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04 julho, 2015

Um dilema em dias de ócio


Se eu quisesse, escrevia hoje sobre o dilema grego. Afinal, dilema é uma palavra de origem grega, formada pelo prefixo di-, que significa dois, e por lemma, que significava premissa, ou coisa recebida e aceite como verdadeira. Na lógica, dilemma era uma espécie de silogismo, no qual, de duas proposições apresentadas, uma ou outra seria verdadeira. Mas, oxi ou nai? Na retórica, consistia em oferecer a um opositor a escolha entre duas alternativas igualmente desfavoráveis. Oxi ou nai? No vertente dilema helénico, a escolha que os incríveis credores oferecem é mais ou menos a de um salteador ganancioso que se engana nas conjunções: “A bolsa e a vida!”

E é isto a vida? É a economia? São a mesma coisa? Não parece que se trata apenas de política ao serviço de um certo sistema financeiro? Os pobres que se amanhem ou que saiam de baixo.

As coisas podiam ser de outra maneira, se as pessoas deixassem de achar tudo óbvio e natural em matéria de economia. Se deixassem de aceitar os lemmas, as premissas, dos silogismos que as leis do lucro e do mais forte impõem como “lógicos”. Mas para deixarem de achar tudo óbvio, precisariam de estudar mais, em vez de lerem jornais ou de irem às universidades adquirir certificados de comportamento ideologicamente correto, por equivalência ou não. Se estudassem mais, até deixariam de achar que a economia é a mesma coisa que o sistema económico e descobririam, talvez, que nem uma nem outro são fenómenos naturais, como os terramotos ou os golos do Eusébio. As coisas podiam ser de outra maneira porque são pessoas que as pensam e que as fazem. Chama-se cultura, isso que as pessoas colhem do que em sociedade semeiam. A economia é o que as pessoas juntas dela fizerem.

Então, e há para aí leituras para pensar sobre o mundo “fora do caixão” em que levaram o cérebro a sepultar?* O que se poderia ler então para abrir um pouco a janela deste sufoco ideológico? Sei lá. Talvez Debt, the First 5,000 Years, de David Graeber, para uma visão antropológica de longo alcance histórico e cultural sobre dívidas e dinheiro, a começar pelo mito fundador da doutrina económica, que vem de Adam Smith e que todos os manuais de economia repetem desde 1776 sem terem investigado nada: a ideia de que antes de haver dinheiro os negócios se faziam pela troca direta de géneros. Parece que nunca foi assim, revelação que relativiza bastante tudo o que se possa ler sobre “economia” (as aspas fazem já parte do meu processo de relativização). Pelo menos, ler Graeber ajuda a pôr tudo noutra perspetiva. Não é indiferente o lugar de onde se olha, nem é bom ignorar o lugar dos outros. 
 
Se eu quisesse escrevia sobre o dilema grego. Mas para isso era preciso que estivesse mais interessado em economia e em negócios, o que só seria possível se “negócio” não fosse uma palavra de origem latina formada pelo prefixo negativo nec- (não) e pela palavra otium, que deu o nosso “ócio”, e significava tempo de lazer, dedicado ao descanso, à comida, aos jogos, à contemplação ou ao estudo. Negócio? Não ao ócio? Oxi, claro, porque hoje é sábado e amanhã é domingo.


* Esta pergunta é uma forma de retaliação em espécie contra a estratégia retórica dos pensadores da monocultura dominante, que consiste em chamar estúpidos a todos os que pensam de maneira diferente.

06 junho, 2015

As estantes: monoculturas e o mundo claramente invisível

you can't leave me on the shelf
you gotta commit yourself

Billie Holiday, “Now or Never” (1949)

Quando olho para uma estante, vejo apenas um sítio para arrumar livros. Tenho uma visão pitosga do mobiliário e da decoração. Embora saiba que as prateleiras podem ser usadas para colocar muitos outros objetos, a coisa que primeiro me ocorre, certamente por força do que a vida me fez e do que eu faço dela, é aquilo que as prateleiras podem fazer pela minha modesta biblioteca. A limitação não está nas estantes, portanto, mas na minha imaginação.

As minhas estantes são estantes especializadas. Como se especializaram em livros, estes acabaram por ocupar todo o espaço de que elas podiam dispor. Logo, as estantes são como as pessoas. Às nossas especializações, profissionais ou diletantes, costumamos chamar “ocupações”, designação que parece apropriada, uma vez que elas ocupam muito do espaço onde outras coisas poderiam caber. Podem ir ocupando literalmente o espaço físico e finito das casas onde vivemos, se forem como as estantes de quem adquire muitos livros, por exemplo, mas ocupam sobretudo o espaço da mente, cujo potencial infinito costumamos confinar aos dois ou três quartinhos habituais, aqueles recantos da casa do ser que nos dão o conforto da familiaridade.

