Vivemos
hoje uma ironia trágica. Aqueles que nos vendem a ideia da “distribuição dos
sacrifícios” (expressão eufemística que significa que os pobres têm que pagar
pelas asneiras dos ricos, ou os cidadãos individuais pelos crimes dos bancos)
são também os que menos acreditam na “redistribuição da riqueza”. Esta seria a
função de uma fiscalidade verdadeiramente progressiva e equilibrada: corrigir
assimetrias que ofendem o mais elementar sentido da decência e dividem a
sociedade entre uma pequena vara de porcos anafados e crescentes rebanhos de cordeiros escanzelados, corroendo por dentro o corpo social como metástase de um tumor maligno.
A ideia de
redistribuição por via fiscal, materializada na criação do estado social de
tipo europeu, fez escola e caminho nos países mais desenvolvidos desde os
reformismos de finais do século XIX até à década de 1970, reduzindo progressivamente
o fosso de rendimentos e criando sociedades mais felizes. Não é por acaso que
os países com menores diferenças de rendimentos aparecem sempre entre aqueles
com mais elevados índices de bem-estar. De então para cá, para desgraça de
muitos e benefício de poucos, outra ortodoxia tomou conta do espaço mental e,
em consequência, as desigualdades atingiram níveis pornográficos.
O sistema que
hoje insidiosamente se semeia, a pretexto de uma muito conveniente crise financeira,
protege preferencialmente os lucros, em detrimento dos rendimentos do trabalho,
e tem vindo a reduzir progressivamente a proteção e os benefícios sociais que
asseguravam uma certa medida de igualdade e de mobilidade social, condições
necessárias de uma sociedade justa e saudável. Isto já foi dito por tanta gente
(incluindo o Papa) e de tantas maneiras, que se tornou um mero lugar-comum. E,
no entanto, é geralmente ignorado, na melhor das hipóteses, com um encolher de
ombros condescendente e com uma arrogância intolerável. A crise atual serve apenas
como justificação fácil para a tomada de medidas que estão entre os mandamentos
de uma doutrina que vem de longe e que é o oposto da social-democracia europeia,
do liberalismo americano e da doutrina social da igreja católica.
E tudo em
nome de um suposto incentivo ao investimento privado e à criação de riqueza, da
qual todos beneficiariam a prazo (nem que seja no longo prazo, quando todo
estivermos mortos). Essencialmente, é a teoria do trickle-down economics (designação
engraçada que, nem de propósito, se deve a uma graça do humorista americano
Will Rogers na era da Grande Depressão). Os seus defensores acreditam, ou querem
fazer-nos acreditar, que se os ricos estiverem muito, muito cheios, alguma
liquidez lhes escorrerá pelas pernas abaixo e que este acidente urinário fará a
todos muito proveito.
Percebe-se
que haja quem goste da ideia, mas parece que as coisas não funcionam bem assim.
Nem a acumulação de riqueza por uma minoria parece ter direta correlação com o
crescimento da economia, nem os pobres ganham com isso mais do que umas migalhas
extraviadas e contrafeitas (ver, por exemplo, este livrinho). Como se viu este ano em Portugal, com mais 85 milionários
a chorar a caminho do banco e muitos milhares às gargalhadas no banco alimentar,
as bexigas dos ricos têm uma notável capacidade de retenção.