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03 outubro, 2015

O Aleixo


O meu amigo Aleixo não tem queixo. Não ter queixo é uma daquelas infelicidades anatómicas em que se repara imediatamente e que muito cedo se confundem com quem as possui. São sinédoques vivas: aquela parte saliente que, no caso do Aleixo, se salienta pela ausência de saliência, acaba por representar o Aleixo todo. O não-queixo do Aleixo é o Aleixo inteiro.

É por isso que a alcunha do Aleixo é Desleixo. O coitado carrega aquele peso a menos desde que entrou na escola e ainda por cima, onde quer que a sua alcunha chegue, precede-o a fama injusta de incúria e negligência, porque nem todos percebem a criatividade infantil do trocadilho. O Aleixo acha que a dificuldade que tem de arranjar emprego se deve ao queixo ou à alcunha. “Se calhar é verdade que uma desgraça nunca vem só”, diz ele muitas vezes, no seu amor desmesurado por máximas parvas e lugares comuns que encontra no facebook. Não adianta consolá-lo com a hipótese de o desemprego de longa duração ser atribuível à sua incompetência, ou até, quem sabe, à política de austeridade, executada por várias desgraças com bastante queixo, mas pouca vergonha.

O Aleixo, que não tem queixo, mas tem que mastigar todos os dias uma ou duas refeições, já fez tantos estágios e cursos de formação, para não perder o subsídio de desemprego, que tive que lhe emprestar a garagem para ele estacionar os diplomas. Vão dar uma linda fogueira no magusto de S. Martinho. A primeira vez que vimos o Aleixo mastigar castanhas assadas percebemos a falta que faz um maxilar inferior de dimensões aceitáveis, pelo menos quando se quer comer em locais públicos ou falar de coisas sérias.

Daí que todos o tenhamos desencorajado de se meter na política, quando um dia veio dizer-nos que se ia filiar numa certa juventude partidária aprovada pelas autoridades eclesiásticas da terra. Já lá vão uns anos valentes, mas nunca os meus dons de retórica foram tão exercitados. É claro que não mencionei uma única vez o queixo retraído como possível fator de insucesso, mas desatei uma tal saraivada de impropérios sobre as perversões da vida política e as más influências dos betos que vão a missas e comícios no mesmo dia, que até hoje o Aleixo não deixa de me culpar pelo facto de não ter chegado a secretário de estado ou diretor geral de qualquer coisa num destes governos de agora.

Olhando para algumas das caras dos políticos menores que estão fechados nos gabinetes a despachar nomeações de correligionários nas últimas semanas antes das eleições (Ah! Se as pessoas lessem o Diário da República!), quase fico com pena do Aleixo, que pode ter pouco queixo, mas não tem menos talento do que alguns narizes e testas, barrigas e traseiros que se salientam por não se salientarem em coisa nenhuma, mas usaram com astúcia fina a ficha de adesão aos partidos certos.

O meu amigo Aleixo, que não tem queixo, queria ir votar nas eleições legislativas e achou boa ideia revelar a sua opção de voto à mesa da sueca. Como não tem queixo, não levou um paf no dito, que o Rodrigues da Chica lhe atirou por cima das garrafas de cerveja, mas vai ficar fechado na cave até segunda-feira e só volta a morder alguma coisa quando nos explicar o que é que o governo fez pela porção inferior e mediana da sua mandíbula.

30 março, 2014

Armados e perigosos

Regresso hoje ao que mais me exaspera e deprime nas conversas diárias sobre a crise. Como tenho tentado dizer nestas páginas, de várias maneiras e com insucesso garantido (ver posts anteriores), há menos verdade nas ideias que determinam decisões políticas e económicas do que muitos, nas suas vãs filosofias, gostariam de acreditar, ou de fazer-nos acreditar. “Há mais coisas entre o céu e a terra, Horácio!” Há mais de mil maneiras de fazer bacalhau, mais do que uma maneira de esfolar o gato, e até, obviamente, várias maneiras de pagar uma dívida. É a política, estúpido!

E a política, além de ser “a arte do possível, do alcançável – a arte da segunda melhor escolha” (tradução aproximada das palavras de Bismarck) é necessariamente discurso e retórica, porque as palavras são as suas armas principais. A expressão “luta política” diz quase tudo sobre a herança belicosa dos confrontos verbais mais ou menos ritualizados a que hoje praticamente se resumem os debates parlamentares e os comícios e passeatas de fim de semana para consumo televisivo.