Somos, pelo menos em parte, aquilo que nos ocupa, mas estes hábitos ocupacionais são apenas aquilo de que podemos mais facilmente falar quando nos apresentamos a alguém. Dizemos: “sou professor”, “sou eletricista”, “sou melómano”, “sou colecionador de borboletas”, etc. As ocupações são identidades de cartão, bidimensionais e recicláveis, embora poucas vezes as reciclemos de forma voluntária, porque perder um hábito que socialmente nos define é mais difícil do que perder alguém de família.

E quando a autodefinição nos agrada, persistimos. Se a persistência se torna monomania, porém, podemos um dia acordar com o mundo às avessas: em vez de ver nas estantes superfícies para arrumação de livros, podemos dar connosco a achar que o mundo inteiro é apenas um conjunto de estantes em potência. O hábito torna-se assim num vício com inclinações expansionistas. A partir daí, a lógica já só existe na mente do obcecado bibliómano, que ainda assim a achará evidente e universalmente compreensível.

Todo o mundo é uma estante

Portanto, até os bons hábitos podem ser maus. A especialização disciplinar dos estudiosos de qualquer matéria é um desses hábitos expansionistas: é uma coisa tão boa que pode ser catastrófica. É desejável, porque é sempre preciso saber mais e é impossível não restringir aquilo que se estuda a uma pequena parcela da realidade de cada vez. Só que, quanto mais o olhar se especializa e mais é o que vê no menos que olha, mais é também o que perde naquilo que deixa de olhar:

Até que a luz que se faz não deixa ver
a luz inteira
e a noite fechada de fraco fósforo
se alumia 

Aquilo que nos define pode ser também aquilo que nos cega e nos constrange. E constrange e obscurece o mundo ao ponto de o tornar invisível, de tão claro.

Mas o que é realmente aterrador é quando a visão estreita de pessoas individuais se transforma em todo um Zeitgeist, que em português se costuma traduzir por “espírito do tempo”. É o que ocorre quando o olhar de uma especialidade se transforma na única maneira de pensar sobre a realidade, ou uma parte considerável dela, quando uma monomania se transforma numa monocultura.

Infelizmente, vivemos numa dessas monoculturas e a especialidade que arruma o mundo todo nas suas prateleiras é a economia. Já ouvi dizer que a crise nos transformou a todos em economistas instantâneos, o que, para mim, não significa que haja mais gente a perceber melhor o que se passa, mas mais gente a olhar para o mundo pelo lado errado do telescópio. Pode ser que muitos não tenham dado conta, mas toda a conversa que passa por política nestes tempos que não correm, mas se arrastam, não é mais do que a redução pitosga da sociedade a um conjunto de indicadores macroeconómicos e variáveis contabilísticas.

A sociedade não é redutível a relações económicas. A economia não é uma “teoria de tudo”. Andam a pôr a nossa vida nas prateleiras erradas.

18 abril, 2014

Uma vida normal, ou o regresso da ovelha que não gosta de rebanhos

Este blogue mudou de nome. Não sei se agora será ainda a mesma coisa. O título original, “Crises e coisas feias”, conduzia os seus temas possíveis à viela estreita em que o país se deixou enfiar, ou no qual acordou encafuado por artes da quadrilha de contabilistas criativos e engenheiros da finança a quem entregou a pasta e o papel. Era um óbvio produto destes tempos difíceis e das erupções cutâneas que os fala-barato me provocam. Num certo sentido, acabava por padecer, por contágio e por contexto, de um dos males que queria diagnosticar: a redução da política a meros “ajustes de contas” – quer em sentido literal, quer figurado – e a redução do mundo e da vida à linguagem da gestão e dos mercados.

Governar, hoje, consiste quase exclusivamente em reduzir o défice (a qualquer preço) e fazer política não é mais do que o arremesso de projéteis avulsos ao telhado do vizinho. É pobrezinho. Na cabeça de demasiada gente, já não vivemos numa economia de mercado, mas numa “sociedade de mercado”, em que tudo se pode comprar e vender – desde os melões, às atenções – e em que tudo tem um preço, mas nada tem grande valor. Viver, assim, não é preciso.

