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12 fevereiro, 2015

Gregos radicais e iogurtes nacionais: crónicas da dúvida soberana



Deveria fazer-se crónica miúda e ilustrada das maneiras como as pessoas se agregaram em resposta às gregas ocorrências. Não estou a pensar apenas nas respostas políticas e institucionais, mais ou menos picadas pelo ferrão da helena melga que a meio da noite do austero inverno veio perturbar o sono burocrático dos ocupantes das cómodas cadeiras do consenso. Estou a pensar também nas reações do chamado “cidadão comum”, o verdadeiro habitante do parvus mundus (do latino “pequeno”, não do corrente “parvo”). E já nem falo, embora falando já, dos ermos crânios da opinião, os que tudo precisam de saber dizer por encomenda e com hora marcada, ao menos para preservação da face e do estipêndio.

Destes últimos, dificilmente esquecerei, até ao derradeiro dos meus monótonos dias, o painel de um orgulhoso canal de notícias que acompanhou as imagens da noite eleitoral emitidas de Atenas: sem que nenhum dos três “especialistas” percebesse palavra de grego, sem tradução consecutiva ou simultânea e sem legendas possíveis, nenhum deles pediu escusa de funções, nem se sentiu inibido de comentar fosse o que fosse. Como? Pedindo desde já desculpa aos animais da única expressão que me ocorre, enchendo de palha os jumentos que ficaram a ouvi-los.

Em vários canais, na mesma noite, jornalistas e enviados “especiais” lamentarem-se, quase timidamente, do facto de os chefes dos partidos gregos não falarem ao menos inglês nos seus discursos de vitória ou de derrota. Uma desconsideração, seguramente! Não sonhei, era ainda cedo e não tinha bebido ao jantar. Viram-se os ditos repórteres proverbialmente gregos e ficaram os líderes dos partidos portugueses cientes de que nas próximas legislativas vão ter que pensar em satisfazer a curiosidade das hordas de jornalistas estrangeiros, já previstos por vários analistas políticos e agências de viagens, perante a iminência de um resultado eleitoral verdadeiramente estranho em Portugal: a vitória de um dos dois partidos do costume! Porque “Portugal não é a Grécia!”, repete diariamente o trágico coro.   

Fomos, assim, incomparavelmente informados, à maneira do repórter do romance Scoop, de Evelyn Waugh, que desembarcou do comboio no país errado, mas nem por isso deixou de relatar a guerra nas páginas do jornal que o enviara ao país onde ela realmente ocorria. Os nossos comentadores e repórteres desembarcaram as ideias feitas que tinham mais à mão e entregaram às redações a encomenda. Contribuíram assim para que os seus leitores, espetadores e ouvintes se dividissem de acordo com as mesmas ideias feitas, com rótulos vazios, mas que bastam ao preconceito e dispensam estudo: radical, marxista e... sexy (conceito político que não descobri na minha estante, mas admito apropriado e relevante para avaliação objetiva das propostas gregas).   

A crónica que não se fará das diferentes atitudes relativamente ao caso helénico encontraria certamente as pessoas divididas em dois grandes grupos – como em quase tudo neste planeta, que antes era analogicamente maniqueísta e agora é digitalmente binário: as que gostaram dos resultados e esperam algo de bom e as que acham que o resultado vai dar em desgosto e temem algo de mau. Como em quase tudo o que tão simplesmente se divide, os dois grupos estarão certamente errados.

Mas que tantos tenham, simplesmente, prestado um pouco de atenção, já me diz que outras luzes se podem estar a acender, ou que a fadiga perante a ladainha com que se encantam os tolos pode, finalmente, ser mais do que uma vela acesa à espera do milagre. Ou, então, é tudo imaginação minha.


09 novembro, 2014

Tragicomédia com pratos voadores

Há uma enorme tensão dramática num diálogo entre alienados com armas na mão. A tensão é quase sempre sustentada pela ameaça iminente de um desfecho trágico. Nos filmes ou no teatro, esse dramatismo faz parte do prazer que o espetador procura. Na vida real, porém, talvez só alguma perversão explique por que vejo tantas vezes o canal parlamento. 


