25 março, 2016

Primeiros dias de primavera (prelúdio e fim)

George Shaw, Where First and Last Things Sound the Same, 2009

Primeiros dias de primavera, lembras
os sinais de lume quando a manhã
levantava o céu e pelo chão molhado
escorria um sol de ressaca que arrastava
as sombras da rua até ao fim.

E não havia fim, ninguém
queria fugir, a cidade inteira passava
distraída, as tardes eram iguais
e ao contrário de iguais, infinitamente
previsíveis e improváveis, não sabíamos
contar, não tínhamos razão, queríamos
futuro nenhum, amor talvez.

E de que serve saber o que se quer
quase nada é como se quer. Tomados
de surpresa caminhámos juntos
até onde o ardor calhou, junto ao mar
bebemos chá, falámos horas sem fio, choveu
ao fim da tarde e vimos como filme esquecido
o anoitecer da alma. Ainda assim sorrias
e era como se os lilases na terra morta
rebentassem outra vez.


13 março, 2016

Bleak House Road, Karachi

(Uma rapariga longe do céu e à procura de si mesma)



Vieira Da Silva, A Biblioteca 
(1966)

Só nas palavras dos outros podias ser tu
de todas as maneiras. Nos livros
podias deixar o quarto escuro, a cidade
das sombras, o país encoberto por histórias
antigas, podias sair de dentro de ti e ser tudo
de todas as maneiras.

Numa cidade com mais de 20 milhões de pessoas
cercadas pelo medo, do que todas precisavam
era de um sítio para onde fugir, diziam
mas fecharam a biblioteca de Bleak House Road
por causa de quem mata em nome de um livro só.

Num mundo ofuscado pela fé, todos ficam cegos
de alguma maneira. Só
nas palavras dos livros podias fugir
do Livro, nas histórias dos outros incertamente
saber de ti.

Porque no Livro, é claro, tudo tem que ser
da maneira certa, da maneira que certos homens
no sono da fé, sonham que conta.

E só os homens de grande fé podem falar
pelo deus calado e sabem
o que deus deixa ser
e beber e o que uma mulher
pode vestir e a hora de orar
e a honra de morrer
e quem pode no fim subir ao céu
e o que pode até haver no céu
e o que pode e não pode tocar o céu
da boca, porque mesmo o toucinho
só se for do céu.

Numa cidade de mais de 20 milhões iletrados
pelo Livro, do que todos precisavam
era de saber ler, mas fecharam a biblioteca
por causa dos que tudo fazem em nome de nada
que se possa verdadeiramente conhecer.

Só nas palavras dos outros achavas
a dúvida, aprendias que a bondade é talvez
a única guerra que vale a pena ganhar
mesmo perdendo, que nenhuma beleza
pode ser a última, que só vale a pena explodir
de felicidade e que o único céu
são os olhos de quem ama.


(Estes versos foram inspirados pelo testemunho de Kamila Shamsie sobre a importância das bibliotecas, incluído no livro de Ali Smith de que já falei no post anterior. Kamila Shamsie é uma romancista de língua inglesa natural de Karachi, no Paquistão. A rapariga do poema não é ela. O encerramento da biblioteca do British Council existente na Bleak House Road, em Karachi, ocorreu na sequência do 11 de setembro de 2001, por razões de segurança. O medo rouba mais do que a vida. O Islão é apenas uma das formas de obscurantismo sectário que povoam Karachi e muitas cidades e países pelo mundo fora. Nem todas têm um Livro, mas todas gostam pouco de boas bibliotecas e de pessoas com dúvidas.) 

O mais recente romance de Kamila Shamsie



Instantes

1   Diziam, pela calada agonia dos instantes que eram mudos.   Julgavam-nos pela constância infinita das lamentações pelo fôlego breve do pá...