Anda tanta gente ocupada com as pequenas piruetas políticas que abrem os
noticiários que, desconfio eu, quase ninguém parece reparar no gorila (prometo
que um dia explico esta e outras ilusões cognitivas). No momento em que escrevo
estas palavras temos em funções um governo mais ou menos interino e um governo
remodelado que não passou do modelo. Houve afobadas correrias pelos corredores
do poder para fingir que se costurava à pressa uma roupinha de levar a Belém e agradar
ao pensionista residente, mas no fim os impenitentes foram nus. Houve,
sobretudo, a aparente impotência generalizada para escapar ao círculo vicioso
da intriga palaciana, do cálculo eleitoralista, do dichote parlamentar e da
desonestidade intelectual. Este corrupio de cromos e caretos é irritante e até
um pouco embaraçoso, e como não resolve nada, resta-nos esperar que também não
comprometa nada de essencial. Pode ser que, quando a febre baixar e os olhares
se desviarem para outras manchetes, a prazo médio ou curto, mais pobres ou
menos folgados, os portugueses esqueçam os crimes agora cometidos em seu nome (em
estado de emergência nacional ou de insanidade temporária, conforme as
doutrinas) e voltem a ocupar as horas dos noticiários tal como ocupam as casas
de banho públicas: por pouco tempo e com dois dedos no nariz.
Mas se nada disto vai durar mais do que a espuma do
champanhe, haverá alguém que nos explique o que realmente importa saber? Um
título de jornal anunciava há tempos o convite endereçado pelo presidente da
república a várias dezenas de economistas (como não quero
insultar ninguém acima das minhas possibilidades, limito-me a tratar excelências
e santidades a golpes de afiada minúscula). O supremo magistrado
da nação pretenderia auscultar os ditos sobre os modos de transformar o presente
do país num futuro qualquer (parece que a ambição está neste momento pouco
acima do nível de sobrevivência, quer do país, quer dos seus cidadãos).
Logicamente, chamam-se os economistas. Não um economista ou dois, observe-se. Eram
logo às dúzias de padeiro. E se não for para ir a Belém, é para ir aos estúdios
de televisão e a todos os jornais. Diariamente, incessantemente, sem fins de
semana nem feriados que nos valham, em regime de apneia opinativa, chamam-se
sempre economistas. Mas não se dispensam também os politólogos, para já não
falar de outros observadores profissionais polivalentes e políticos sentados no
banco de suplentes, que ora são promovidos a analistas políticos, ora são
apenas designados pelo termo genérico de “comentadores”. O que eles parecem todos
ser é “especialistas” da matéria que aflige Portugal e arredores, única razão que
vislumbro para que sejam consultados tão ávida e assiduamente. Peço a vossa licença,
não obstante, para duvidar… metodicamente.
Façamos uma pequena comparação. Quando temos uma chatice com o carro, mais
vale ir a uma garagem e depositar a nossa confiança nos conhecimentos técnicos do
mecânico. Temos boas razões para acreditar que ele percebe a natureza do
problema e pode facilmente reparar a avaria ou aconselhar-nos a adquirir um automóvel
que se pareça menos com um achado arqueológico. O mecânico automóvel é, em
geral, um especialista. Ou seja, conhece o sistema de peças e os modos como estas
devem ligar-se entre si para que o veículo possa circular em boas condições. Dado
o estado das peças individuais e do conjunto do sistema, o mecânico competente
pode prever com relativa facilidade o que é passível de ocorrer uns quilómetros
mais adiante e até fazer uma estimativa credível sobre a vida útil da viatura,
dado um tipo de uso médio e salvo qualquer acidente ou imprevisto de outra
natureza. A estimativa baseia-se no conhecimento da mecânica do veículo e da
interação deste com os contextos rodoviários típicos para os quais foi
concebido, bem como numa quantidade representativa de comportamentos de exemplares
semelhantes do mesmo modelo e marca. Dadas essas condições, a previsão do
especialista é mesmo bastante fiável.
À semelhança do carro do parágrafo anterior, o calhambeque a que chamamos
Portugal (não sou eu quem está sempre a dizer que o país tem cerca de nove
séculos), também está com certos e determinados problemas de circulação. De circulação
de dinheiro, neste caso. Os bancos não emprestam, o estado confisca, as pessoas
não gastam, os investidores não investem e os desempregados circulam lentamente
nas filas dos centros de emprego para esmolar a caridade contrafeita do piedoso
cristão da segurança social (ainda por cima, deve ser terrível para a
circulação sanguínea, sobretudo para quem sofra de varizes). Logicamente,
chama-se quem sabe da matéria. E qual é a diferença entre um mecânico e um
economista que faz “projeções”, ou um politólogo que “antecipa cenários”? O
primeiro sabe do que fala, os segundos ocupam tempo de antena e gastam
oxigénio.