As cenas de teatro que este canal oferece são bastante repetitivas, mas nem por isso menos assustadoras. Um destes dias, por exemplo, atiravam-se entre as várias bancadas alguns números do orçamento para 2015 – o aumento do IMI, a fiscalidade dita verde, a suposta impossibilidade de baixar o IRS – e vários deputados dos partidos que se acostumaram a governar comportavam-se como se brincassem na praia com preciosos pratos de porcelana chinesa pensando que fossem frisbees. Talvez os pratos, que são a vida de todos nós, e para muitos já são apenas cacos, devessem merecer um pouco mais de cuidado. As erráticas trajetórias dos pratos voadores, nestas discussões, provocam-me sempre uma valente dor de cabeça. Às vezes chega a ser uma espécie de violenta enxaqueca. 


Mas se fechar bem os olhos, espetar um indicador em cada ouvido e esperar 20 ou 30 anos, talvez isto passe. Estou a contar com uma esperança de vida que não subtraia muito dinheiro à segurança social com o pagamento da minha reforma (meramente hipotética, ou até mirífica, eu sei), porque o meu principal papel, enquanto cidadão responsável de um país em permanente estado de carência, é garantir o desafogo orçamental suficiente para que os governos competentemente distribuam os proveitos de uma fiscalidade justa por quem realmente merece e precisa. E são muitos os que aparentemente precisam: cônjuges, filhos, sobrinhos, afilhados, amigos, compadres, correligionários, clientes e respetivas empresas de sucesso; bem como gente bem colocada para beneficiar cônjuges, filhos, sobrinhos, afilhados, amigos, compadres, correligionários, clientes e respetivas empresas de sucesso.

Como isto é tudo gente de bem, com famílias numerosas e amigos que também se reproduzem com alguma desenvoltura, não se pode sequer dizer que os beneficiários da governamental munificência sejam uma minoria negligenciável, nem que os seus interesses não devam merecer o nosso abnegado sacrifício. Espera-se de nós – deficitários na fina astúcia de ser amigos, familiares, correligionários, clientes, ou empreendedores especializados na arte de estabelecer relações nos círculos certos, ou em outras figuras da geometria política partidária privatizada (PPP) – que compreendamos o défice das contas públicas, o problema da dívida externa, o fundo de apoio à banca e o fundo de resolução do BES, funções quadráticas, antimatéria, as profecias do Bandarra e a importância dos brócolos numa dieta saudável. Será pedir muito?


Desconfio que foi o Bandarra quem profetizou este grande império de espíritos tansos e que foram os brócolos que obrigaram milhares de portugueses mais fraquinhos, e menos espirituosos, à emigração. Eu até gosto de brócolos e também gostaria de mudar de estado, mas por este andar, só se for para o estado gasoso. O que não seria improvável se eu fosse um banco. Afinal, conhecemos vários casos de bancos que num dia eram sólidos e no dia seguinte passaram diretamente a gasosos, perdendo aquela parte importante entre os dois estados que é a liquidez, num fenómeno de verdadeira sublimação. 


As cenas do teatro parlamentar não aspiram a nada de sublime. Os atores são quase todos toscos, sejam eles figurões ou figurantes, e muitos são apenas parte do trágico coro canino que dobra a cerviz perante a sombra do dono. O que eles representam percebe-se. Quem eles deviam representar demora a perceber.

30 março, 2014

Armados e perigosos

Regresso hoje ao que mais me exaspera e deprime nas conversas diárias sobre a crise. Como tenho tentado dizer nestas páginas, de várias maneiras e com insucesso garantido (ver posts anteriores), há menos verdade nas ideias que determinam decisões políticas e económicas do que muitos, nas suas vãs filosofias, gostariam de acreditar, ou de fazer-nos acreditar. “Há mais coisas entre o céu e a terra, Horácio!” Há mais de mil maneiras de fazer bacalhau, mais do que uma maneira de esfolar o gato, e até, obviamente, várias maneiras de pagar uma dívida. É a política, estúpido!