As palavras desta “luta” são muitas vezes armas sujas e de pontaria incerta, o que significa que têm incalculáveis danos colaterais. Quase sempre ocultam mais do que revelam e os bordões a que recorrem traem uma indigência intelectual perigosa, a prevalência inquietante de atávicos simplismos, ou ambas as coisas simultaneamente. As ideias da “culpa” da dívida e da sua “expiação”, mediante certos “sacrifícios”, por exemplo, que estão implícitas ou explícitas em muitos discursos pseudo-explicativos, são noções arquetípicas que caem bem ao puritanismo calvinista e ao masoquismo católico – ou ao casamento feliz dos dois na conjuntura atual – subjacentes até nas palavras dos mais laicos pensadores, mas ensinam coisa nenhuma sobre a natureza realmente complexa dos sarilhos em que estamos metidos. Causa não é sinónimo de culpa; dívida não é sinónimo de pecado e o “sacrifício” de pessoas inocentes no fogo do inferno do desemprego e da pobreza não devia ser solução aceitável.

Dava jeito aos pobres portugueses que os políticos deixassem de usar metáforas mortas e se libertassem dos seus amuletos verbais; que parassem de procurar, ou fingir que procuram, culpas e culpados (tirando os óbvios criminosos), e que tratassem de encontrar explicações válidas e verdadeiras soluções. O chumbo de dispersão verbal com que mutuamente se alvejam polui o ar que respiramos e deixa atrás uma nuvem negra que leva tempo a dissipar-se e não permite discernir na linha do horizonte saída “limpa” (lavada dos pecados?) para futuro algum.

Brandindo armas que usam mal, ou usam com segundas intenções, os políticos são perigosos e deveriam ser vigiados por quem os soubesse obrigar a morder a língua e a morrer do seu próprio veneno. Os vigilantes que hoje temos não servem, porque muitos jornalistas e comentadores não sabem, ou não querem, falar língua diferente e apenas ecoam as palavras que os políticos preferem que se ouçam.

O mundo muda todos os dias, mas nós estamos metidos numa camisa de forças políticas cujo discurso estagnado amortalha o país, que só não vai morrer porque é teimoso. 

08 março, 2014

O verdadeiro carnaval: entremez e desfile de um país emburrecido


Acordo num país mal ataviado, de barba por fazer
e a notícia da manhã traduz o que importa
numa língua morta.

As frases recitadas
que todas as noites nos embalam o sono
e nos tolhem os sonhos,
são uma missa entoada em latim vulgar,
não dão pra dançar.

Ouço cantar uma língua de contas
e de trapos
e vejo aos saltos coelhos e cartolas,
merkels e mercados,
bancos e bandidos,
e muitos passos
perdidos.

Desfilam sociedades secretas
e casas de segredos,
arranjinhos e arremedos,
piores emendas para maus sonetos
e muitos bichos caretos.

Entre um estômago meio cheio
e uma cabeça meio vazia,
olhamos como se esperássemos
um milagre de maria.

Mas diz que, não tarda, vamos ali ao mercado
e que é tudo fiado,
mas com juros baixinhos.
Pra comprar jaquinzinhos?

Diz que o país, se calhar,
vai crescer um cabelo.
E o tamanho do pelo
vai pagar o pão?

Diz que dívida assim
e o défice anão; 
diz que pouco salário
e menor pensão;
diz que quem fala do alto
é quem tem a razão,

mas o maior défice
é de imaginação.


24 fevereiro, 2014

Clube dos austríacos mortos

Sabem qual é a melhor maneira de governar o país? Eu não sei, mas quanto mais é o pouco que sei, mais me surpreende a segurança dos que presumem saber.

Quem conseguisse ouvir, de orelhas limpas, o que dizem políticos e comentadores, de todos os orientes ideológicos, deveria ficar confuso. Admitindo a possibilidade de alguém ser objetivo ao ponto de não deixar nenhum preconceito afetar o seu juízo, a variedade de soluções governativas incompatíveis que cobrem o céu e encobrem o sol conferiria a todos o direito à perplexidade e à ignorância. Contra lógica e razão, porém, há demasiada gente que parece nunca ter dúvidas quanto aos benefícios desta política, ou aos malefícios daqueloutra. 

