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04 julho, 2015

Um dilema em dias de ócio


Se eu quisesse, escrevia hoje sobre o dilema grego. Afinal, dilema é uma palavra de origem grega, formada pelo prefixo di-, que significa dois, e por lemma, que significava premissa, ou coisa recebida e aceite como verdadeira. Na lógica, dilemma era uma espécie de silogismo, no qual, de duas proposições apresentadas, uma ou outra seria verdadeira. Mas, oxi ou nai? Na retórica, consistia em oferecer a um opositor a escolha entre duas alternativas igualmente desfavoráveis. Oxi ou nai? No vertente dilema helénico, a escolha que os incríveis credores oferecem é mais ou menos a de um salteador ganancioso que se engana nas conjunções: “A bolsa e a vida!”

E é isto a vida? É a economia? São a mesma coisa? Não parece que se trata apenas de política ao serviço de um certo sistema financeiro? Os pobres que se amanhem ou que saiam de baixo.

As coisas podiam ser de outra maneira, se as pessoas deixassem de achar tudo óbvio e natural em matéria de economia. Se deixassem de aceitar os lemmas, as premissas, dos silogismos que as leis do lucro e do mais forte impõem como “lógicos”. Mas para deixarem de achar tudo óbvio, precisariam de estudar mais, em vez de lerem jornais ou de irem às universidades adquirir certificados de comportamento ideologicamente correto, por equivalência ou não. Se estudassem mais, até deixariam de achar que a economia é a mesma coisa que o sistema económico e descobririam, talvez, que nem uma nem outro são fenómenos naturais, como os terramotos ou os golos do Eusébio. As coisas podiam ser de outra maneira porque são pessoas que as pensam e que as fazem. Chama-se cultura, isso que as pessoas colhem do que em sociedade semeiam. A economia é o que as pessoas juntas dela fizerem.

Então, e há para aí leituras para pensar sobre o mundo “fora do caixão” em que levaram o cérebro a sepultar?* O que se poderia ler então para abrir um pouco a janela deste sufoco ideológico? Sei lá. Talvez Debt, the First 5,000 Years, de David Graeber, para uma visão antropológica de longo alcance histórico e cultural sobre dívidas e dinheiro, a começar pelo mito fundador da doutrina económica, que vem de Adam Smith e que todos os manuais de economia repetem desde 1776 sem terem investigado nada: a ideia de que antes de haver dinheiro os negócios se faziam pela troca direta de géneros. Parece que nunca foi assim, revelação que relativiza bastante tudo o que se possa ler sobre “economia” (as aspas fazem já parte do meu processo de relativização). Pelo menos, ler Graeber ajuda a pôr tudo noutra perspetiva. Não é indiferente o lugar de onde se olha, nem é bom ignorar o lugar dos outros. 
 
Se eu quisesse escrevia sobre o dilema grego. Mas para isso era preciso que estivesse mais interessado em economia e em negócios, o que só seria possível se “negócio” não fosse uma palavra de origem latina formada pelo prefixo negativo nec- (não) e pela palavra otium, que deu o nosso “ócio”, e significava tempo de lazer, dedicado ao descanso, à comida, aos jogos, à contemplação ou ao estudo. Negócio? Não ao ócio? Oxi, claro, porque hoje é sábado e amanhã é domingo.


* Esta pergunta é uma forma de retaliação em espécie contra a estratégia retórica dos pensadores da monocultura dominante, que consiste em chamar estúpidos a todos os que pensam de maneira diferente.

08 março, 2014

O verdadeiro carnaval: entremez e desfile de um país emburrecido


Acordo num país mal ataviado, de barba por fazer
e a notícia da manhã traduz o que importa
numa língua morta.

As frases recitadas
que todas as noites nos embalam o sono
e nos tolhem os sonhos,
são uma missa entoada em latim vulgar,
não dão pra dançar.

Ouço cantar uma língua de contas
e de trapos
e vejo aos saltos coelhos e cartolas,
merkels e mercados,
bancos e bandidos,
e muitos passos
perdidos.

Desfilam sociedades secretas
e casas de segredos,
arranjinhos e arremedos,
piores emendas para maus sonetos
e muitos bichos caretos.

Entre um estômago meio cheio
e uma cabeça meio vazia,
olhamos como se esperássemos
um milagre de maria.

Mas diz que, não tarda, vamos ali ao mercado
e que é tudo fiado,
mas com juros baixinhos.
Pra comprar jaquinzinhos?

Diz que o país, se calhar,
vai crescer um cabelo.
E o tamanho do pelo
vai pagar o pão?

Diz que dívida assim
e o défice anão; 
diz que pouco salário
e menor pensão;
diz que quem fala do alto
é quem tem a razão,

mas o maior défice
é de imaginação.


27 março, 2013

A D. Adosinda trouxe-me notícias do défice

A D. Adosinda trouxe-me notícias do défice. Ela ainda insiste em chamar-lhe deficit, o que é talvez reminiscência de um tempo em que ninguém prestava muita atenção a esse cavalheiro.

A D. Adosinda é a minha consultora para assuntos de economia e finanças. Destas duas coisas ela sabe rigorosamente nada, condição que a meus olhos muito a recomenda e razão pela qual resolvi valer-me dos seus graciosos serviços. O facto de serem graciosos, no sentido de gratuitos, também pesou um pedacinho, vá. Desconfio, aliás, que só são graciosos porque a D. Adosinda ainda não deu conta de que, enquanto me limpa a casa por uma remuneração modesta, me faz o favor de abafar o som do noticiário, susbstituindo-o pela sua inestimável informação, que tem a vantagem de ser compreensível, ainda que às vezes pareça um nadinha fora de propósito.


Hoje, por exemplo, disse-me que estivera com o deficit em Sintra! Apanhado de chofre, limitei-me a arregalar os olhos para não entornar o café. Não sei se foi em Sintra que ele foi oficialmente avistado pela última vez, quando alguém das finanças veio à televisão dizer que tinha sido fortemente reduzido, mas a D. Adosinda garante-me que ele continua um belo rapaz, adjetivação simples que me parece traduzir o apreço da senhora por homens, digamos assim, robustos. Achei sensato não inquirir sobre os pormenores da coisa, uma vez que nesse exato momento a senhora se preparava para limpar o pó à jarra de porcelana que está em cima da cómoda.

As conversas com a D. Adosinda tornaram-se no momento mais luminoso dos meus dias, desde que todos os impostos me começaram a subir como uma violenta urticária, que me impede de sair de casa sem incorrer em despesas incomportáveis. Foi até a D. Adosinda que primeiro me chamou a atenção para o exorbitante preço do bitoque no snack-bar da esquina, que entretanto encerrou, e me sugeriu umas receitas fáceis e económicas, com muito ómega 3. Esta é outra coisa que muito aprecio: o cuidado que ela revela pelo meu nível de colesterol e tensão arterial. Desde o dia em que percebeu que a dilatação das minhas narinas e das veias da região temporal ocorria imediatamente após o aparecimento no écrã da televisão de uma astróloga ou de um economista, começou a desligar o aparelho da tomada para poder usar o aspirador. 

É possível que a motivação da minha consultora não seja puramente altruísta, uma vez que não lhe pago as horas vai já para três meses e um enfarte ocorrido nessas circunstâncias poderia incapacitar-me para a assinatura do cheque. Nisto a D. Adosinda tem a perspicácia dos credores do estado: faz o possível por me manter vivo, solvente e agradecido.     

Instantes

1   Diziam, pela calada agonia dos instantes que eram mudos.   Julgavam-nos pela constância infinita das lamentações pelo fôlego breve do pá...