E a política, além de ser “a arte do possível, do alcançável – a arte da segunda melhor escolha” (tradução aproximada das palavras de Bismarck) é necessariamente discurso e retórica, porque as palavras são as suas armas principais. A expressão “luta política” diz quase tudo sobre a herança belicosa dos confrontos verbais mais ou menos ritualizados a que hoje praticamente se resumem os debates parlamentares e os comícios e passeatas de fim de semana para consumo televisivo.



As palavras desta “luta” são muitas vezes armas sujas e de pontaria incerta, o que significa que têm incalculáveis danos colaterais. Quase sempre ocultam mais do que revelam e os bordões a que recorrem traem uma indigência intelectual perigosa, a prevalência inquietante de atávicos simplismos, ou ambas as coisas simultaneamente. As ideias da “culpa” da dívida e da sua “expiação”, mediante certos “sacrifícios”, por exemplo, que estão implícitas ou explícitas em muitos discursos pseudo-explicativos, são noções arquetípicas que caem bem ao puritanismo calvinista e ao masoquismo católico – ou ao casamento feliz dos dois na conjuntura atual – subjacentes até nas palavras dos mais laicos pensadores, mas ensinam coisa nenhuma sobre a natureza realmente complexa dos sarilhos em que estamos metidos. Causa não é sinónimo de culpa; dívida não é sinónimo de pecado e o “sacrifício” de pessoas inocentes no fogo do inferno do desemprego e da pobreza não devia ser solução aceitável.

Dava jeito aos pobres portugueses que os políticos deixassem de usar metáforas mortas e se libertassem dos seus amuletos verbais; que parassem de procurar, ou fingir que procuram, culpas e culpados (tirando os óbvios criminosos), e que tratassem de encontrar explicações válidas e verdadeiras soluções. O chumbo de dispersão verbal com que mutuamente se alvejam polui o ar que respiramos e deixa atrás uma nuvem negra que leva tempo a dissipar-se e não permite discernir na linha do horizonte saída “limpa” (lavada dos pecados?) para futuro algum.

Brandindo armas que usam mal, ou usam com segundas intenções, os políticos são perigosos e deveriam ser vigiados por quem os soubesse obrigar a morder a língua e a morrer do seu próprio veneno. Os vigilantes que hoje temos não servem, porque muitos jornalistas e comentadores não sabem, ou não querem, falar língua diferente e apenas ecoam as palavras que os políticos preferem que se ouçam.

O mundo muda todos os dias, mas nós estamos metidos numa camisa de forças políticas cujo discurso estagnado amortalha o país, que só não vai morrer porque é teimoso. 

14 fevereiro, 2014

Mudar de sheep

A situação do país continua a preocupar-me um bocadinho, mas aparentemente não devia. Não só é bastante evidente que estamos todos cerca de zero-vírgula-quase-nada-por-cento mais ricos, como finalmente descobrimos que o país está nas mãos de um bom pastor. Perdão, gestor. Eu não sou grande coisa em contas, por isso não entendi bem como é que esta soma se traduziu em mais uma subtração no meu boletim de vencimento, mas também pode ser a graduação dos óculos.

Ou então, tudo isto se passa num quadro surrealista. Uma destas noites, não sei se mal acordado, meio adormecido ou simplesmente em sonhos, julguei ouvir o primeiro-ministro fazer uma palestra (discurso, alocução, aula de gestão?) sobre Mirós e ovelhas. Perante um auditório de autarcas, o senhor de São Bento entoava mais uma vez o recitativo da dívida seguido da ária da troika e, não obstante ser barítono, atreveu-se, qual tenor, a um dó de peito por causa de umas telas que não podia ter. Dava ele a entender que quem não tem dinheiro, não tem bichos.

