao modelo original, coisas que no seu tempo não passaram de boas hipóteses explicativas para realidades outras, mas que continuamos a aceitar como se fossem os equivalentes políticos e económicos da lei da gravidade: coisas universais e imutáveis. Só que não pode haver duas leis da gravidade! Segundo as leis da física, as coisas caem todas na mesma direção e não é provável que se ouça alguém defender acaloradamente opinião contrária, a não ser, talvez, num manicómio.

Não sendo possível provar que todos os políticos, economistas e comentadores sejam loucos ou desonestos (não vale fazer piadas fáceis), conclui-se das suas divergências que, no conhecimento das sociedades e no governo das nações, as leis são menos evidentes do que nas ciências em que se podem fazer demonstrações experimentais e matemáticas. Nas ciências sociais, das três, uma: ou ainda não se encontrou uma lei da gravidade, ou a sua demonstração está por fazer, ou, simplesmente, ela não existe. Eu sei qual das três hipóteses me parece a mais provável, mas deixo que os leitores façam as suas próprias escolhas. 
           
Como não se espera que um político, muito menos um político que ocupa ou se candidata a um cargo executivo, exprima dúvidas e responda “não sei”, os países são governados com base em convicções que só podem ser, na melhor das hipóteses, “ideológicas” e, nos casos piores, a defesa de interesses instalados mais ou menos óbvios. Dando de barato a indecência desta segunda hipótese, é interessante saber como se formam as ideologias da primeira. De onde se retiram as certezas quanto à justeza (já não digo à “verdade”) do que se pensa? Como os políticos não são feitos de matéria diferente do resto dos humanos, na falta de conhecimento seguro, usam os mesmos filtros automáticos, lugares comuns e ideias “mimeticamente degeneradas” a que quase toda a gente recorre quotidianamente.

Os políticos que hoje estão em exercício, em Portugal e em muitos outros países, não revelam maior espessura intelectual do que um filete de cavala, e a linguagem que utilizam trai a origem das suas poucas ideias. Aqueles que agora nos governam pertencem, alguns sem o saberem, ao “clube dos austríacos mortos”, que continua a dominar o pensamento dos que acreditam que se descobriu uma fórmula político-económica para o melhor governo das sociedades apenas porque ficaram demonstrados o fracasso e os crimes dos regimes comunistas, mas em que o próprio conceito de sociedade é enfraquecido pelo individualismo que constitui o núcleo da doutrina. Na famosas palavras de Thatcher: “There is no such thing as society. There are individual men and women, and there are families.” (Não há sociedade. Há homens e mulheres individuais e há famílias.)

No livro Ill Fares the Land (2010), o historiador Tony Judt traçou sumariamente a descendência intelectual das ideias dominantes que desde a década de oitenta fizeram marcha atrás nas reformas sociais do período posterior à 2ª Guerra Mundial. Se a origem próxima da fé cega nas virtudes do mercado, mais ou menos desregulado, e do suposto imperativo de reduzir o papel do estado à insignificância, está nos chamados “rapazes de Chicago”, a doutrina destes é já uma degenerescência de ideias anteriores, nascidas num contexto político e social bem diferente daquele em que vivemos hoje.

F. A. Hayek e Ludwig von Mises.

Mas o problema não está nas ideias de Friedrich Hayek ou Ludwig von Mises, que inspiraram a doutrina do mercado livre da “Escola de Chicago”, nem na ideia de “destruição criativa” do capitalismo de Joseph Schumpeter, muito menos na “sociedade aberta” de Karl Popper, ou até nos métodos de gestão de Peter Drucker. A Áustria em que todos eles nasceram, viveram e da qual todos eles escaparam, entre o crepúsculo do império Austro-Húngaro e as convulsões políticas e económicas que se prolongaram até ao fim da Guerra Fria, sob a ameaça permanente e sucessiva de regimes opressivos e sanguinários movidos por ideologias arregimentadoras e coletivizantes, pode explicar em boa parte o seu excessivo individualismo e a resistência a conceitos e categorias que lhes recordassem tribulações passadas. Compreensível instinto, e uma defesa contra extremos indesejáveis, mas que exige contextualização e distância crítica, que nos protejam hoje de outros dogmatismos, receituários simplistas, ou “ideias mimeticamente degeneradas”.  