Na verdade, só não fica toda a gente de olhos trocados perante discórdias e dislates, porque todos temos um filtro automático, que deixa facilmente penetrar no crânio aquilo que nos agrada e que rejeita, ou aceita com muita dificuldade, tudo o que ameace levantar o pó das ideias recebidas. É compreensível, mas é forte pena, porque significa que o nosso nível de exigência com programas políticos é demasiado baixo e se resume, em geral, a cair para o lado da cama em que dormimos melhor. No fundo, esperamos apenas que nos ofereçam o conforto das opiniões para as quais o contexto social que habitamos nos moldou e os nossos interesses nos empurram. Ninguém pense que é imune a este tipo de preconceito. Mudar de ideias, e sobretudo ser persuadido a mudar de ideias pelos argumentos de alguém que não nos seja próximo e estimado, é mais difícil do que mudar as pintas do leopardo.

Esta predisposição natural é o que explica convicções ideológicas que não passam daquilo a que me apetece chamar uma “doença mimética degenerativa”. Ou seja, tendemos a reproduzir inconscientemente, mas com crescente grau de imperfeição relativamente ao modelo original, coisas que no seu tempo não passaram de boas hipóteses explicativas para realidades outras, mas que continuamos a aceitar como se fossem os equivalentes políticos e económicos da lei da gravidade: coisas universais e imutáveis. Só que não pode haver duas leis da gravidade! Segundo as leis da física, as coisas caem todas na mesma direção e não é provável que se ouça alguém defender acaloradamente opinião contrária, a não ser, talvez, num manicómio.

Não sendo possível provar que todos os políticos, economistas e comentadores sejam loucos ou desonestos (não vale fazer piadas fáceis), conclui-se das suas divergências que, no conhecimento das sociedades e no governo das nações, as leis são menos evidentes do que nas ciências em que se podem fazer demonstrações experimentais e matemáticas. Nas ciências sociais, das três, uma: ou ainda não se encontrou uma lei da gravidade, ou a sua demonstração está por fazer, ou, simplesmente, ela não existe. Eu sei qual das três hipóteses me parece a mais provável, mas deixo que os leitores façam as suas próprias escolhas. 
           
Como não se espera que um político, muito menos um político que ocupa ou se candidata a um cargo executivo, exprima dúvidas e responda “não sei”, os países são governados com base em convicções que só podem ser, na melhor das hipóteses, “ideológicas” e, nos casos piores, a defesa de interesses instalados mais ou menos óbvios. Dando de barato a indecência desta segunda hipótese, é interessante saber como se formam as ideologias da primeira. De onde se retiram as certezas quanto à justeza (já não digo à “verdade”) do que se pensa? Como os políticos não são feitos de matéria diferente do resto dos humanos, na falta de conhecimento seguro, usam os mesmos filtros automáticos, lugares comuns e ideias “mimeticamente degeneradas” a que quase toda a gente recorre quotidianamente.

Os políticos que hoje estão em exercício, em Portugal e em muitos outros países, não revelam maior espessura intelectual do que um filete de cavala, e a linguagem que utilizam trai a origem das suas poucas ideias. Aqueles que agora nos governam pertencem, alguns sem o saberem, ao “clube dos austríacos mortos”, que continua a dominar o pensamento dos que acreditam que se descobriu uma fórmula político-económica para o melhor governo das sociedades apenas porque ficaram demonstrados o fracasso e os crimes dos regimes comunistas, mas em que o próprio conceito de sociedade é enfraquecido pelo individualismo que constitui o núcleo da doutrina. Na famosas palavras de Thatcher: “There is no such thing as society. There are individual men and women, and there are families.” (Não há sociedade. Há homens e mulheres individuais e há famílias.)

No livro Ill Fares the Land (2010), o historiador Tony Judt traçou sumariamente a descendência intelectual das ideias dominantes que desde a década de oitenta fizeram marcha atrás nas reformas sociais do período posterior à 2ª Guerra Mundial. Se a origem próxima da fé cega nas virtudes do mercado, mais ou menos desregulado, e do suposto imperativo de reduzir o papel do estado à insignificância, está nos chamados “rapazes de Chicago”, a doutrina destes é já uma degenerescência de ideias anteriores, nascidas num contexto político e social bem diferente daquele em que vivemos hoje.

