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08 outubro, 2014

Tsundoku: caos, acaso e complexidade


O meu escritório é muito dado à ocorrência de um fenómeno que, aparentemente, só os japoneses nomearam. Chama-se tsundoku. Se tsunami, palavra igualmente japonesa mas já universalizada, designa um fenómeno natural de consequências geralmente catastróficas, tsundoku designa um fenómeno, digamos, cultural, que consiste na acumulação mais ou menos desordenada – em pilhas, pirâmides ou torres de pisa – de livros que se adquiriram e continuam ainda por ler (o “ainda” é uma manifestação de obstinada resistência da minha parte ao derrotismo que os mais espessos volumes ou impenetráveis temas e autores podem induzir).

Pode haver quem, um pouco levianamente, chame “caos” a esta simples falta de arrumação. Mas é uma aceção fraca da palavra caos. Neste sentido corrente e desvalorizado, caos é uma coisa má e que se resolve de maneira simples: ou se tira uma semana de férias e se arruma tudo alfabética e tematicamente nas prateleiras (se ainda houver nelas espaço para estes novos refugiados da guerra do indivíduo contra a finitude do tempo), ou se chama a D. Adosinda para lhe chegar um fósforo e acender um biblioclasmo privado, assim consumindo, numa estúpida solução final, qualquer ideia que me pudesse amanhecer no entreabrir de uma negligenciada janela impressa. A simplicidade da solução ignora a maravilhosa complexidade do problema.

“Complexidade” é outro termo, aliás parente científico do conceito de caos (e que as pessoas usam também de uma maneira que pouco ou nada quer dizer) que explica melhor as propriedades emergentes de uma pilha de livros na sua potencial interação com uns neurónios acesos. Na aceção que significa alguma coisa de jeito, “complexo” não quer dizer complicado, nem difícil, nem simplesmente designa um sistema com muitos elementos. No sentido corrente – o sentido simples de complexidade, um quase paradoxo engraçado – para perceber um problema basta dividi-lo nas partes que o constituem, analisar cada uma delas e juntá-las todas outra vez. Chama-se a esse método “reducionismo” e o seu sucesso pressupõe que o todo seja igual à soma das partes. O motor de um automóvel é um bom exemplo destes sistemas simples, redutíveis à soma das partes (o que não quer dizer que não seja impenetrável para pessoas como eu).

Muita ciência opera, com assinalável sucesso, segundo esse princípio metodológico. Mas num sistema realmente complexo, que também é designado como dinâmico e adaptativo – o que quer dizer que muda pelo facto de ser “composto de mudança”, sem que agente algum controle o sentido dessa mesma mudança – o todo não é igual à soma das partes. Ou seja, não é possível, em rigor, prever o resultado das carambolas de bilhar dos muitos elementos que o compõem. Imaginem uma mesa de bilhar com 20 bolas em movimento e pensem o que seria calcular a trajetória de cada uma delas ao longo de uma simples meia dúzia de choques. Não é muito difícil, é bem mais parecido com “muito impossível”.

As propriedades destes sistemas dizem-se “emergentes” porque são o resultado das “iterações” dos mesmos pela “interação” das partes que os compõem e são algo que não existia anteriormente. A rede complexa de nódulos e ligações atualiza-se e transforma-se a cada instante (as células de um organismo, por exemplo), numa espécie de imponderabilidade quântica em que tudo é probabilístico, mas o grau provável de confiança em qualquer previsão pode ser como jogar numa fantástica lotaria.

A cada instante, ainda que impercetivelmente, um sistema complexo é, portanto, uma coisa nova, aparentada com o seu estado anterior – como a nossa cara pela manhã se parece geralmente com a cara da véspera, salvo qualquer erupção cutânea ou ressaca violenta – mas já irreversivelmente outra. Por isso as ideias de que a história se repete, ou de que o país não muda, são por vezes perigosas literalizações de simples figuras de estilo. É certo que tem graça identificar o parentesco entre o comendador Acácio e uns quantos traseiros parlamentarmente assentados, mas convém não esquecer que até as moscas e as suas preferências gastronómicas evoluem por seleção natural.

Os sistemas complexos/dinâmicos/adaptativos são uma das fronteiras da ciência moderna. Quando se diz que os meteorologistas se enganam muito, ou que os arquitetos urbanistas de hoje são piores do que os romanos, ou que os psicólogos e sociólogos não servem para nada, é porque não se percebe que os problemas que estes enfrentam são desta espécie de complexidade (desconfio que alguns deles também não percebem, mas isso é outro problema). Quem não conviva prudentemente com o grau de incerteza próprio de sistemas biológicos, sociais e ecológicos (três caixinhas chinesas a contar de baixo), está mais ou menos condenado a pensar como o dr. Marinho e Pinto, economistas das Neves e analistas Lourenços, ou os ouriços-cacheiros de Isaiah Berlin (pensadores de uma única ideia à qual reduzem, ou reconduzem, todo o universo e arredores). 

O que me traz de volta ao fascinante tsundoku que me rodeia. Neste meu pequeno sistema complexo, em que livros se encontram por aparente acidente, nunca se sabe bem o livro que se segue. Não sei o livro que vou ler a seguir; não sei se a seguir vou ler mais do que um livro; não sei sequer se a seguir me apetece ler qualquer destes livros (o carteiro continua a entregar encomendas e as livrarias ainda não fecharam); não sei o que algum destes livros poderá mudar na arrumação do meu sótão de neurónios e sinapses… Só sei que não vou arrumar nada hoje. E isso é bom.