Nassim Taleb chama à economia, entre
outras ciências “moles”, qualquer coisa como uma especialidade sem
especialistas (with no experts). Por
uma razão simples: ao contrário das ciências em que as coisas são passíveis de
quantificação mais ou menos exata e todas as variáveis são conhecidas, a
economia não permite fazer previsões a médio e longo prazo com nenhum grau de
segurança. Repito e sublinho: o grau de segurança é ZERO. Em matéria de
conhecimento do sistema que estuda e do rigor das previsões que esse
conhecimento permite, a economia está uns passos atrás da meteorologia,
conforme o próprio ex-ministro das finanças, Vítor Gaspar, implicitamente
reconheceu, depois de uma referência infeliz à influência dos rigores do
inverno sobre o crescimento económico no primeiro trimestre de 2013. E, no
entanto, chamam-se os economistas e outros “especialistas”. Deve ser porque a
maneira de um economista falar sobre aquilo que não sabe é melhor do que a das
outras pessoas. Não, não é por causa da linguagem técnica. Verdade se diga que
o jargão da economia é o perfeito exemplo daquilo a que se chama “falácia
nominativa” (dar nomes às coisas pode criar a ilusão de que se compreendem).
Mas não é apenas por isso, é porque eles falam do que não sabem, mas muitos
deles nem sequer sabem que não sabem. Parece que foi um economista famoso e já
defunto, John Kenneth Galbraith, quem assim se referiu aos prognosticadores em
geral, pelo que suponho que ele seria um dos que sabiam que não sabiam e não
estava muito preocupado em fazer amigos.
A realidade económica e política é demasiado fluida e complexa (a
globalização tornou-a ainda incrivelmente mais complexa). Mesmo que fosse
possível um conhecimento completo dos fatores que estiveram na origem de crises
e ciclos negativos passados, bem como daqueles que contribuíram para a sua
resolução, isso não seria suficiente para afirmar com qualquer grau de
segurança que adotar determinadas políticas bastaria para resolver situações
presentes e garantir resultados futuros. Como a nossa situação atual demonstra,
os modelos existentes são, no mínimo, um pedacinho imperfeitos, para não dizer
que são monstros acéfalos.
Mas há pessoas que supostamente sabem destes assuntos. E sabem umas coisas,
naturalmente. O que não podem é saber aquilo que a ciência deles ainda não
descobriu. Pensem, por analogia imperfeita, no cancro. Já se sabe bastante
sobre uns quantos tipos de cancro e os tratamentos são hoje mais eficazes do
que no passado, mas isso não significa que se tenha descoberto a cura do cancro.
Um especialista em oncologia que seja responsável prognostica em função dos
limites do que efetivamente sabe. Mas nem todos os especialistas são assim e,
aparentemente, os das disciplinas em que a insegurança nos prognósticos é maior
são os mais atrevidos. A chatice é que ser reconhecido como especialista cria
uma maior necessidade de autoilusão quanto à própria competência, que é desse
modo elevada acima da competência efetiva, e suscita um reflexo incontrolável
para tentar salvar a face, fugindo em frente e ignorando, se necessário for, as
evidências (encontra-se uma boa explicação disto mesmo na obra de Daniel Kahneman,
um Nobel da Economia que é psicólogo). Esta compulsão para dar respostas quando
não é possível saber a resposta certa tem como consequência que os
“especialistas” errem tanto ou mais do que a massa bruta dos cidadãos
medianamente informados.
A inutilidade prática de dar atenção a supostos especialistas de
disciplinas em que o conhecimento do passado e do presente é insuficiente para
prever o futuro ficou provada num impressionante estudo levado a cabo por
Philip Tetlock, que ao longo de 20 anos pôs à prova as previsões
de analistas políticos e economistas. Tetlock entrevistou 284 pessoas
profissionalmente remuneradas como consultores ou comentadores em questões de
política e economia e pediu-lhes que avaliassem a probabilidade de certas
ocorrências num futuro relativamente próximo, quer sobre as áreas do planeta
nas quais eram especialistas, quer sobre regiões que conheceriam menos bem. Estes
especialistas apenas tinham que dizer se achavam que determinada situação permaneceria
inalterada, ou se haveria mais ou menos de uma coisa qualquer, fosse crescimento
económico, fosse liberdade política. Perguntou também aos entrevistados como é
que chegavam às suas conclusões, como é que avaliavam os dados que não
confirmavam as suas opiniões e como é que reagiam quando se provava que estavam
enganados. Ao todo, reuniu mais de 80 mil previsões. Os resultados foram
aterradores. Os “especialistas” teriam acertado mais vezes se tivessem
atribuído o mesmo grau de probabilidade a qualquer dos três cenários possíveis.
Confirmou-se também que os maiores especialistas são por vezes os que mais erram,
por excesso de confiança nos seus conhecimentos e capacidades. E o mais
engraçado de tudo é mesmo a dificuldade de admitirem os erros e a criatividade
das justificações encontradas.
Como se viu recentemente com o caso da demissão de um ministro, que pensou
sair pela porta grande, foi acusado de escolher a porta pequena e afinal se
encontrou numa porta giratória, nem os mais argutos comentadores foram capazes
de prever fecho nem desfecho. Esta não é, certamente, uma ciência certa! Já se
o método escolhido para retirar o ministro das Necessidades, em vez da
demissão, tivesse sido a defenestração, bastaria um conhecimento elementar de
física para estimar que, a uma velocidade uniformemente acelerada, o encontro do
grave estadista com o pavimento teria tido consequências realmente irrevogáveis.
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