F. A. Hayek e Ludwig von Mises.

Mas o problema não está nas ideias de Friedrich Hayek ou Ludwig von Mises, que inspiraram a doutrina do mercado livre da “Escola de Chicago”, nem na ideia de “destruição criativa” do capitalismo de Joseph Schumpeter, muito menos na “sociedade aberta” de Karl Popper, ou até nos métodos de gestão de Peter Drucker. A Áustria em que todos eles nasceram, viveram e da qual todos eles escaparam, entre o crepúsculo do império Austro-Húngaro e as convulsões políticas e económicas que se prolongaram até ao fim da Guerra Fria, sob a ameaça permanente e sucessiva de regimes opressivos e sanguinários movidos por ideologias arregimentadoras e coletivizantes, pode explicar em boa parte o seu excessivo individualismo e a resistência a conceitos e categorias que lhes recordassem tribulações passadas. Compreensível instinto, e uma defesa contra extremos indesejáveis, mas que exige contextualização e distância crítica, que nos protejam hoje de outros dogmatismos, receituários simplistas, ou “ideias mimeticamente degeneradas”.  

Traduzo aqui algumas palavras de Tony Judt:

“(…) quando recapitulamos os clichés convencionais sobre mercados livres e liberdades ocidentais, estamos de facto a fazer eco – como luz de uma estrela que empalidece – de um debate inspirado e ocorrido há setenta anos, entre homens na sua maioria nascidos em finais do século XIX. É verdade que os termos económicos em que somos levados a pensar hoje em dia não são geralmente associados a estas distantes divergências e experiências políticas. A maioria dos estudantes de pós-graduações em gestão nunca ouviram falar de alguns destes exóticos pensadores estrangeiros e não são encorajados a lê-los. E no entanto, sem um entendimento das origens austríacas da sua (e da nossa) maneira de pensar, é como se falássemos uma língua que não compreendemos inteiramente.”
E vamos continuar a falar. E a ouvir. E a não compreender muito bem aquilo que dizemos ou ouvimos. Mas nem por isso duvidando o suficiente. Duvidamos dos políticos e, no entanto, vamos caucionando as políticas. Só porque precisamos de acordar amanhã e de acreditar que é outro dia, mas sem sabermos bem o que nos dizem, ou o que aquilo que nos dizem quer dizer.     

21 julho, 2013

A mecânica dos fluidos, ou como usar janelas e evitar as portas

Anda tanta gente ocupada com as pequenas piruetas políticas que abrem os noticiários que, desconfio eu, quase ninguém parece reparar no gorila (prometo que um dia explico esta e outras ilusões cognitivas). No momento em que escrevo estas palavras temos em funções um governo mais ou menos interino e um governo remodelado que não passou do modelo. Houve afobadas correrias pelos corredores do poder para fingir que se costurava à pressa uma roupinha de levar a Belém e agradar ao pensionista residente, mas no fim os impenitentes foram nus. Houve, sobretudo, a aparente impotência generalizada para escapar ao círculo vicioso da intriga palaciana, do cálculo eleitoralista, do dichote parlamentar e da desonestidade intelectual. Este corrupio de cromos e caretos é irritante e até um pouco embaraçoso, e como não resolve nada, resta-nos esperar que também não comprometa nada de essencial. Pode ser que, quando a febre baixar e os olhares se desviarem para outras manchetes, a prazo médio ou curto, mais pobres ou menos folgados, os portugueses esqueçam os crimes agora cometidos em seu nome (em estado de emergência nacional ou de insanidade temporária, conforme as doutrinas) e voltem a ocupar as horas dos noticiários tal como ocupam as casas de banho públicas: por pouco tempo e com dois dedos no nariz.

Mas se nada disto vai durar mais do que a espuma do champanhe, haverá alguém que nos explique o que realmente importa saber? Um título de jornal anunciava há tempos o convite endereçado pelo presidente da república a várias dezenas de economistas (como não quero insultar ninguém acima das minhas possibilidades, limito-me a tratar excelências e santidades a golpes de afiada minúscula). O supremo magistrado da nação pretenderia auscultar os ditos sobre os modos de transformar o presente do país num futuro qualquer (parece que a ambição está neste momento pouco acima do nível de sobrevivência, quer do país, quer dos seus cidadãos). Logicamente, chamam-se os economistas. Não um economista ou dois, observe-se. Eram logo às dúzias de padeiro. E se não for para ir a Belém, é para ir aos estúdios de televisão e a todos os jornais. Diariamente, incessantemente, sem fins de semana nem feriados que nos valham, em regime de apneia opinativa, chamam-se sempre economistas. Mas não se dispensam também os politólogos, para já não falar de outros observadores profissionais polivalentes e políticos sentados no banco de suplentes, que ora são promovidos a analistas políticos, ora são apenas designados pelo termo genérico de “comentadores”. O que eles parecem todos ser é “especialistas” da matéria que aflige Portugal e arredores, única razão que vislumbro para que sejam consultados tão ávida e assiduamente. Peço a vossa licença, não obstante, para duvidar… metodicamente.

