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08 dezembro, 2013

À moral de César não bastava ser pobre

Quando tantos sofrem a tortura refinada de voltar a ingerir óleo de fígado de bacalhau; quando se submete o corpo do paciente país às sangrias que o barbeiro receitou, parecem nascer como cogumelos na terra húmida, entre calhaus e tubérculos, os moralistas espontâneos. Devo advertir que são, em geral, nocivos à saúde, embora os efeitos variem de pessoa para pessoa, consoante as defesas que o organismo de cada uma tenha desenvolvido contra os arrogantes dislates e a néscia autossuficiência. No meu caso, o primeiro sintoma é sempre a náusea. 

Aparecem, então, os cogumelos moralistas. Vêm de catecismo e de cacete, de fé e de fado, e veem um país a preto e branco. Dividem sempre tudo em dois: o público e o privado; os preguiçosos e os empreendedores; os que usam chapéu preto e os que usam chapéu branco; os que estão de acordo com as opiniões que eles mesmos geraram ou enxertaram, numa relação endogâmica entre os dois neurónios eremitas a quem arrendam a caixa craniana, e os estúpidos, que são todos os outros.



Dizia um, erguendo a voz e agitando os bracinhos gordos espetados, com as mãos quase postas, como quem impinge o livrinho sagrado das suas receitas, e a cabeça em cima dos ombros como um abacaxi invertido: “Dos verdadeiros pobres ninguém fala!”. E repetia: “Dos verdadeiros pobres ninguém fala!”. Quando ouvi o senhor professor brandir esta síntese da sua perfeita dialética, senti-me naturalmente esmagado sob o peso de tanta densidade filosófica, humilhado na minha confessa omissão, que ele, num golpe de virtuosa retórica, tão perfeitamente flagelava. A ciência do homem! O cume altivo da sabedoria daquele verdadeiro Everest intelectual, tão perto do céu quanto a seres humanos seria possível alcançar, se não tivessem passado da Idade do Bronze e inventado os aviões!

Mas depressa me dei conta do truque. Lá estava mais uma marota divisãozinha em dois: os “verdadeiros pobres” e os que “andam a fingir que são pobres”. Não há nada como dividir os pobres. Os pobres são mesmo bastante divisíveis. São bem mais fáceis de dividir do que os sacrifícios da austeridade e do que aqueles chocolates que nunca partem bem ao meio. Então quando os pobres se multiplicam (mesmo sem se reproduzirem, os madraços!) o melhor é mesmo dividi-los. Para reinar, sim. Estes moralistas são muito reinadios. E a melhor maneira de dividir os pobres é mesmo dizer que só uma parte deles é que é “verdadeiramente” pobre. Reparem como pendurei umas aspas, ou umas orelhas de burro, nas palavras do doutor.

Não é preciso ser filósofo para distinguir a pobreza absoluta daqueles a quem tudo falta – comida, escola, medicamentos, trabalho, um tostão furado e um lugar onde cair morto – da pobreza relativa daqueles para quem, não obstante o que possam ter, não existe garantia de participação plena numa sociedade na qual supostamente têm direitos iguais aos de todos os outros cidadãos – uma casa decente, comida bastante, a melhor escola possível, saúde de acordo com as necessidades, e o rendimento que chegue para garantir esses direitos e, já agora, também o acesso a uns quantos bens materiais e imateriais que só aos filisteus parecem luxo, mas são condição de dignidade. A exclusão social por razões económicas, que limita direitos e reduz a qualidade de vida, ainda que seja apenas por comparação com a qualidade de vida daqueles com quem se partilha a nacionalidade, não merece, na filosofia moral deste católico caridoso, pertencer à categoria de pobreza. É que, ainda por cima, em vez de darem graças a Deus por poderem usufruir de oxigénio gratuito, estes “remediados” (será que o professor os admite ao menos nesta condição?) têm o descaramento de se queixar e “andam a fingir que são pobres”. Não serão pobres, mas são seguramente mentirosos e mal-agradecidos.

Ao venturoso professor César pode faltar a imaginação para se ver na pele dos outros, daí a falta de empatia. Para a lagarta da alface, o mundo é uma alface. Mas o bem-aventurado professor das Neves leu o sermão da montanha e sabe que é seu o reino dos céus, ao qual ascenderá em primeira classe, a dos pobres em espírito.  

Instantes

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