08 maio, 2013

Profetas e precipitações

A minha ignorância não tem limites. Até aqui, nada de novo. Vivo menos mal com a consciência desta limitação congénita, mas todos os dias mexo uma ou duas palhas no sentido de me ilustrar um pouco e merecer um lugar à mesa de jantar. Há, porém, uma descoberta recente que me tem provocado alguma perda de apetite e reparei até nuns olhares de soslaio da figura canhota que me observa quando faço a barba. Não é para menos. É que, pelas minhas contas, devo ser praticamente a única pessoa do mundo (pelo menos fora da Coreia do Norte) que não previu a crise financeira de 2008, nem a recessão, nem as crises da dívida e do défice que se lhe seguiram. Estou que não posso.

A verdade nua e crua – como a verdade se quer a caminho do verão e perto do mar, sempre com uma pitada de sal – é que estou já um nada estrábico, fiquei até meio surdo e ando bastante deprimido de tanto ler e ouvir aqueles que, ao contrário de mim, previram tudo. Todos me dizem que se estava mesmo a ver. Só podia ter sido assim. Economistas, paraeconomistas, pseudoeconomistas, taxistas, aqueles que começam as frases com, “eu não percebo nada de economia, mas…”, para já não falar dos licenciados por equivalência nas universidades que economizam em aulas para emitir diplomas, todos, mas todinhos, previram este castelo de cartas em que só nos caem duques. Podiam ter avisado. Ao menos teria metido as cuecas na mala e desligado o fogão.

Esta minha exclusão do pouco exclusivo grupo de profetas tem, é claro, uma explicação muito simples: é que as perspicazes previsões foram quase todas feitas após as nefastas ocorrências. Ah! Pois claro! Parece um nadinha como fazer batota, não é? Estes oráculos, espontâneos ou avençados, que foram rotundamente incompetentes para prever fosse o que fosse, não deixam que esse pormenor lhes venha agora empeçar os movimentos da língua, nem embaraçar a segurança com que explicam o que não entenderam. Quem ainda lhes dê atenção, não deixará de observar a fascinante ousadia com que agora falam do futuro, a segurança com que esgrimem gráficos, contam contos e acrescentam pontos, para provar, por um lado, que o que aconteceu não poderia deixar de ter acontecido e que, em consequência, o que tem que ser não deixará de fazer valer a sua força.

O problema que me aflige é que há diagnósticos e prognósticos para todos os gostos e as receitas não podem, forçosamente, coincidir. Assim sendo, que garantias temos nós de que esta gente sabe mesmo do que fala? Se todos sabem, mas não concordam uns com os outros, que coisas saberão realmente? Que saber é este e onde está ele guardado? Podemos confiar em alguma das coisas que diariamente ouvimos? A resposta é aterradoramente fácil: claro que não. Alguém há de acertar, mas será quase por acaso. Mas atenção, eles não fazem por mal, são apenas gente como nós.

A mente humana tem uma enorme dificuldade em lidar com a incerteza e com o acaso. Grande parte dos erros cognitivos e falácias lógicas em que todos os dias incorremos (uns mais do que outros) devem-se aos esforços subconscientes para conferir ordem e sentido a fenómenos complexos e sem verdadeira coerência, ou até a simples coincidências. Tal como os índios norte-americanos pensavam que a chuva caía, após longa seca, só porque tinham dançado na véspera (ignorando todas as vezes em que a chuva se recusara a cair), também nós temos tendência para estabelecer nexos causais entre acontecimentos apenas porque ocorreram em tempos ou lugares próximos entre si (Post hoc ergo propter hoc, será que o latim ainda impressiona alguém quando basta ir ao Google buscar a definição?); procuramos confirmação para aquilo em que acreditamos, ao mesmo tempo que ignoramos os factos que poderiam provar o erro de tais convicções; vemos monstros nas nuvens, figuras mitológicas nas constelações e a Virgem Maria numa tosta mista.


Tudo isto se deve à extraordinária aptidão do nosso cérebro para garantir a sobrevivência da espécie na selva ou na savana, mas é um pouco disfuncional numa cultura saturada de sinais, em que a racionalidade faz mais falta do que os instintos primitivos. Na selva, ou na savana, mais valia errar por excesso do que por defeito. Fugir da própria sombra porque ela, por um segundo que fosse, se parecia com o leão à procura do almoço, não teria consequências nenhumas. Já ignorar a sombra, que poderia mesmo ser o leão à procura do almoço, implicaria a probabilidade, ainda que remota, de uma viagem sem regresso pelo aparelho digestivo da fera. O problema é que o nosso cérebro é ainda praticamente igual ao dos caçadores-recoletores, e esta fascinante capacidade para reconhecer padrões, quando chamada a lidar com a complexidade da selva semiótica, resulta muitas vezes em divertidas leituras de folhas de chá. Veem-se ou inventam-se padrões onde eles não existem e constroem-se narrativas para ligar ocorrências desconexas. A nossa memória, então, é particularmente criativa e infiel a engendrar histórias com os destroços do passado, à procura de um sentido para a seta do tempo.

E é por isso que as crises parecem hoje fáceis de explicar. Retrospetivamente, claro. Porque entretanto já sabemos quais as variáveis que se conjugaram para nos tramar. O problema é que na altura não se estavam mesmo a ver, porque aquilo que era possível enxergar tinha a complexa configuração, não de um, mas de múltiplos caminhos que se bifurcam e nenhum parecia necessariamente mais provável. Podia temer-se o pior, é certo, porque sabemos que o pior pode sempre acontecer, mas é preciso ter azar.

Quanto ao futuro, e ao contrário do que os irreprimíveis profetas possam vislumbrar nos seus berlindes de cristal, é apenas mais uma nuvem, que pode ou não precipitar-se.   

Instantes

1   Diziam, pela calada agonia dos instantes que eram mudos.   Julgavam-nos pela constância infinita das lamentações pelo fôlego breve do pá...