Façamos uma pequena comparação. Quando temos uma chatice com o carro, mais vale ir a uma garagem e depositar a nossa confiança nos conhecimentos técnicos do mecânico. Temos boas razões para acreditar que ele percebe a natureza do problema e pode facilmente reparar a avaria ou aconselhar-nos a adquirir um automóvel que se pareça menos com um achado arqueológico. O mecânico automóvel é, em geral, um especialista. Ou seja, conhece o sistema de peças e os modos como estas devem ligar-se entre si para que o veículo possa circular em boas condições. Dado o estado das peças individuais e do conjunto do sistema, o mecânico competente pode prever com relativa facilidade o que é passível de ocorrer uns quilómetros mais adiante e até fazer uma estimativa credível sobre a vida útil da viatura, dado um tipo de uso médio e salvo qualquer acidente ou imprevisto de outra natureza. A estimativa baseia-se no conhecimento da mecânica do veículo e da interação deste com os contextos rodoviários típicos para os quais foi concebido, bem como numa quantidade representativa de comportamentos de exemplares semelhantes do mesmo modelo e marca. Dadas essas condições, a previsão do especialista é mesmo bastante fiável.   

À semelhança do carro do parágrafo anterior, o calhambeque a que chamamos Portugal (não sou eu quem está sempre a dizer que o país tem cerca de nove séculos), também está com certos e determinados problemas de circulação. De circulação de dinheiro, neste caso. Os bancos não emprestam, o estado confisca, as pessoas não gastam, os investidores não investem e os desempregados circulam lentamente nas filas dos centros de emprego para esmolar a caridade contrafeita do piedoso cristão da segurança social (ainda por cima, deve ser terrível para a circulação sanguínea, sobretudo para quem sofra de varizes). Logicamente, chama-se quem sabe da matéria. E qual é a diferença entre um mecânico e um economista que faz “projeções”, ou um politólogo que “antecipa cenários”? O primeiro sabe do que fala, os segundos ocupam tempo de antena e gastam oxigénio.

Nassim Taleb chama à economia, entre outras ciências “moles”, qualquer coisa como uma especialidade sem especialistas (with no experts). Por uma razão simples: ao contrário das ciências em que as coisas são passíveis de quantificação mais ou menos exata e todas as variáveis são conhecidas, a economia não permite fazer previsões a médio e longo prazo com nenhum grau de segurança. Repito e sublinho: o grau de segurança é ZERO. Em matéria de conhecimento do sistema que estuda e do rigor das previsões que esse conhecimento permite, a economia está uns passos atrás da meteorologia, conforme o próprio ex-ministro das finanças, Vítor Gaspar, implicitamente reconheceu, depois de uma referência infeliz à influência dos rigores do inverno sobre o crescimento económico no primeiro trimestre de 2013. E, no entanto, chamam-se os economistas e outros “especialistas”. Deve ser porque a maneira de um economista falar sobre aquilo que não sabe é melhor do que a das outras pessoas. Não, não é por causa da linguagem técnica. Verdade se diga que o jargão da economia é o perfeito exemplo daquilo a que se chama “falácia nominativa” (dar nomes às coisas pode criar a ilusão de que se compreendem). Mas não é apenas por isso, é porque eles falam do que não sabem, mas muitos deles nem sequer sabem que não sabem. Parece que foi um economista famoso e já defunto, John Kenneth Galbraith, quem assim se referiu aos prognosticadores em geral, pelo que suponho que ele seria um dos que sabiam que não sabiam e não estava muito preocupado em fazer amigos.

A realidade económica e política é demasiado fluida e complexa (a globalização tornou-a ainda incrivelmente mais complexa). Mesmo que fosse possível um conhecimento completo dos fatores que estiveram na origem de crises e ciclos negativos passados, bem como daqueles que contribuíram para a sua resolução, isso não seria suficiente para afirmar com qualquer grau de segurança que adotar determinadas políticas bastaria para resolver situações presentes e garantir resultados futuros. Como a nossa situação atual demonstra, os modelos existentes são, no mínimo, um pedacinho imperfeitos, para não dizer que são monstros acéfalos.