O novo título do blogue, “A agenda do eremita”, sugere a liberdade que uma certa forma de solidão permite. Sem pertencer a nenhuma forma de organização coletiva (ser sócio do ACP não conta!), nem me sentindo especialmente atado por baraços profissionais (sinto-me, na minha corporação, um corpo estranho, ainda que essencialmente inerte), fico desobrigado de seguir o rebanho e dispensado de balir em uníssono na hora da ordenha. Esta ovelha não dá leite. E para o atual peditório já todos demos mais do que a conta. Só não demos os tiros que alguns mereceriam, se a revolução certa se pudesse fazer na rua.


LS Lowry: "Man Lying on a Wall", 1957

E há, certamente, uma revolução a fazer, mas é uma revolução de dar voltas à cabeça, exercício que provoca algumas vertigens. Hei de voltar a essas voltas um dia destes (se entretanto não mudar de ideias), mas a minha vida não é isto. É que, ao contrário do que os escritos anteriores poderiam sugerir, a economia e a política ocupam uma parte bastante pequenina dos meus dias. Aliás, uma das minhas estratégias de sobrevivência consiste mesmo em evitar noticiários, debates e entrevistas sobre o estado de sítio, não vá a coisa passar-me a peçonha e deixar-me a falar (e a pensar?) como os jornalistas da bolsa e dos negócios: “abrindo em baixa”, “em linha com outras praças”, “seguindo no vermelho” ou “encerrando em contra ciclo”. Ah! A pura poesia dos mercados… passados, futuros e derivados!

Este blogue estava a precisar que eu o deixasse ter uma “vida normal”, como todos os portugueses estão a precisar que os deixem ter uma vida normal. Numa vida normal e num país decente, cada um deveria poder dedicar-se à sua atividade cuidando apenas de fazer bem (e de, não podendo ou não sabendo amar, ao menos não fazer mal aos outros). Numa vida normal e num país tolerável, ninguém deveria estar entalado entre as angústias do Sudão e os impostos da Suécia. Numa vida normal e num país que não me desse urticária, eu não me ocuparia só de crises e de coisas feias por causa do bom e do bonito.

Por enquanto, ainda há quem se lembre da vida antes do eufemístico “ajustamento”: dos cortes que foram uma ceifa, da poda que foi um desbaste e do enxerto que foi de porrada. A nossa vida não é isto.

24 fevereiro, 2014

Clube dos austríacos mortos

Sabem qual é a melhor maneira de governar o país? Eu não sei, mas quanto mais é o pouco que sei, mais me surpreende a segurança dos que presumem saber.

Quem conseguisse ouvir, de orelhas limpas, o que dizem políticos e comentadores, de todos os orientes ideológicos, deveria ficar confuso. Admitindo a possibilidade de alguém ser objetivo ao ponto de não deixar nenhum preconceito afetar o seu juízo, a variedade de soluções governativas incompatíveis que cobrem o céu e encobrem o sol conferiria a todos o direito à perplexidade e à ignorância. Contra lógica e razão, porém, há demasiada gente que parece nunca ter dúvidas quanto aos benefícios desta política, ou aos malefícios daqueloutra. 

Na verdade, só não fica toda a gente de olhos trocados perante discórdias e dislates, porque todos temos um filtro automático, que deixa facilmente penetrar no crânio aquilo que nos agrada e que rejeita, ou aceita com muita dificuldade, tudo o que ameace levantar o pó das ideias recebidas. É compreensível, mas é forte pena, porque significa que o nosso nível de exigência com programas políticos é demasiado baixo e se resume, em geral, a cair para o lado da cama em que dormimos melhor. No fundo, esperamos apenas que nos ofereçam o conforto das opiniões para as quais o contexto social que habitamos nos moldou e os nossos interesses nos empurram. Ninguém pense que é imune a este tipo de preconceito. Mudar de ideias, e sobretudo ser persuadido a mudar de ideias pelos argumentos de alguém que não nos seja próximo e estimado, é mais difícil do que mudar as pintas do leopardo.

Esta predisposição natural é o que explica convicções ideológicas que não passam daquilo a que me apetece chamar uma “doença mimética degenerativa”. Ou seja, tendemos a reproduzir inconscientemente, mas com crescente grau de imperfeição relativamente ao modelo original, coisas que no seu tempo não passaram de boas hipóteses explicativas para realidades outras, mas que continuamos a aceitar como se fossem os equivalentes políticos e económicos da lei da gravidade: coisas universais e imutáveis. Só que não pode haver duas leis da gravidade! Segundo as leis da física, as coisas caem todas na mesma direção e não é provável que se ouça alguém defender acaloradamente opinião contrária, a não ser, talvez, num manicómio.

