Regresso hoje ao que mais me exaspera e deprime nas conversas diárias sobre
a crise. Como tenho tentado dizer nestas páginas, de várias maneiras e com
insucesso garantido (ver posts anteriores), há menos verdade nas
ideias que determinam decisões políticas e económicas do que muitos, nas suas
vãs filosofias, gostariam de acreditar, ou de fazer-nos acreditar. “Há mais
coisas entre o céu e a terra, Horácio!” Há mais de mil maneiras de fazer
bacalhau, mais do que uma maneira de esfolar o gato, e até, obviamente, várias
maneiras de pagar uma dívida. É a política, estúpido!
E a política, além de ser “a arte do possível, do alcançável – a arte da
segunda melhor escolha” (tradução aproximada das palavras de Bismarck) é
necessariamente discurso e retórica, porque as palavras são as suas armas
principais. A expressão “luta política” diz quase tudo sobre a herança belicosa
dos confrontos verbais mais ou menos ritualizados a que hoje praticamente se
resumem os debates parlamentares e os comícios e passeatas de fim de semana
para consumo televisivo.
As palavras desta “luta” são muitas vezes armas sujas e de pontaria incerta,
o que significa que têm incalculáveis danos colaterais. Quase sempre ocultam
mais do que revelam e os bordões a que recorrem traem uma indigência
intelectual perigosa, a prevalência inquietante de atávicos simplismos, ou
ambas as coisas simultaneamente. As ideias da “culpa” da dívida e da sua “expiação”,
mediante certos “sacrifícios”, por exemplo, que estão implícitas ou explícitas em
muitos discursos pseudo-explicativos, são noções arquetípicas que caem bem ao
puritanismo calvinista e ao masoquismo católico – ou ao casamento feliz dos
dois na conjuntura atual – subjacentes até nas palavras dos mais laicos
pensadores, mas ensinam coisa nenhuma sobre a natureza realmente complexa dos
sarilhos em que estamos metidos. Causa não é sinónimo de culpa; dívida não é
sinónimo de pecado e o “sacrifício” de pessoas inocentes no fogo do inferno do
desemprego e da pobreza não devia ser solução aceitável.
Dava jeito aos pobres portugueses que os políticos deixassem de usar metáforas
mortas e se libertassem dos seus amuletos verbais; que parassem de procurar, ou
fingir que procuram, culpas e culpados (tirando os óbvios criminosos), e que
tratassem de encontrar explicações válidas e verdadeiras soluções. O chumbo de
dispersão verbal com que mutuamente se alvejam polui o ar que respiramos e
deixa atrás uma nuvem negra que leva tempo a dissipar-se e não permite discernir
na linha do horizonte saída “limpa” (lavada dos pecados?) para futuro algum.
Brandindo armas que usam mal, ou usam com segundas intenções, os políticos
são perigosos e deveriam ser vigiados por quem os soubesse obrigar a morder a
língua e a morrer do seu próprio veneno. Os vigilantes que hoje temos não servem,
porque muitos jornalistas e comentadores não sabem, ou não querem, falar língua
diferente e apenas ecoam as palavras que os políticos preferem que se ouçam.
O mundo muda todos os dias, mas nós estamos metidos numa camisa de forças
políticas cujo discurso estagnado amortalha o país, que só não vai morrer
porque é teimoso.