Mas há pessoas que supostamente sabem destes assuntos. E sabem umas coisas, naturalmente. O que não podem é saber aquilo que a ciência deles ainda não descobriu. Pensem, por analogia imperfeita, no cancro. Já se sabe bastante sobre uns quantos tipos de cancro e os tratamentos são hoje mais eficazes do que no passado, mas isso não significa que se tenha descoberto a cura do cancro. Um especialista em oncologia que seja responsável prognostica em função dos limites do que efetivamente sabe. Mas nem todos os especialistas são assim e, aparentemente, os das disciplinas em que a insegurança nos prognósticos é maior são os mais atrevidos. A chatice é que ser reconhecido como especialista cria uma maior necessidade de autoilusão quanto à própria competência, que é desse modo elevada acima da competência efetiva, e suscita um reflexo incontrolável para tentar salvar a face, fugindo em frente e ignorando, se necessário for, as evidências (encontra-se uma boa explicação disto mesmo na obra de Daniel Kahneman, um Nobel da Economia que é psicólogo). Esta compulsão para dar respostas quando não é possível saber a resposta certa tem como consequência que os “especialistas” errem tanto ou mais do que a massa bruta dos cidadãos medianamente informados.



A inutilidade prática de dar atenção a supostos especialistas de disciplinas em que o conhecimento do passado e do presente é insuficiente para prever o futuro ficou provada num impressionante estudo levado a cabo por Philip Tetlock, que ao longo de 20 anos pôs à prova as previsões de analistas políticos e economistas. Tetlock entrevistou 284 pessoas profissionalmente remuneradas como consultores ou comentadores em questões de política e economia e pediu-lhes que avaliassem a probabilidade de certas ocorrências num futuro relativamente próximo, quer sobre as áreas do planeta nas quais eram especialistas, quer sobre regiões que conheceriam menos bem. Estes especialistas apenas tinham que dizer se achavam que determinada situação permaneceria inalterada, ou se haveria mais ou menos de uma coisa qualquer, fosse crescimento económico, fosse liberdade política. Perguntou também aos entrevistados como é que chegavam às suas conclusões, como é que avaliavam os dados que não confirmavam as suas opiniões e como é que reagiam quando se provava que estavam enganados. Ao todo, reuniu mais de 80 mil previsões. Os resultados foram aterradores. Os “especialistas” teriam acertado mais vezes se tivessem atribuído o mesmo grau de probabilidade a qualquer dos três cenários possíveis. Confirmou-se também que os maiores especialistas são por vezes os que mais erram, por excesso de confiança nos seus conhecimentos e capacidades. E o mais engraçado de tudo é mesmo a dificuldade de admitirem os erros e a criatividade das justificações encontradas.    

Como se viu recentemente com o caso da demissão de um ministro, que pensou sair pela porta grande, foi acusado de escolher a porta pequena e afinal se encontrou numa porta giratória, nem os mais argutos comentadores foram capazes de prever fecho nem desfecho. Esta não é, certamente, uma ciência certa! Já se o método escolhido para retirar o ministro das Necessidades, em vez da demissão, tivesse sido a defenestração, bastaria um conhecimento elementar de física para estimar que, a uma velocidade uniformemente acelerada, o encontro do grave estadista com o pavimento teria tido consequências realmente irrevogáveis.  



25 março, 2013

Do ruído e seus malefícios, ou como me proponho ajudar a salvar a pátria sem fazer nenhum e sem ficar doente

O ruído, em geral, incomoda-me. A algaraviada obsessiva dos últimos anos, à força de martelar défices e dívidas como se fossem pregos no caixão de um defunto relutante, pode até tornar-me hipertenso, que é coisa que já eleva o incómodo a um ponto difícil de tolerar e exige cuidados especiais.

Este blogue – cujo primeiro texto exprimiu os meus temperados sentimentos quanto à aluvião opinativa que sedimentou a ignorância geral, e a minha em particular, sobre a arcana coisa económica e financeira que aflige o país e arredores – faz parte do programa de cuidados especiais que resolvi adotar. Faço-o a título meramente experimental e por razões essencialmente egoístas, na convicção, porém, de que o melhor contributo que posso dar para a resolução dos problemas do país é não tentar contribuir de todo.