Não sendo possível provar que todos os políticos, economistas e comentadores sejam loucos ou desonestos (não vale fazer piadas fáceis), conclui-se das suas divergências que, no conhecimento das sociedades e no governo das nações, as leis são menos evidentes do que nas ciências em que se podem fazer demonstrações experimentais e matemáticas. Nas ciências sociais, das três, uma: ou ainda não se encontrou uma lei da gravidade, ou a sua demonstração está por fazer, ou, simplesmente, ela não existe. Eu sei qual das três hipóteses me parece a mais provável, mas deixo que os leitores façam as suas próprias escolhas. 
           
Como não se espera que um político, muito menos um político que ocupa ou se candidata a um cargo executivo, exprima dúvidas e responda “não sei”, os países são governados com base em convicções que só podem ser, na melhor das hipóteses, “ideológicas” e, nos casos piores, a defesa de interesses instalados mais ou menos óbvios. Dando de barato a indecência desta segunda hipótese, é interessante saber como se formam as ideologias da primeira. De onde se retiram as certezas quanto à justeza (já não digo à “verdade”) do que se pensa? Como os políticos não são feitos de matéria diferente do resto dos humanos, na falta de conhecimento seguro, usam os mesmos filtros automáticos, lugares comuns e ideias “mimeticamente degeneradas” a que quase toda a gente recorre quotidianamente.

Os políticos que hoje estão em exercício, em Portugal e em muitos outros países, não revelam maior espessura intelectual do que um filete de cavala, e a linguagem que utilizam trai a origem das suas poucas ideias. Aqueles que agora nos governam pertencem, alguns sem o saberem, ao “clube dos austríacos mortos”, que continua a dominar o pensamento dos que acreditam que se descobriu uma fórmula político-económica para o melhor governo das sociedades apenas porque ficaram demonstrados o fracasso e os crimes dos regimes comunistas, mas em que o próprio conceito de sociedade é enfraquecido pelo individualismo que constitui o núcleo da doutrina. Na famosas palavras de Thatcher: “There is no such thing as society. There are individual men and women, and there are families.” (Não há sociedade. Há homens e mulheres individuais e há famílias.)

No livro Ill Fares the Land (2010), o historiador Tony Judt traçou sumariamente a descendência intelectual das ideias dominantes que desde a década de oitenta fizeram marcha atrás nas reformas sociais do período posterior à 2ª Guerra Mundial. Se a origem próxima da fé cega nas virtudes do mercado, mais ou menos desregulado, e do suposto imperativo de reduzir o papel do estado à insignificância, está nos chamados “rapazes de Chicago”, a doutrina destes é já uma degenerescência de ideias anteriores, nascidas num contexto político e social bem diferente daquele em que vivemos hoje.

F. A. Hayek e Ludwig von Mises.

Mas o problema não está nas ideias de Friedrich Hayek ou Ludwig von Mises, que inspiraram a doutrina do mercado livre da “Escola de Chicago”, nem na ideia de “destruição criativa” do capitalismo de Joseph Schumpeter, muito menos na “sociedade aberta” de Karl Popper, ou até nos métodos de gestão de Peter Drucker. A Áustria em que todos eles nasceram, viveram e da qual todos eles escaparam, entre o crepúsculo do império Austro-Húngaro e as convulsões políticas e económicas que se prolongaram até ao fim da Guerra Fria, sob a ameaça permanente e sucessiva de regimes opressivos e sanguinários movidos por ideologias arregimentadoras e coletivizantes, pode explicar em boa parte o seu excessivo individualismo e a resistência a conceitos e categorias que lhes recordassem tribulações passadas. Compreensível instinto, e uma defesa contra extremos indesejáveis, mas que exige contextualização e distância crítica, que nos protejam hoje de outros dogmatismos, receituários simplistas, ou “ideias mimeticamente degeneradas”.  

Traduzo aqui algumas palavras de Tony Judt:

“(…) quando recapitulamos os clichés convencionais sobre mercados livres e liberdades ocidentais, estamos de facto a fazer eco – como luz de uma estrela que empalidece – de um debate inspirado e ocorrido há setenta anos, entre homens na sua maioria nascidos em finais do século XIX. É verdade que os termos económicos em que somos levados a pensar hoje em dia não são geralmente associados a estas distantes divergências e experiências políticas. A maioria dos estudantes de pós-graduações em gestão nunca ouviram falar de alguns destes exóticos pensadores estrangeiros e não são encorajados a lê-los. E no entanto, sem um entendimento das origens austríacas da sua (e da nossa) maneira de pensar, é como se falássemos uma língua que não compreendemos inteiramente.”
E vamos continuar a falar. E a ouvir. E a não compreender muito bem aquilo que dizemos ou ouvimos. Mas nem por isso duvidando o suficiente. Duvidamos dos políticos e, no entanto, vamos caucionando as políticas. Só porque precisamos de acordar amanhã e de acreditar que é outro dia, mas sem sabermos bem o que nos dizem, ou o que aquilo que nos dizem quer dizer.     

