06 junho, 2015

As estantes: monoculturas e o mundo claramente invisível

you can't leave me on the shelf
you gotta commit yourself

Billie Holiday, “Now or Never” (1949)

Quando olho para uma estante, vejo apenas um sítio para arrumar livros. Tenho uma visão pitosga do mobiliário e da decoração. Embora saiba que as prateleiras podem ser usadas para colocar muitos outros objetos, a coisa que primeiro me ocorre, certamente por força do que a vida me fez e do que eu faço dela, é aquilo que as prateleiras podem fazer pela minha modesta biblioteca. A limitação não está nas estantes, portanto, mas na minha imaginação.

As minhas estantes são estantes especializadas. Como se especializaram em livros, estes acabaram por ocupar todo o espaço de que elas podiam dispor. Logo, as estantes são como as pessoas. Às nossas especializações, profissionais ou diletantes, costumamos chamar “ocupações”, designação que parece apropriada, uma vez que elas ocupam muito do espaço onde outras coisas poderiam caber. Podem ir ocupando literalmente o espaço físico e finito das casas onde vivemos, se forem como as estantes de quem adquire muitos livros, por exemplo, mas ocupam sobretudo o espaço da mente, cujo potencial infinito costumamos confinar aos dois ou três quartinhos habituais, aqueles recantos da casa do ser que nos dão o conforto da familiaridade.

Somos, pelo menos em parte, aquilo que nos ocupa, mas estes hábitos ocupacionais são apenas aquilo de que podemos mais facilmente falar quando nos apresentamos a alguém. Dizemos: “sou professor”, “sou eletricista”, “sou melómano”, “sou colecionador de borboletas”, etc. As ocupações são identidades de cartão, bidimensionais e recicláveis, embora poucas vezes as reciclemos de forma voluntária, porque perder um hábito que socialmente nos define é mais difícil do que perder alguém de família.

E quando a autodefinição nos agrada, persistimos. Se a persistência se torna monomania, porém, podemos um dia acordar com o mundo às avessas: em vez de ver nas estantes superfícies para arrumação de livros, podemos dar connosco a achar que o mundo inteiro é apenas um conjunto de estantes em potência. O hábito torna-se assim num vício com inclinações expansionistas. A partir daí, a lógica já só existe na mente do obcecado bibliómano, que ainda assim a achará evidente e universalmente compreensível.

Todo o mundo é uma estante

Portanto, até os bons hábitos podem ser maus. A especialização disciplinar dos estudiosos de qualquer matéria é um desses hábitos expansionistas: é uma coisa tão boa que pode ser catastrófica. É desejável, porque é sempre preciso saber mais e é impossível não restringir aquilo que se estuda a uma pequena parcela da realidade de cada vez. Só que, quanto mais o olhar se especializa e mais é o que vê no menos que olha, mais é também o que perde naquilo que deixa de olhar:

Até que a luz que se faz não deixa ver
a luz inteira
e a noite fechada de fraco fósforo
se alumia 

Aquilo que nos define pode ser também aquilo que nos cega e nos constrange. E constrange e obscurece o mundo ao ponto de o tornar invisível, de tão claro.

Mas o que é realmente aterrador é quando a visão estreita de pessoas individuais se transforma em todo um Zeitgeist, que em português se costuma traduzir por “espírito do tempo”. É o que ocorre quando o olhar de uma especialidade se transforma na única maneira de pensar sobre a realidade, ou uma parte considerável dela, quando uma monomania se transforma numa monocultura.

Infelizmente, vivemos numa dessas monoculturas e a especialidade que arruma o mundo todo nas suas prateleiras é a economia. Já ouvi dizer que a crise nos transformou a todos em economistas instantâneos, o que, para mim, não significa que haja mais gente a perceber melhor o que se passa, mas mais gente a olhar para o mundo pelo lado errado do telescópio. Pode ser que muitos não tenham dado conta, mas toda a conversa que passa por política nestes tempos que não correm, mas se arrastam, não é mais do que a redução pitosga da sociedade a um conjunto de indicadores macroeconómicos e variáveis contabilísticas.

A sociedade não é redutível a relações económicas. A economia não é uma “teoria de tudo”. Andam a pôr a nossa vida nas prateleiras erradas.

Instantes

1   Diziam, pela calada agonia dos instantes que eram mudos.   Julgavam-nos pela constância infinita das lamentações pelo fôlego breve do pá...