29 dezembro, 2013

A sopa dos pobres é o chichi dos ricos?

Vivemos hoje uma ironia trágica. Aqueles que nos vendem a ideia da “distribuição dos sacrifícios” (expressão eufemística que significa que os pobres têm que pagar pelas asneiras dos ricos, ou os cidadãos individuais pelos crimes dos bancos) são também os que menos acreditam na “redistribuição da riqueza”. Esta seria a função de uma fiscalidade verdadeiramente progressiva e equilibrada: corrigir assimetrias que ofendem o mais elementar sentido da decência e dividem a sociedade entre uma pequena vara de porcos anafados e crescentes rebanhos de cordeiros escanzelados, corroendo por dentro o corpo social como metástase de um tumor maligno.
   
A ideia de redistribuição por via fiscal, materializada na criação do estado social de tipo europeu, fez escola e caminho nos países mais desenvolvidos desde os reformismos de finais do século XIX até à década de 1970, reduzindo progressivamente o fosso de rendimentos e criando sociedades mais felizes. Não é por acaso que os países com menores diferenças de rendimentos aparecem sempre entre aqueles com mais elevados índices de bem-estar. De então para cá, para desgraça de muitos e benefício de poucos, outra ortodoxia tomou conta do espaço mental e, em consequência, as desigualdades atingiram níveis pornográficos.

O sistema que hoje insidiosamente se semeia, a pretexto de uma muito conveniente crise financeira, protege preferencialmente os lucros, em detrimento dos rendimentos do trabalho, e tem vindo a reduzir progressivamente a proteção e os benefícios sociais que asseguravam uma certa medida de igualdade e de mobilidade social, condições necessárias de uma sociedade justa e saudável. Isto já foi dito por tanta gente (incluindo o Papa) e de tantas maneiras, que se tornou um mero lugar-comum. E, no entanto, é geralmente ignorado, na melhor das hipóteses, com um encolher de ombros condescendente e com uma arrogância intolerável. A crise atual serve apenas como justificação fácil para a tomada de medidas que estão entre os mandamentos de uma doutrina que vem de longe e que é o oposto da social-democracia europeia, do liberalismo americano e da doutrina social da igreja católica.

E tudo em nome de um suposto incentivo ao investimento privado e à criação de riqueza, da qual todos beneficiariam a prazo (nem que seja no longo prazo, quando todo estivermos mortos). Essencialmente, é a teoria do trickle-down economics (designação engraçada que, nem de propósito, se deve a uma graça do humorista americano Will Rogers na era da Grande Depressão). Os seus defensores acreditam, ou querem fazer-nos acreditar, que se os ricos estiverem muito, muito cheios, alguma liquidez lhes escorrerá pelas pernas abaixo e que este acidente urinário fará a todos muito proveito.


Percebe-se que haja quem goste da ideia, mas parece que as coisas não funcionam bem assim. Nem a acumulação de riqueza por uma minoria parece ter direta correlação com o crescimento da economia, nem os pobres ganham com isso mais do que umas migalhas extraviadas e contrafeitas (ver, por exemplo, este livrinho). Como se viu este ano em Portugal, com mais 85 milionários a chorar a caminho do banco e muitos milhares às gargalhadas no banco alimentar, as bexigas dos ricos têm uma notável capacidade de retenção. 



08 dezembro, 2013

À moral de César não bastava ser pobre

Quando tantos sofrem a tortura refinada de voltar a ingerir óleo de fígado de bacalhau; quando se submete o corpo do paciente país às sangrias que o barbeiro receitou, parecem nascer como cogumelos na terra húmida, entre calhaus e tubérculos, os moralistas espontâneos. Devo advertir que são, em geral, nocivos à saúde, embora os efeitos variem de pessoa para pessoa, consoante as defesas que o organismo de cada uma tenha desenvolvido contra os arrogantes dislates e a néscia autossuficiência. No meu caso, o primeiro sintoma é sempre a náusea. 

