08 maio, 2013

Profetas e precipitações

A minha ignorância não tem limites. Até aqui, nada de novo. Vivo menos mal com a consciência desta limitação congénita, mas todos os dias mexo uma ou duas palhas no sentido de me ilustrar um pouco e merecer um lugar à mesa de jantar. Há, porém, uma descoberta recente que me tem provocado alguma perda de apetite e reparei até nuns olhares de soslaio da figura canhota que me observa quando faço a barba. Não é para menos. É que, pelas minhas contas, devo ser praticamente a única pessoa do mundo (pelo menos fora da Coreia do Norte) que não previu a crise financeira de 2008, nem a recessão, nem as crises da dívida e do défice que se lhe seguiram. Estou que não posso.

A verdade nua e crua – como a verdade se quer a caminho do verão e perto do mar, sempre com uma pitada de sal – é que estou já um nada estrábico, fiquei até meio surdo e ando bastante deprimido de tanto ler e ouvir aqueles que, ao contrário de mim, previram tudo. Todos me dizem que se estava mesmo a ver. Só podia ter sido assim. Economistas, paraeconomistas, pseudoeconomistas, taxistas, aqueles que começam as frases com, “eu não percebo nada de economia, mas…”, para já não falar dos licenciados por equivalência nas universidades que economizam em aulas para emitir diplomas, todos, mas todinhos, previram este castelo de cartas em que só nos caem duques. Podiam ter avisado. Ao menos teria metido as cuecas na mala e desligado o fogão.

Esta minha exclusão do pouco exclusivo grupo de profetas tem, é claro, uma explicação muito simples: é que as perspicazes previsões foram quase todas feitas após as nefastas ocorrências. Ah! Pois claro! Parece um nadinha como fazer batota, não é? Estes oráculos, espontâneos ou avençados, que foram rotundamente incompetentes para prever fosse o que fosse, não deixam que esse pormenor lhes venha agora empeçar os movimentos da língua, nem embaraçar a segurança com que explicam o que não entenderam. Quem ainda lhes dê atenção, não deixará de observar a fascinante ousadia com que agora falam do futuro, a segurança com que esgrimem gráficos, contam contos e acrescentam pontos, para provar, por um lado, que o que aconteceu não poderia deixar de ter acontecido e que, em consequência, o que tem que ser não deixará de fazer valer a sua força.

O problema que me aflige é que há diagnósticos e prognósticos para todos os gostos e as receitas não podem, forçosamente, coincidir. Assim sendo, que garantias temos nós de que esta gente sabe mesmo do que fala? Se todos sabem, mas não concordam uns com os outros, que coisas saberão realmente? Que saber é este e onde está ele guardado? Podemos confiar em alguma das coisas que diariamente ouvimos? A resposta é aterradoramente fácil: claro que não. Alguém há de acertar, mas será quase por acaso. Mas atenção, eles não fazem por mal, são apenas gente como nós.

A mente humana tem uma enorme dificuldade em lidar com a incerteza e com o acaso. Grande parte dos erros cognitivos e falácias lógicas em que todos os dias incorremos (uns mais do que outros) devem-se aos esforços subconscientes para conferir ordem e sentido a fenómenos complexos e sem verdadeira coerência, ou até a simples coincidências. Tal como os índios norte-americanos pensavam que a chuva caía, após longa seca, só porque tinham dançado na véspera (ignorando todas as vezes em que a chuva se recusara a cair), também nós temos tendência para estabelecer nexos causais entre acontecimentos apenas porque ocorreram em tempos ou lugares próximos entre si (Post hoc ergo propter hoc, será que o latim ainda impressiona alguém quando basta ir ao Google buscar a definição?); procuramos confirmação para aquilo em que acreditamos, ao mesmo tempo que ignoramos os factos que poderiam provar o erro de tais convicções; vemos monstros nas nuvens, figuras mitológicas nas constelações e a Virgem Maria numa tosta mista.


Tudo isto se deve à extraordinária aptidão do nosso cérebro para garantir a sobrevivência da espécie na selva ou na savana, mas é um pouco disfuncional numa cultura saturada de sinais, em que a racionalidade faz mais falta do que os instintos primitivos. Na selva, ou na savana, mais valia errar por excesso do que por defeito. Fugir da própria sombra porque ela, por um segundo que fosse, se parecia com o leão à procura do almoço, não teria consequências nenhumas. Já ignorar a sombra, que poderia mesmo ser o leão à procura do almoço, implicaria a probabilidade, ainda que remota, de uma viagem sem regresso pelo aparelho digestivo da fera. O problema é que o nosso cérebro é ainda praticamente igual ao dos caçadores-recoletores, e esta fascinante capacidade para reconhecer padrões, quando chamada a lidar com a complexidade da selva semiótica, resulta muitas vezes em divertidas leituras de folhas de chá. Veem-se ou inventam-se padrões onde eles não existem e constroem-se narrativas para ligar ocorrências desconexas. A nossa memória, então, é particularmente criativa e infiel a engendrar histórias com os destroços do passado, à procura de um sentido para a seta do tempo.

E é por isso que as crises parecem hoje fáceis de explicar. Retrospetivamente, claro. Porque entretanto já sabemos quais as variáveis que se conjugaram para nos tramar. O problema é que na altura não se estavam mesmo a ver, porque aquilo que era possível enxergar tinha a complexa configuração, não de um, mas de múltiplos caminhos que se bifurcam e nenhum parecia necessariamente mais provável. Podia temer-se o pior, é certo, porque sabemos que o pior pode sempre acontecer, mas é preciso ter azar.

Quanto ao futuro, e ao contrário do que os irreprimíveis profetas possam vislumbrar nos seus berlindes de cristal, é apenas mais uma nuvem, que pode ou não precipitar-se.   

Instantes

1   Diziam, pela calada agonia dos instantes que eram mudos.   Julgavam-nos pela constância infinita das lamentações pelo fôlego breve do pá...