Sem alucinogénio que explicasse a estranheza do que ouvia, comecei a suspeitar de um estado de dissonância cognitiva quando o PM verberou aqueles que se julgam donos do país e ainda por cima querem uns Mirós, mas que, afinal, parece que só têm umas ovelhas velhas (ponto de exclamação!).

Cartaz do filme "Black Sheep", 2006

É possível que a minha confusão se deva ao facto de o orador ter usado termos estrangeiros (estes gestores gostam muito de falar inglês). Segundo ele, “é preciso mudar de sheep”. Precisamos todos de mudar de sheep, aparentemente. Ainda sem entender a relação entre os quadros de Miró e o gado ovino, percebi que afinal podemos ter bichos, desde que sejam umas ovelhas novas.

Para quem não saiba inglês, nem a consoante inicial de chip (a palavra que Passos Coelho tentou dizer) se pronuncia como a de sheep (a que ele efetivamente disse), nem as vogais rimam. Mas chip rima com ship, o barco em que estamos metidos neste dilúvio e do qual só vão sair ilesos os tubarões e o caruncho. 

De uma só penada, o primeiro-ministro demonstrou o seu amor pela arte e pelo património e apresentou uma justificação prática da necessidade de testes de inglês no 9º ano.


08 maio, 2013

Profetas e precipitações

A minha ignorância não tem limites. Até aqui, nada de novo. Vivo menos mal com a consciência desta limitação congénita, mas todos os dias mexo uma ou duas palhas no sentido de me ilustrar um pouco e merecer um lugar à mesa de jantar. Há, porém, uma descoberta recente que me tem provocado alguma perda de apetite e reparei até nuns olhares de soslaio da figura canhota que me observa quando faço a barba. Não é para menos. É que, pelas minhas contas, devo ser praticamente a única pessoa do mundo (pelo menos fora da Coreia do Norte) que não previu a crise financeira de 2008, nem a recessão, nem as crises da dívida e do défice que se lhe seguiram. Estou que não posso.

A verdade nua e crua – como a verdade se quer a caminho do verão e perto do mar, sempre com uma pitada de sal – é que estou já um nada estrábico, fiquei até meio surdo e ando bastante deprimido de tanto ler e ouvir aqueles que, ao contrário de mim, previram tudo. Todos me dizem que se estava mesmo a ver. Só podia ter sido assim. Economistas, paraeconomistas, pseudoeconomistas, taxistas, aqueles que começam as frases com, “eu não percebo nada de economia, mas…”, para já não falar dos licenciados por equivalência nas universidades que economizam em aulas para emitir diplomas, todos, mas todinhos, previram este castelo de cartas em que só nos caem duques. Podiam ter avisado. Ao menos teria metido as cuecas na mala e desligado o fogão.

Esta minha exclusão do pouco exclusivo grupo de profetas tem, é claro, uma explicação muito simples: é que as perspicazes previsões foram quase todas feitas após as nefastas ocorrências. Ah! Pois claro! Parece um nadinha como fazer batota, não é? Estes oráculos, espontâneos ou avençados, que foram rotundamente incompetentes para prever fosse o que fosse, não deixam que esse pormenor lhes venha agora empeçar os movimentos da língua, nem embaraçar a segurança com que explicam o que não entenderam. Quem ainda lhes dê atenção, não deixará de observar a fascinante ousadia com que agora falam do futuro, a segurança com que esgrimem gráficos, contam contos e acrescentam pontos, para provar, por um lado, que o que aconteceu não poderia deixar de ter acontecido e que, em consequência, o que tem que ser não deixará de fazer valer a sua força.

O problema que me aflige é que há diagnósticos e prognósticos para todos os gostos e as receitas não podem, forçosamente, coincidir. Assim sendo, que garantias temos nós de que esta gente sabe mesmo do que fala? Se todos sabem, mas não concordam uns com os outros, que coisas saberão realmente? Que saber é este e onde está ele guardado? Podemos confiar em alguma das coisas que diariamente ouvimos? A resposta é aterradoramente fácil: claro que não. Alguém há de acertar, mas será quase por acaso. Mas atenção, eles não fazem por mal, são apenas gente como nós.