21 julho, 2013

A mecânica dos fluidos, ou como usar janelas e evitar as portas

Anda tanta gente ocupada com as pequenas piruetas políticas que abrem os noticiários que, desconfio eu, quase ninguém parece reparar no gorila (prometo que um dia explico esta e outras ilusões cognitivas). No momento em que escrevo estas palavras temos em funções um governo mais ou menos interino e um governo remodelado que não passou do modelo. Houve afobadas correrias pelos corredores do poder para fingir que se costurava à pressa uma roupinha de levar a Belém e agradar ao pensionista residente, mas no fim os impenitentes foram nus. Houve, sobretudo, a aparente impotência generalizada para escapar ao círculo vicioso da intriga palaciana, do cálculo eleitoralista, do dichote parlamentar e da desonestidade intelectual. Este corrupio de cromos e caretos é irritante e até um pouco embaraçoso, e como não resolve nada, resta-nos esperar que também não comprometa nada de essencial. Pode ser que, quando a febre baixar e os olhares se desviarem para outras manchetes, a prazo médio ou curto, mais pobres ou menos folgados, os portugueses esqueçam os crimes agora cometidos em seu nome (em estado de emergência nacional ou de insanidade temporária, conforme as doutrinas) e voltem a ocupar as horas dos noticiários tal como ocupam as casas de banho públicas: por pouco tempo e com dois dedos no nariz.

Mas se nada disto vai durar mais do que a espuma do champanhe, haverá alguém que nos explique o que realmente importa saber? Um título de jornal anunciava há tempos o convite endereçado pelo presidente da república a várias dezenas de economistas (como não quero insultar ninguém acima das minhas possibilidades, limito-me a tratar excelências e santidades a golpes de afiada minúscula). O supremo magistrado da nação pretenderia auscultar os ditos sobre os modos de transformar o presente do país num futuro qualquer (parece que a ambição está neste momento pouco acima do nível de sobrevivência, quer do país, quer dos seus cidadãos). Logicamente, chamam-se os economistas. Não um economista ou dois, observe-se. Eram logo às dúzias de padeiro. E se não for para ir a Belém, é para ir aos estúdios de televisão e a todos os jornais. Diariamente, incessantemente, sem fins de semana nem feriados que nos valham, em regime de apneia opinativa, chamam-se sempre economistas. Mas não se dispensam também os politólogos, para já não falar de outros observadores profissionais polivalentes e políticos sentados no banco de suplentes, que ora são promovidos a analistas políticos, ora são apenas designados pelo termo genérico de “comentadores”. O que eles parecem todos ser é “especialistas” da matéria que aflige Portugal e arredores, única razão que vislumbro para que sejam consultados tão ávida e assiduamente. Peço a vossa licença, não obstante, para duvidar… metodicamente.

Façamos uma pequena comparação. Quando temos uma chatice com o carro, mais vale ir a uma garagem e depositar a nossa confiança nos conhecimentos técnicos do mecânico. Temos boas razões para acreditar que ele percebe a natureza do problema e pode facilmente reparar a avaria ou aconselhar-nos a adquirir um automóvel que se pareça menos com um achado arqueológico. O mecânico automóvel é, em geral, um especialista. Ou seja, conhece o sistema de peças e os modos como estas devem ligar-se entre si para que o veículo possa circular em boas condições. Dado o estado das peças individuais e do conjunto do sistema, o mecânico competente pode prever com relativa facilidade o que é passível de ocorrer uns quilómetros mais adiante e até fazer uma estimativa credível sobre a vida útil da viatura, dado um tipo de uso médio e salvo qualquer acidente ou imprevisto de outra natureza. A estimativa baseia-se no conhecimento da mecânica do veículo e da interação deste com os contextos rodoviários típicos para os quais foi concebido, bem como numa quantidade representativa de comportamentos de exemplares semelhantes do mesmo modelo e marca. Dadas essas condições, a previsão do especialista é mesmo bastante fiável.   

À semelhança do carro do parágrafo anterior, o calhambeque a que chamamos Portugal (não sou eu quem está sempre a dizer que o país tem cerca de nove séculos), também está com certos e determinados problemas de circulação. De circulação de dinheiro, neste caso. Os bancos não emprestam, o estado confisca, as pessoas não gastam, os investidores não investem e os desempregados circulam lentamente nas filas dos centros de emprego para esmolar a caridade contrafeita do piedoso cristão da segurança social (ainda por cima, deve ser terrível para a circulação sanguínea, sobretudo para quem sofra de varizes). Logicamente, chama-se quem sabe da matéria. E qual é a diferença entre um mecânico e um economista que faz “projeções”, ou um politólogo que “antecipa cenários”? O primeiro sabe do que fala, os segundos ocupam tempo de antena e gastam oxigénio.