Ao fazer exatamente coisa nenhuma, mas principalmente não exprimindo opiniões sobre o mal que aflige a economia e complica as contas do défice, também não aumento o nível de decibéis de que a nossa atmosfera está já saturada e que perturba certamente a concentração dos especialistas contratados para reanimar o país-quase-cadáver, que nunca mais decide se quer ser Lázaro, continuar lazarento, ou entregar de vez a alma ao criador (ou a bolsa ao credor, em ordinário vernáculo).


A justificação desta minha demissão de responsabilidades, que poderia até parecer cobardolas e fraquinha, tem, bem vistas as coisas, um muito sólido fundamento científico. Se não, vejamos. Na radiação eletromagnética, o ruído carateriza-se pela variação aleatória de frequências e amplitudes das ondas. Para o efeito que aqui interessa, e em português corrente, pode definir-se como qualquer som indesejável, que degrada a qualidade de um sinal e provoca perda de informação. Ora, a “informação” que sobra na vozearia deste mercado de jaquinzinhos políticos e postas de pescada economistas é popularmente traduzida assim: “estamos fritos!”.

Se aos vendedores das metafóricas espécies piscícolas a receita pouca diferença faz, mesmo quando acalorada e ignorantemente a discutem, já os peixinhos da exclamação não apreciam particularmente frigideiras, redes ou anzóis e preferiam, se não fosse muito incómodo para suas excelências, que os deixassem nadar em sossego e em silêncio.    

23 março, 2013

A crise económica e a crise dos saberes: observações ignorantes e algo escatológicas sobre uma espécie de dupla recessão


Recostado na confortável cadeira IKEA que o meu generoso salário público me permitiu adquirir antes do apocalipse fiscal, ocorreu-me fazer algumas observações, que só podem ser ociosas e inúteis (como eu gosto e a minha ciência permite), sobre o país em que acidentalmente me encontro desde o dia em que nasci. Primeiro, um parágrafo a armar em culto, que é coisa que também se pode aprender sem estudar muito. 

Há na sociologia da educação um modelo teórico, chamado Teoria dos Códigos de Legitimação (Legimation Code Theory, de Karl Maton et al), que permite demonstrar (ou prever) algo que à vista desarmada se pode apenas intuir. Se me é permitido traduzir sumariamente (certamente traindo) o que o modelo nos oferece para iluminar o estado intelectual do nosso país, diria que o número de opiniões expressas - que cresceu com a crise - e a convicção com que são afirmadas são inversamente proporcionais ao conhecimento produzido - que é pior do que muitas vezes nulo, ou acompanha pelo menos o crescimento negativo do PIB. Ou seja, quanto mais são os sabedores, mais incerto é o saber.

O grau de incerteza deveria talvez ser a primeira medida do clima económico e social. A incerteza é seguramente o inimigo primeiro da tranquilidade de espírito. E agentes económicos (que somos todos nós) intranquilos (quase todos nós também), são garantia de sobressalto, de depressão e, o que é para mim mais encanitante, de um número de opiniões superior ao número de orifícios anais, mas que parece desempenhar função semelhante: a de aliviar os seus proprietários de algum lastro excrementício, para o qual o sistema não encontra proveito.

Se alguém só tem opiniões, não quero saber. Dito de outro modo: quero saber, não me chegam opiniões. Não me interessa se o opinador foi ministro das finanças, se é banqueiro ou economista, se é diretor de jornal ou apenas opinador de jornal (o elo mais baixo da cadeia alimentar, por vezes também conhecido por Camilo Lourenço, o que me parece francamente injusto, uma vez que este aprendeu pelo menos a fazer contas para dar uma aparência científica a algumas ideias feitas). Se não nos tiram desta crise, ao menos que se retirem deste filme, no qual são apenas canastrões a debitar deixas mal aprendidas.

Devo dizer, no entanto, que só tenho um problema com estes exercícios quando eles são oferecidos publicamente. Ou seja, na comunicação social, nas redes sociais, na rua, no café, no táxi, no elevador... portanto, em toda a parte onde me seja difícil evitá-los sem tapar os olhos e os ouvidos. Se há coisa que deveria ser privatizada em Portugal são as opiniões. Toda a gente deveria opinar na privada.

Instantes

1   Diziam, pela calada agonia dos instantes que eram mudos.   Julgavam-nos pela constância infinita das lamentações pelo fôlego breve do pá...