A mente humana tem uma enorme dificuldade em lidar com a incerteza e com o acaso. Grande parte dos erros cognitivos e falácias lógicas em que todos os dias incorremos (uns mais do que outros) devem-se aos esforços subconscientes para conferir ordem e sentido a fenómenos complexos e sem verdadeira coerência, ou até a simples coincidências. Tal como os índios norte-americanos pensavam que a chuva caía, após longa seca, só porque tinham dançado na véspera (ignorando todas as vezes em que a chuva se recusara a cair), também nós temos tendência para estabelecer nexos causais entre acontecimentos apenas porque ocorreram em tempos ou lugares próximos entre si (Post hoc ergo propter hoc, será que o latim ainda impressiona alguém quando basta ir ao Google buscar a definição?); procuramos confirmação para aquilo em que acreditamos, ao mesmo tempo que ignoramos os factos que poderiam provar o erro de tais convicções; vemos monstros nas nuvens, figuras mitológicas nas constelações e a Virgem Maria numa tosta mista.


Tudo isto se deve à extraordinária aptidão do nosso cérebro para garantir a sobrevivência da espécie na selva ou na savana, mas é um pouco disfuncional numa cultura saturada de sinais, em que a racionalidade faz mais falta do que os instintos primitivos. Na selva, ou na savana, mais valia errar por excesso do que por defeito. Fugir da própria sombra porque ela, por um segundo que fosse, se parecia com o leão à procura do almoço, não teria consequências nenhumas. Já ignorar a sombra, que poderia mesmo ser o leão à procura do almoço, implicaria a probabilidade, ainda que remota, de uma viagem sem regresso pelo aparelho digestivo da fera. O problema é que o nosso cérebro é ainda praticamente igual ao dos caçadores-recoletores, e esta fascinante capacidade para reconhecer padrões, quando chamada a lidar com a complexidade da selva semiótica, resulta muitas vezes em divertidas leituras de folhas de chá. Veem-se ou inventam-se padrões onde eles não existem e constroem-se narrativas para ligar ocorrências desconexas. A nossa memória, então, é particularmente criativa e infiel a engendrar histórias com os destroços do passado, à procura de um sentido para a seta do tempo.

E é por isso que as crises parecem hoje fáceis de explicar. Retrospetivamente, claro. Porque entretanto já sabemos quais as variáveis que se conjugaram para nos tramar. O problema é que na altura não se estavam mesmo a ver, porque aquilo que era possível enxergar tinha a complexa configuração, não de um, mas de múltiplos caminhos que se bifurcam e nenhum parecia necessariamente mais provável. Podia temer-se o pior, é certo, porque sabemos que o pior pode sempre acontecer, mas é preciso ter azar.

Quanto ao futuro, e ao contrário do que os irreprimíveis profetas possam vislumbrar nos seus berlindes de cristal, é apenas mais uma nuvem, que pode ou não precipitar-se.   

02 abril, 2013

Será que preciso de mais um livro?

Os livros são um produto de primeira necessidade para os cidadãos portugueses, como facilmente se constata observando as longas filas de clientes que se formam às portas das imensas e bem recheadas livrarias deste país, de norte a sul e ainda nos arquipélagos atlânticos, incluindo o das Berlengas. Fazem lembrar as filas para comprar pão e leite no já distante ano de 1975.

Neste período de apertos, porém, até os mais ávidos dos muito vorazes leitores em que os portugueses se transformaram (nos meus sonhos da noite passada), podem hesitar na hora de decidir entre comprar ou não comprar mais um livro (ou sete).

Foi para os ajudar nesse dilemático momento que transportei para esta página um sofisticado esquema que torna o processo muito simples. Comigo resulta sempre!



 Não têm nada que agradecer.

27 março, 2013

A D. Adosinda trouxe-me notícias do défice

A D. Adosinda trouxe-me notícias do défice. Ela ainda insiste em chamar-lhe deficit, o que é talvez reminiscência de um tempo em que ninguém prestava muita atenção a esse cavalheiro.