Nassim Taleb chama à economia, entre outras ciências “moles”, qualquer coisa como uma especialidade sem especialistas (with no experts). Por uma razão simples: ao contrário das ciências em que as coisas são passíveis de quantificação mais ou menos exata e todas as variáveis são conhecidas, a economia não permite fazer previsões a médio e longo prazo com nenhum grau de segurança. Repito e sublinho: o grau de segurança é ZERO. Em matéria de conhecimento do sistema que estuda e do rigor das previsões que esse conhecimento permite, a economia está uns passos atrás da meteorologia, conforme o próprio ex-ministro das finanças, Vítor Gaspar, implicitamente reconheceu, depois de uma referência infeliz à influência dos rigores do inverno sobre o crescimento económico no primeiro trimestre de 2013. E, no entanto, chamam-se os economistas e outros “especialistas”. Deve ser porque a maneira de um economista falar sobre aquilo que não sabe é melhor do que a das outras pessoas. Não, não é por causa da linguagem técnica. Verdade se diga que o jargão da economia é o perfeito exemplo daquilo a que se chama “falácia nominativa” (dar nomes às coisas pode criar a ilusão de que se compreendem). Mas não é apenas por isso, é porque eles falam do que não sabem, mas muitos deles nem sequer sabem que não sabem. Parece que foi um economista famoso e já defunto, John Kenneth Galbraith, quem assim se referiu aos prognosticadores em geral, pelo que suponho que ele seria um dos que sabiam que não sabiam e não estava muito preocupado em fazer amigos.

A realidade económica e política é demasiado fluida e complexa (a globalização tornou-a ainda incrivelmente mais complexa). Mesmo que fosse possível um conhecimento completo dos fatores que estiveram na origem de crises e ciclos negativos passados, bem como daqueles que contribuíram para a sua resolução, isso não seria suficiente para afirmar com qualquer grau de segurança que adotar determinadas políticas bastaria para resolver situações presentes e garantir resultados futuros. Como a nossa situação atual demonstra, os modelos existentes são, no mínimo, um pedacinho imperfeitos, para não dizer que são monstros acéfalos.

Mas há pessoas que supostamente sabem destes assuntos. E sabem umas coisas, naturalmente. O que não podem é saber aquilo que a ciência deles ainda não descobriu. Pensem, por analogia imperfeita, no cancro. Já se sabe bastante sobre uns quantos tipos de cancro e os tratamentos são hoje mais eficazes do que no passado, mas isso não significa que se tenha descoberto a cura do cancro. Um especialista em oncologia que seja responsável prognostica em função dos limites do que efetivamente sabe. Mas nem todos os especialistas são assim e, aparentemente, os das disciplinas em que a insegurança nos prognósticos é maior são os mais atrevidos. A chatice é que ser reconhecido como especialista cria uma maior necessidade de autoilusão quanto à própria competência, que é desse modo elevada acima da competência efetiva, e suscita um reflexo incontrolável para tentar salvar a face, fugindo em frente e ignorando, se necessário for, as evidências (encontra-se uma boa explicação disto mesmo na obra de Daniel Kahneman, um Nobel da Economia que é psicólogo). Esta compulsão para dar respostas quando não é possível saber a resposta certa tem como consequência que os “especialistas” errem tanto ou mais do que a massa bruta dos cidadãos medianamente informados.



A inutilidade prática de dar atenção a supostos especialistas de disciplinas em que o conhecimento do passado e do presente é insuficiente para prever o futuro ficou provada num impressionante estudo levado a cabo por Philip Tetlock, que ao longo de 20 anos pôs à prova as previsões de analistas políticos e economistas. Tetlock entrevistou 284 pessoas profissionalmente remuneradas como consultores ou comentadores em questões de política e economia e pediu-lhes que avaliassem a probabilidade de certas ocorrências num futuro relativamente próximo, quer sobre as áreas do planeta nas quais eram especialistas, quer sobre regiões que conheceriam menos bem. Estes especialistas apenas tinham que dizer se achavam que determinada situação permaneceria inalterada, ou se haveria mais ou menos de uma coisa qualquer, fosse crescimento económico, fosse liberdade política. Perguntou também aos entrevistados como é que chegavam às suas conclusões, como é que avaliavam os dados que não confirmavam as suas opiniões e como é que reagiam quando se provava que estavam enganados. Ao todo, reuniu mais de 80 mil previsões. Os resultados foram aterradores. Os “especialistas” teriam acertado mais vezes se tivessem atribuído o mesmo grau de probabilidade a qualquer dos três cenários possíveis. Confirmou-se também que os maiores especialistas são por vezes os que mais erram, por excesso de confiança nos seus conhecimentos e capacidades. E o mais engraçado de tudo é mesmo a dificuldade de admitirem os erros e a criatividade das justificações encontradas.    