Traduzo aqui algumas palavras de Tony Judt:

“(…) quando recapitulamos os clichés convencionais sobre mercados livres e liberdades ocidentais, estamos de facto a fazer eco – como luz de uma estrela que empalidece – de um debate inspirado e ocorrido há setenta anos, entre homens na sua maioria nascidos em finais do século XIX. É verdade que os termos económicos em que somos levados a pensar hoje em dia não são geralmente associados a estas distantes divergências e experiências políticas. A maioria dos estudantes de pós-graduações em gestão nunca ouviram falar de alguns destes exóticos pensadores estrangeiros e não são encorajados a lê-los. E no entanto, sem um entendimento das origens austríacas da sua (e da nossa) maneira de pensar, é como se falássemos uma língua que não compreendemos inteiramente.”
E vamos continuar a falar. E a ouvir. E a não compreender muito bem aquilo que dizemos ou ouvimos. Mas nem por isso duvidando o suficiente. Duvidamos dos políticos e, no entanto, vamos caucionando as políticas. Só porque precisamos de acordar amanhã e de acreditar que é outro dia, mas sem sabermos bem o que nos dizem, ou o que aquilo que nos dizem quer dizer.     

14 fevereiro, 2014

Mudar de sheep

A situação do país continua a preocupar-me um bocadinho, mas aparentemente não devia. Não só é bastante evidente que estamos todos cerca de zero-vírgula-quase-nada-por-cento mais ricos, como finalmente descobrimos que o país está nas mãos de um bom pastor. Perdão, gestor. Eu não sou grande coisa em contas, por isso não entendi bem como é que esta soma se traduziu em mais uma subtração no meu boletim de vencimento, mas também pode ser a graduação dos óculos.

Ou então, tudo isto se passa num quadro surrealista. Uma destas noites, não sei se mal acordado, meio adormecido ou simplesmente em sonhos, julguei ouvir o primeiro-ministro fazer uma palestra (discurso, alocução, aula de gestão?) sobre Mirós e ovelhas. Perante um auditório de autarcas, o senhor de São Bento entoava mais uma vez o recitativo da dívida seguido da ária da troika e, não obstante ser barítono, atreveu-se, qual tenor, a um dó de peito por causa de umas telas que não podia ter. Dava ele a entender que quem não tem dinheiro, não tem bichos.

Sem alucinogénio que explicasse a estranheza do que ouvia, comecei a suspeitar de um estado de dissonância cognitiva quando o PM verberou aqueles que se julgam donos do país e ainda por cima querem uns Mirós, mas que, afinal, parece que só têm umas ovelhas velhas (ponto de exclamação!).

Cartaz do filme "Black Sheep", 2006

É possível que a minha confusão se deva ao facto de o orador ter usado termos estrangeiros (estes gestores gostam muito de falar inglês). Segundo ele, “é preciso mudar de sheep”. Precisamos todos de mudar de sheep, aparentemente. Ainda sem entender a relação entre os quadros de Miró e o gado ovino, percebi que afinal podemos ter bichos, desde que sejam umas ovelhas novas.

Para quem não saiba inglês, nem a consoante inicial de chip (a palavra que Passos Coelho tentou dizer) se pronuncia como a de sheep (a que ele efetivamente disse), nem as vogais rimam. Mas chip rima com ship, o barco em que estamos metidos neste dilúvio e do qual só vão sair ilesos os tubarões e o caruncho. 

De uma só penada, o primeiro-ministro demonstrou o seu amor pela arte e pelo património e apresentou uma justificação prática da necessidade de testes de inglês no 9º ano.


Arde

Mark Rothko, Number 14 (1960) Arde calma a culpa como a tarde cai.   Arde melhor o que não podes ver.   Por baixo da terra atos omiss...