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30 março, 2014

Armados e perigosos

Regresso hoje ao que mais me exaspera e deprime nas conversas diárias sobre a crise. Como tenho tentado dizer nestas páginas, de várias maneiras e com insucesso garantido (ver posts anteriores), há menos verdade nas ideias que determinam decisões políticas e económicas do que muitos, nas suas vãs filosofias, gostariam de acreditar, ou de fazer-nos acreditar. “Há mais coisas entre o céu e a terra, Horácio!” Há mais de mil maneiras de fazer bacalhau, mais do que uma maneira de esfolar o gato, e até, obviamente, várias maneiras de pagar uma dívida. É a política, estúpido!

E a política, além de ser “a arte do possível, do alcançável – a arte da segunda melhor escolha” (tradução aproximada das palavras de Bismarck) é necessariamente discurso e retórica, porque as palavras são as suas armas principais. A expressão “luta política” diz quase tudo sobre a herança belicosa dos confrontos verbais mais ou menos ritualizados a que hoje praticamente se resumem os debates parlamentares e os comícios e passeatas de fim de semana para consumo televisivo.



As palavras desta “luta” são muitas vezes armas sujas e de pontaria incerta, o que significa que têm incalculáveis danos colaterais. Quase sempre ocultam mais do que revelam e os bordões a que recorrem traem uma indigência intelectual perigosa, a prevalência inquietante de atávicos simplismos, ou ambas as coisas simultaneamente. As ideias da “culpa” da dívida e da sua “expiação”, mediante certos “sacrifícios”, por exemplo, que estão implícitas ou explícitas em muitos discursos pseudo-explicativos, são noções arquetípicas que caem bem ao puritanismo calvinista e ao masoquismo católico – ou ao casamento feliz dos dois na conjuntura atual – subjacentes até nas palavras dos mais laicos pensadores, mas ensinam coisa nenhuma sobre a natureza realmente complexa dos sarilhos em que estamos metidos. Causa não é sinónimo de culpa; dívida não é sinónimo de pecado e o “sacrifício” de pessoas inocentes no fogo do inferno do desemprego e da pobreza não devia ser solução aceitável.

Dava jeito aos pobres portugueses que os políticos deixassem de usar metáforas mortas e se libertassem dos seus amuletos verbais; que parassem de procurar, ou fingir que procuram, culpas e culpados (tirando os óbvios criminosos), e que tratassem de encontrar explicações válidas e verdadeiras soluções. O chumbo de dispersão verbal com que mutuamente se alvejam polui o ar que respiramos e deixa atrás uma nuvem negra que leva tempo a dissipar-se e não permite discernir na linha do horizonte saída “limpa” (lavada dos pecados?) para futuro algum.

Brandindo armas que usam mal, ou usam com segundas intenções, os políticos são perigosos e deveriam ser vigiados por quem os soubesse obrigar a morder a língua e a morrer do seu próprio veneno. Os vigilantes que hoje temos não servem, porque muitos jornalistas e comentadores não sabem, ou não querem, falar língua diferente e apenas ecoam as palavras que os políticos preferem que se ouçam.

O mundo muda todos os dias, mas nós estamos metidos numa camisa de forças políticas cujo discurso estagnado amortalha o país, que só não vai morrer porque é teimoso. 

Instantes

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