Como se viu recentemente com o caso da demissão de um ministro, que pensou sair pela porta grande, foi acusado de escolher a porta pequena e afinal se encontrou numa porta giratória, nem os mais argutos comentadores foram capazes de prever fecho nem desfecho. Esta não é, certamente, uma ciência certa! Já se o método escolhido para retirar o ministro das Necessidades, em vez da demissão, tivesse sido a defenestração, bastaria um conhecimento elementar de física para estimar que, a uma velocidade uniformemente acelerada, o encontro do grave estadista com o pavimento teria tido consequências realmente irrevogáveis.  



27 março, 2013

A D. Adosinda trouxe-me notícias do défice

A D. Adosinda trouxe-me notícias do défice. Ela ainda insiste em chamar-lhe deficit, o que é talvez reminiscência de um tempo em que ninguém prestava muita atenção a esse cavalheiro.

A D. Adosinda é a minha consultora para assuntos de economia e finanças. Destas duas coisas ela sabe rigorosamente nada, condição que a meus olhos muito a recomenda e razão pela qual resolvi valer-me dos seus graciosos serviços. O facto de serem graciosos, no sentido de gratuitos, também pesou um pedacinho, vá. Desconfio, aliás, que só são graciosos porque a D. Adosinda ainda não deu conta de que, enquanto me limpa a casa por uma remuneração modesta, me faz o favor de abafar o som do noticiário, susbstituindo-o pela sua inestimável informação, que tem a vantagem de ser compreensível, ainda que às vezes pareça um nadinha fora de propósito.


Hoje, por exemplo, disse-me que estivera com o deficit em Sintra! Apanhado de chofre, limitei-me a arregalar os olhos para não entornar o café. Não sei se foi em Sintra que ele foi oficialmente avistado pela última vez, quando alguém das finanças veio à televisão dizer que tinha sido fortemente reduzido, mas a D. Adosinda garante-me que ele continua um belo rapaz, adjetivação simples que me parece traduzir o apreço da senhora por homens, digamos assim, robustos. Achei sensato não inquirir sobre os pormenores da coisa, uma vez que nesse exato momento a senhora se preparava para limpar o pó à jarra de porcelana que está em cima da cómoda.

As conversas com a D. Adosinda tornaram-se no momento mais luminoso dos meus dias, desde que todos os impostos me começaram a subir como uma violenta urticária, que me impede de sair de casa sem incorrer em despesas incomportáveis. Foi até a D. Adosinda que primeiro me chamou a atenção para o exorbitante preço do bitoque no snack-bar da esquina, que entretanto encerrou, e me sugeriu umas receitas fáceis e económicas, com muito ómega 3. Esta é outra coisa que muito aprecio: o cuidado que ela revela pelo meu nível de colesterol e tensão arterial. Desde o dia em que percebeu que a dilatação das minhas narinas e das veias da região temporal ocorria imediatamente após o aparecimento no écrã da televisão de uma astróloga ou de um economista, começou a desligar o aparelho da tomada para poder usar o aspirador. 

É possível que a motivação da minha consultora não seja puramente altruísta, uma vez que não lhe pago as horas vai já para três meses e um enfarte ocorrido nessas circunstâncias poderia incapacitar-me para a assinatura do cheque. Nisto a D. Adosinda tem a perspicácia dos credores do estado: faz o possível por me manter vivo, solvente e agradecido.     

25 março, 2013

Do ruído e seus malefícios, ou como me proponho ajudar a salvar a pátria sem fazer nenhum e sem ficar doente

O ruído, em geral, incomoda-me. A algaraviada obsessiva dos últimos anos, à força de martelar défices e dívidas como se fossem pregos no caixão de um defunto relutante, pode até tornar-me hipertenso, que é coisa que já eleva o incómodo a um ponto difícil de tolerar e exige cuidados especiais.

Este blogue – cujo primeiro texto exprimiu os meus temperados sentimentos quanto à aluvião opinativa que sedimentou a ignorância geral, e a minha em particular, sobre a arcana coisa económica e financeira que aflige o país e arredores – faz parte do programa de cuidados especiais que resolvi adotar. Faço-o a título meramente experimental e por razões essencialmente egoístas, na convicção, porém, de que o melhor contributo que posso dar para a resolução dos problemas do país é não tentar contribuir de todo.