A D. Adosinda é a minha consultora para assuntos de economia e finanças. Destas duas coisas ela sabe rigorosamente nada, condição que a meus olhos muito a recomenda e razão pela qual resolvi valer-me dos seus graciosos serviços. O facto de serem graciosos, no sentido de gratuitos, também pesou um pedacinho, vá. Desconfio, aliás, que só são graciosos porque a D. Adosinda ainda não deu conta de que, enquanto me limpa a casa por uma remuneração modesta, me faz o favor de abafar o som do noticiário, susbstituindo-o pela sua inestimável informação, que tem a vantagem de ser compreensível, ainda que às vezes pareça um nadinha fora de propósito.


Hoje, por exemplo, disse-me que estivera com o deficit em Sintra! Apanhado de chofre, limitei-me a arregalar os olhos para não entornar o café. Não sei se foi em Sintra que ele foi oficialmente avistado pela última vez, quando alguém das finanças veio à televisão dizer que tinha sido fortemente reduzido, mas a D. Adosinda garante-me que ele continua um belo rapaz, adjetivação simples que me parece traduzir o apreço da senhora por homens, digamos assim, robustos. Achei sensato não inquirir sobre os pormenores da coisa, uma vez que nesse exato momento a senhora se preparava para limpar o pó à jarra de porcelana que está em cima da cómoda.

As conversas com a D. Adosinda tornaram-se no momento mais luminoso dos meus dias, desde que todos os impostos me começaram a subir como uma violenta urticária, que me impede de sair de casa sem incorrer em despesas incomportáveis. Foi até a D. Adosinda que primeiro me chamou a atenção para o exorbitante preço do bitoque no snack-bar da esquina, que entretanto encerrou, e me sugeriu umas receitas fáceis e económicas, com muito ómega 3. Esta é outra coisa que muito aprecio: o cuidado que ela revela pelo meu nível de colesterol e tensão arterial. Desde o dia em que percebeu que a dilatação das minhas narinas e das veias da região temporal ocorria imediatamente após o aparecimento no écrã da televisão de uma astróloga ou de um economista, começou a desligar o aparelho da tomada para poder usar o aspirador. 

É possível que a motivação da minha consultora não seja puramente altruísta, uma vez que não lhe pago as horas vai já para três meses e um enfarte ocorrido nessas circunstâncias poderia incapacitar-me para a assinatura do cheque. Nisto a D. Adosinda tem a perspicácia dos credores do estado: faz o possível por me manter vivo, solvente e agradecido.     

25 março, 2013

Do ruído e seus malefícios, ou como me proponho ajudar a salvar a pátria sem fazer nenhum e sem ficar doente

O ruído, em geral, incomoda-me. A algaraviada obsessiva dos últimos anos, à força de martelar défices e dívidas como se fossem pregos no caixão de um defunto relutante, pode até tornar-me hipertenso, que é coisa que já eleva o incómodo a um ponto difícil de tolerar e exige cuidados especiais.

Este blogue – cujo primeiro texto exprimiu os meus temperados sentimentos quanto à aluvião opinativa que sedimentou a ignorância geral, e a minha em particular, sobre a arcana coisa económica e financeira que aflige o país e arredores – faz parte do programa de cuidados especiais que resolvi adotar. Faço-o a título meramente experimental e por razões essencialmente egoístas, na convicção, porém, de que o melhor contributo que posso dar para a resolução dos problemas do país é não tentar contribuir de todo.

Ao fazer exatamente coisa nenhuma, mas principalmente não exprimindo opiniões sobre o mal que aflige a economia e complica as contas do défice, também não aumento o nível de decibéis de que a nossa atmosfera está já saturada e que perturba certamente a concentração dos especialistas contratados para reanimar o país-quase-cadáver, que nunca mais decide se quer ser Lázaro, continuar lazarento, ou entregar de vez a alma ao criador (ou a bolsa ao credor, em ordinário vernáculo).