Aparecem, então, os cogumelos moralistas. Vêm de catecismo e de cacete, de fé e de fado, e veem um país a preto e branco. Dividem sempre tudo em dois: o público e o privado; os preguiçosos e os empreendedores; os que usam chapéu preto e os que usam chapéu branco; os que estão de acordo com as opiniões que eles mesmos geraram ou enxertaram, numa relação endogâmica entre os dois neurónios eremitas a quem arrendam a caixa craniana, e os estúpidos, que são todos os outros.



Dizia um, erguendo a voz e agitando os bracinhos gordos espetados, com as mãos quase postas, como quem impinge o livrinho sagrado das suas receitas, e a cabeça em cima dos ombros como um abacaxi invertido: “Dos verdadeiros pobres ninguém fala!”. E repetia: “Dos verdadeiros pobres ninguém fala!”. Quando ouvi o senhor professor brandir esta síntese da sua perfeita dialética, senti-me naturalmente esmagado sob o peso de tanta densidade filosófica, humilhado na minha confessa omissão, que ele, num golpe de virtuosa retórica, tão perfeitamente flagelava. A ciência do homem! O cume altivo da sabedoria daquele verdadeiro Everest intelectual, tão perto do céu quanto a seres humanos seria possível alcançar, se não tivessem passado da Idade do Bronze e inventado os aviões!

Mas depressa me dei conta do truque. Lá estava mais uma marota divisãozinha em dois: os “verdadeiros pobres” e os que “andam a fingir que são pobres”. Não há nada como dividir os pobres. Os pobres são mesmo bastante divisíveis. São bem mais fáceis de dividir do que os sacrifícios da austeridade e do que aqueles chocolates que nunca partem bem ao meio. Então quando os pobres se multiplicam (mesmo sem se reproduzirem, os madraços!) o melhor é mesmo dividi-los. Para reinar, sim. Estes moralistas são muito reinadios. E a melhor maneira de dividir os pobres é mesmo dizer que só uma parte deles é que é “verdadeiramente” pobre. Reparem como pendurei umas aspas, ou umas orelhas de burro, nas palavras do doutor.

Não é preciso ser filósofo para distinguir a pobreza absoluta daqueles a quem tudo falta – comida, escola, medicamentos, trabalho, um tostão furado e um lugar onde cair morto – da pobreza relativa daqueles para quem, não obstante o que possam ter, não existe garantia de participação plena numa sociedade na qual supostamente têm direitos iguais aos de todos os outros cidadãos – uma casa decente, comida bastante, a melhor escola possível, saúde de acordo com as necessidades, e o rendimento que chegue para garantir esses direitos e, já agora, também o acesso a uns quantos bens materiais e imateriais que só aos filisteus parecem luxo, mas são condição de dignidade. A exclusão social por razões económicas, que limita direitos e reduz a qualidade de vida, ainda que seja apenas por comparação com a qualidade de vida daqueles com quem se partilha a nacionalidade, não merece, na filosofia moral deste católico caridoso, pertencer à categoria de pobreza. É que, ainda por cima, em vez de darem graças a Deus por poderem usufruir de oxigénio gratuito, estes “remediados” (será que o professor os admite ao menos nesta condição?) têm o descaramento de se queixar e “andam a fingir que são pobres”. Não serão pobres, mas são seguramente mentirosos e mal-agradecidos.

Ao venturoso professor César pode faltar a imaginação para se ver na pele dos outros, daí a falta de empatia. Para a lagarta da alface, o mundo é uma alface. Mas o bem-aventurado professor das Neves leu o sermão da montanha e sabe que é seu o reino dos céus, ao qual ascenderá em primeira classe, a dos pobres em espírito.  

Instantes

1   Diziam, pela calada agonia dos instantes que eram mudos.   Julgavam-nos pela constância infinita das lamentações pelo fôlego breve do pá...