Ao fazer exatamente coisa nenhuma, mas principalmente não exprimindo opiniões sobre o mal que aflige a economia e complica as contas do défice, também não aumento o nível de decibéis de que a nossa atmosfera está já saturada e que perturba certamente a concentração dos especialistas contratados para reanimar o país-quase-cadáver, que nunca mais decide se quer ser Lázaro, continuar lazarento, ou entregar de vez a alma ao criador (ou a bolsa ao credor, em ordinário vernáculo).


A justificação desta minha demissão de responsabilidades, que poderia até parecer cobardolas e fraquinha, tem, bem vistas as coisas, um muito sólido fundamento científico. Se não, vejamos. Na radiação eletromagnética, o ruído carateriza-se pela variação aleatória de frequências e amplitudes das ondas. Para o efeito que aqui interessa, e em português corrente, pode definir-se como qualquer som indesejável, que degrada a qualidade de um sinal e provoca perda de informação. Ora, a “informação” que sobra na vozearia deste mercado de jaquinzinhos políticos e postas de pescada economistas é popularmente traduzida assim: “estamos fritos!”.

Se aos vendedores das metafóricas espécies piscícolas a receita pouca diferença faz, mesmo quando acalorada e ignorantemente a discutem, já os peixinhos da exclamação não apreciam particularmente frigideiras, redes ou anzóis e preferiam, se não fosse muito incómodo para suas excelências, que os deixassem nadar em sossego e em silêncio.    

23 março, 2013

A crise económica e a crise dos saberes: observações ignorantes e algo escatológicas sobre uma espécie de dupla recessão


Recostado na confortável cadeira IKEA que o meu generoso salário público me permitiu adquirir antes do apocalipse fiscal, ocorreu-me fazer algumas observações, que só podem ser ociosas e inúteis (como eu gosto e a minha ciência permite), sobre o país em que acidentalmente me encontro desde o dia em que nasci. Primeiro, um parágrafo a armar em culto, que é coisa que também se pode aprender sem estudar muito. 

Há na sociologia da educação um modelo teórico, chamado Teoria dos Códigos de Legitimação (Legimation Code Theory, de Karl Maton et al), que permite demonstrar (ou prever) algo que à vista desarmada se pode apenas intuir. Se me é permitido traduzir sumariamente (certamente traindo) o que o modelo nos oferece para iluminar o estado intelectual do nosso país, diria que o número de opiniões expressas - que cresceu com a crise - e a convicção com que são afirmadas são inversamente proporcionais ao conhecimento produzido - que é pior do que muitas vezes nulo, ou acompanha pelo menos o crescimento negativo do PIB. Ou seja, quanto mais são os sabedores, mais incerto é o saber.

O grau de incerteza deveria talvez ser a primeira medida do clima económico e social. A incerteza é seguramente o inimigo primeiro da tranquilidade de espírito. E agentes económicos (que somos todos nós) intranquilos (quase todos nós também), são garantia de sobressalto, de depressão e, o que é para mim mais encanitante, de um número de opiniões superior ao número de orifícios anais, mas que parece desempenhar função semelhante: a de aliviar os seus proprietários de algum lastro excrementício, para o qual o sistema não encontra proveito.

Se alguém só tem opiniões, não quero saber. Dito de outro modo: quero saber, não me chegam opiniões. Não me interessa se o opinador foi ministro das finanças, se é banqueiro ou economista, se é diretor de jornal ou apenas opinador de jornal (o elo mais baixo da cadeia alimentar, por vezes também conhecido por Camilo Lourenço, o que me parece francamente injusto, uma vez que este aprendeu pelo menos a fazer contas para dar uma aparência científica a algumas ideias feitas). Se não nos tiram desta crise, ao menos que se retirem deste filme, no qual são apenas canastrões a debitar deixas mal aprendidas.

Devo dizer, no entanto, que só tenho um problema com estes exercícios quando eles são oferecidos publicamente. Ou seja, na comunicação social, nas redes sociais, na rua, no café, no táxi, no elevador... portanto, em toda a parte onde me seja difícil evitá-los sem tapar os olhos e os ouvidos. Se há coisa que deveria ser privatizada em Portugal são as opiniões. Toda a gente deveria opinar na privada.

Instantes

1   Diziam, pela calada agonia dos instantes que eram mudos.   Julgavam-nos pela constância infinita das lamentações pelo fôlego breve do pá...