A justificação desta minha demissão de responsabilidades, que poderia até parecer cobardolas e fraquinha, tem, bem vistas as coisas, um muito sólido fundamento científico. Se não, vejamos. Na radiação eletromagnética, o ruído carateriza-se pela variação aleatória de frequências e amplitudes das ondas. Para o efeito que aqui interessa, e em português corrente, pode definir-se como qualquer som indesejável, que degrada a qualidade de um sinal e provoca perda de informação. Ora, a “informação” que sobra na vozearia deste mercado de jaquinzinhos políticos e postas de pescada economistas é popularmente traduzida assim: “estamos fritos!”.

Se aos vendedores das metafóricas espécies piscícolas a receita pouca diferença faz, mesmo quando acalorada e ignorantemente a discutem, já os peixinhos da exclamação não apreciam particularmente frigideiras, redes ou anzóis e preferiam, se não fosse muito incómodo para suas excelências, que os deixassem nadar em sossego e em silêncio.    

23 março, 2013

A crise económica e a crise dos saberes: observações ignorantes e algo escatológicas sobre uma espécie de dupla recessão


Recostado na confortável cadeira IKEA que o meu generoso salário público me permitiu adquirir antes do apocalipse fiscal, ocorreu-me fazer algumas observações, que só podem ser ociosas e inúteis (como eu gosto e a minha ciência permite), sobre o país em que acidentalmente me encontro desde o dia em que nasci. Primeiro, um parágrafo a armar em culto, que é coisa que também se pode aprender sem estudar muito. 

Há na sociologia da educação um modelo teórico, chamado Teoria dos Códigos de Legitimação (Legimation Code Theory, de Karl Maton et al), que permite demonstrar (ou prever) algo que à vista desarmada se pode apenas intuir. Se me é permitido traduzir sumariamente (certamente traindo) o que o modelo nos oferece para iluminar o estado intelectual do nosso país, diria que o número de opiniões expressas - que cresceu com a crise - e a convicção com que são afirmadas são inversamente proporcionais ao conhecimento produzido - que é pior do que muitas vezes nulo, ou acompanha pelo menos o crescimento negativo do PIB. Ou seja, quanto mais são os sabedores, mais incerto é o saber.

O grau de incerteza deveria talvez ser a primeira medida do clima económico e social. A incerteza é seguramente o inimigo primeiro da tranquilidade de espírito. E agentes económicos (que somos todos nós) intranquilos (quase todos nós também), são garantia de sobressalto, de depressão e, o que é para mim mais encanitante, de um número de opiniões superior ao número de orifícios anais, mas que parece desempenhar função semelhante: a de aliviar os seus proprietários de algum lastro excrementício, para o qual o sistema não encontra proveito.

Se alguém só tem opiniões, não quero saber. Dito de outro modo: quero saber, não me chegam opiniões. Não me interessa se o opinador foi ministro das finanças, se é banqueiro ou economista, se é diretor de jornal ou apenas opinador de jornal (o elo mais baixo da cadeia alimentar, por vezes também conhecido por Camilo Lourenço, o que me parece francamente injusto, uma vez que este aprendeu pelo menos a fazer contas para dar uma aparência científica a algumas ideias feitas). Se não nos tiram desta crise, ao menos que se retirem deste filme, no qual são apenas canastrões a debitar deixas mal aprendidas.

Devo dizer, no entanto, que só tenho um problema com estes exercícios quando eles são oferecidos publicamente. Ou seja, na comunicação social, nas redes sociais, na rua, no café, no táxi, no elevador... portanto, em toda a parte onde me seja difícil evitá-los sem tapar os olhos e os ouvidos. Se há coisa que deveria ser privatizada em Portugal são as opiniões. Toda a gente deveria opinar na privada.

Instantes

1   Diziam, pela calada agonia dos instantes que eram mudos.   Julgavam-nos pela constância infinita das lamentações pelo fôlego breve do pá...