25 fevereiro, 2016

Saramago Street

"Sitting on history” de Bill Woodrow, na British Library

Em Kirkintilloch, pequena localidade escocesa a menos de meia hora de Glasgow, existe uma ruazinha torta chamada Saramago Street. Não é grande coisa, mas é uma homenagem. Em Mafra, localidade portuguesa a pouco mais de meia hora de Lisboa, existe uma escola pública chamada José Saramago. É uma homenagem digna, dar o nome do escritor a uma escola.

Em Kirkintilloch há uma biblioteca pública. Não sei se existirá por muito mais tempo, porque os governos das austeridades gostam de queimar livros (chamam-lhe “reduzir a despesa”, ou “desinvestir”, ou “ajustar”, ou “racionalizar”) e em poucos anos o governo britânico fechou, ou deixou fechar, ou entregou à sorte do voluntariado, mais de mil dessas bibliotecas por todo o país. A mais igualitária das instituições, porque permite a toda a gente o acesso gratuito ao poder (“saber é poder” e “quem não sabe, é como quem não vê”, etc. e tal) tem o mesmo destino de tudo o que é serviço público às mãos de quem acha que utente é igual a cliente e que serviço tem que ser negócio.

Em Mafra há pessoas que querem que a sua escola pública deixe de se chamar Saramago. As razões não são razoáveis, nem sequer racionais e muito menos literárias, uma vez que literacia foi doença que os proponentes aparentemente não apanharam, nem na escola, nem numa biblioteca. São estas coisas que nos recordam que as pessoas que se cruzam connosco na rua podem vir de um país chamado passado, em que as coisas se fazem de maneira diferente. Parece que vêm para nos roubar o oxigénio e ocupar espaço em lugares onde se podiam colocar contentores para reciclagem de resíduos sólidos ou, quem sabe, uma biblioteca pública.


Fiquei a saber da rua de Kirkintilloch num livro de Ali Smith, escritora nascida na Escócia que sempre me enche de alegria, na sua profunda leveza. Public Library é o título de uma coletânea de contos, intercalados por pequenos textos sobre as bibliotecas públicas, instituição que tirou muita gente dos pequenos lugares mentais, e economicamente desfavorecidos, do ex-império onde antes o sol nunca se punha e onde hoje o verão pouco se vê. Esses pequenos textos são depoimentos, testemunhos e citações. Um deles contém uma estrofe de um poema de Jackie Kay, poeta também escocesa, que põe o pai adotivo, John Kay, a falar sobre/com uma biblioteca pública, num poema chamado "Querida Biblioteca". (A tradução apressada vai por minha conta e risco.) 

Aprecio o teu silêncio vivo; a simpatia dos teus bibliotecários.
Eles representam aquilo que um serviço público verdadeiramente é: libertário.
Impossível, não sei se já disse isto, pôr-lhe um preço. Uma vez mais
Interrompe-me se estiver a ser repetitivo, os teus funcionários falam-me
De uma rua Saramago numa cidade vizinha.
Procurar, requisitar, encomendar, renovar – palavras belas, para mim.
Um cartão da biblioteca na mão é a tua democracia.

Hamish Hamilton, 5 Nov. 2015

21 fevereiro, 2016

A improbabilidade do amor

O título deste texto não exprime a minha irrelevante opinião sobre sentimentos e afetos. Muito menos é o resultado de qualquer cálculo sobre as quantidades de uma coisa com a qual não se pode contar. O meu título é simplesmente o título de um livro. E é também o título de um quadro. De um quadro que não existe de facto, mas existe na ficção do livro que leva o seu nome. The Improbability of Love é um romance escrito por Hannah Rothschild e nele existe um quadro apenas imaginado, atribuído ao muito real Jean-Antoine Watteau, pintor que abriu o período Rococó, viveu brevemente, criou obra interessante e terá sofrido um amor frustrado.


O tema do quadro ficcional é precisamente o amor não correspondido. A sua composição inclui elementos dos verdadeiros quadros do pintor, entre os quais um palhaço triste (versão reduzida do Pierrot que se pode ver nesta página) que, dum canto da tela, observa um jovem amante prostrado aos pés da mulher que aparentemente brinca com os seus sentimentos. O rosto da mulher seria um retrato do objeto da paixão verdadeira do jovem Jean-Antoine Watteau, posteriormente alterado pelo próprio, numa tentativa de ultrapassar a dor da rejeição. O quadro torna-se, assim, alegoria do amor improvável. 

Jean-Antoine Watteau - Pierrot, antigamente chamado Gilles. Na Commedia dell'Arte, Pierrot era o palhaço triste, apaixonado por Colombina, que o troca pelo Arlequim

Há várias maneiras de gostar do romance. Tal como, quando nos encontramos perante um quadro, o olhar pode atender a cada pormenor discretamente, há nesta ficção três planos, sobrepostos, que poderiam ser apreciados em si mesmos, mas que apenas fazem pleno efeito quando observados em conjunto: a intriga do thriller no mundo da arte e do seu lucrativo comércio (com crimes e amores incluídos) é o primeiro plano, e é também a maneira mais imediata de ler; o segundo plano é a sátira a esse mesmo mundo (com bons retratos de figuras mais ou menos patéticas e representativas), que adiciona riqueza cromática à composição sob a forma de humor; por fim, a arte da pintura ela mesma, ou o amor da arte e da beleza, e da arte de Watteau em particular, dão sentido e coesão ao conjunto e são a sua verdadeira fonte de luz. O quadro, enquanto narrador de alguns dos capítulos, é um ponto de vista privilegiado sobre a vida e a técnica do pintor.  

Há muitas maneiras de gostar de livros, como de todas as coisas. E das pessoas também. E há encontros que só podem acontecer quando as condições estão já encontradas. Seria mais difícil marcar um encontro na estação do Rossio se não se soubesse onde ela fica, ou se não houvesse estação do Rossio, ou se não houvesse uma pessoa com quem marcar o encontro na estação do Rossio. Talvez, se eu nunca antes tivesse encontrado um quadro de Watteau, e não tivesse aprendido a gostar de pintura, este romance não tivesse acordado em mim nenhum prazer maior do que o de uma trama bem amanhada.

O prazer é mais improvável quando não existe memória de outros prazeres. Ou de outros saberes. Não é para isso que serve a educação? Não é disso também que se faz o amor? 

Edição inglesa


Edição portuguesa



08 fevereiro, 2016

Cloud 9 (ironic valentine)




(Antes)

Dizem que o céu é bom
para jantar, mas como
não és sócio
e estavas com pressa
ficaram mesmo ali
na primeira travessa.

De pernas para o ar
e de copos na mão
encontraram uma nuvem
para esconder a razão.
Era a nove, talvez
ou só embriaguez.

Vertigem onde a vida se perdia 
como mentira de luz.


(Depois)

Levaste por fim a sepultar
os gestos mortais, era verão
o peito ardia.

Ficou-te na boca só
um sabor a cinza, nem ouro
nem beijos guardas nem adeus
ouviste.

Uma memória é mais
um embaraço de riqueza
e a nuvem nove era só
a chave inglesa. 


Instantes

1   Diziam, pela calada agonia dos instantes que eram mudos.   Julgavam-nos pela constância infinita das lamentações pelo fôlego breve do pá...