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22 setembro, 2015

As barbas de Henrique VIII

Nunca se viram tantos homens de barba. A coisa não me interessa enquanto tendência. Não sou de modas. Já enquanto economista – doutorado a um fim de semana pela Universidade da Internet de Baixo – e historiador especializado em problemas capilares, a súbita multiplicação de faces hirsutas entre os meus concidadãos do sexo masculino tem-me dado bastante que pensar.

Depois de tomar um chá e de coçar a orelha direita com a mão do mesmo lado, fui à estante da história à procura de luz. É lá que se esconde o interruptor do meu candeeiro de leitura. No exato momento de dar à dita, digamos assim, acendeu-se-me o olhar com as lombadas da história inglesa e a barba refulgente do monarca das seis mulheres. O excesso de cônjuges do oitavo Henrique, e a maneira criativa como dissolveu os matrimónios inférteis em varonil descendência, podem ter desviado as atenções daquele que é provavelmente o seu maior legado à posteridade e fonte de inspiração da minha proposta para aumentar exponencialmente a receita fiscal e resolver de uma penada o problema do défice.


(Henrique VIII por Hans Holbein, o jovem)

Em 1535, numa época em que as caras atapetadas eram tão ou mais frequentes do que hoje, o bom do rei, proprietário ele mesmo de ruivo revestimento facial, impôs, como se impõe, um imposto sobre as barbas. O imposto não era cego e indiscriminado, ao contrário do IVA que os nossos escanhoados governantes nos infligem, e tinha uma óbvia preocupação social. Como recomendam os princípios de uma fiscalidade distributiva, era um imposto progressivo, uma vez que variava com a posição social do barbudo.

Já a sua filha Isabel, primeira do nome enquanto rainha e fruto das segundas núpcias, com Ana Bolena, reintroduziria o imposto, entretanto abolido, com uma variação provavelmente mais justa, que tinha em atenção a dificuldade de adquirir lâminas descartáveis antes da invenção dos supermercados: apenas eram tributadas as barbas com pelo menos duas semanas de crescimento. Não se sabe como é que os inspetores das finanças faziam os cálculos. Devia ser a olho, fazendo uso dos chamados métodos indiciários, que ainda hoje têm muitos adeptos e se traduzem assim: o que parece, paga.

É claro que os monarcas ingleses não foram os únicos a perceber as vantagens de tosquiar por via tributária os cavalheiros negligentes. Pedro I da Rússia, já nos finais do século XVII, quis modernizar à força os costumes e, “em linha com as praças europeias” (segundo redação do meu correspondente na bolsa de detritos linguísticos), obrigou os súbditos a transportar consigo um comprovativo de boa cobrança, sob a forma de uma medalhinha que trazia, de um lado, a águia imperial e, do outro, além de uma representação da parte inferior da face coberta de pelos, uns dizeres que atestavam pagamento do imposto – “dinheiro recebido” – e a justificação lapidar da sua existência: “a barba é um peso supérfluo”. E não é?

Já estão certamente a ver onde quero chegar e antecipo até as objeções práticas que podem ser colocadas à proposta, que ainda mal esbocei, de penalizar as barbas e salvar a nação das garras dos credores. Provavelmente estão a pensar que o imposto nunca arrecadaria receita que se visse, uma vez que os nossos enérgicos cidadãos imediatamente boicotariam a medida através de um barbeamento estratégico. Errado, porque o meu programa tem as contas feitas e essa não seria uma medida isolada. Para impedir a evasão fiscal por ausência de pilosidade, seriam também tributados, como artigos de luxo, as lâminas de barbear e todos os instrumentos passíveis de atingir fins semelhantes, como cremes depilatórios, navalhas, machados, moto-serras e pedras lascadas.  

Agora vou fazer a barba, que é o único luxo que me resta.

Instantes

1   Diziam, pela calada agonia dos instantes que eram mudos.   Julgavam-nos pela constância infinita das lamentações pelo fôlego breve do pá...