Deveria fazer-se crónica miúda e ilustrada das maneiras como as pessoas se agregaram em resposta às gregas ocorrências. Não estou a pensar apenas nas respostas políticas e institucionais, mais ou menos picadas pelo ferrão da helena melga que a meio da noite do austero inverno veio perturbar o sono burocrático dos ocupantes das cómodas cadeiras do consenso. Estou a pensar também nas reações do chamado “cidadão comum”, o verdadeiro habitante do parvus mundus (do latino “pequeno”, não do corrente “parvo”). E já nem falo, embora falando já, dos ermos crânios da opinião, os que tudo precisam de saber dizer por encomenda e com hora marcada, ao menos para preservação da face e do estipêndio.
Destes últimos, dificilmente esquecerei, até ao
derradeiro dos meus monótonos dias, o painel de um orgulhoso canal de notícias que
acompanhou as imagens da noite eleitoral emitidas de Atenas: sem que nenhum dos três “especialistas” percebesse
palavra de grego, sem tradução consecutiva ou simultânea e sem legendas
possíveis, nenhum deles pediu escusa de funções, nem se sentiu inibido de
comentar fosse o que fosse. Como? Pedindo desde já desculpa aos animais da única expressão que me ocorre, enchendo de palha os jumentos que ficaram a ouvi-los.
Em
vários canais, na mesma noite, jornalistas e enviados “especiais”
lamentarem-se, quase timidamente, do facto de os chefes dos partidos gregos não
falarem ao menos inglês nos seus discursos de vitória ou de derrota. Uma desconsideração,
seguramente! Não sonhei, era ainda cedo e não tinha bebido ao jantar. Viram-se
os ditos repórteres proverbialmente gregos e ficaram os líderes dos partidos portugueses
cientes de que nas próximas legislativas vão ter que pensar em satisfazer a
curiosidade das hordas de jornalistas estrangeiros, já previstos por vários analistas políticos e agências
de viagens, perante a iminência de um
resultado eleitoral verdadeiramente estranho em Portugal: a vitória de um dos
dois partidos do costume! Porque “Portugal não é a Grécia!”, repete diariamente
o trágico coro.
Fomos, assim, incomparavelmente informados, à maneira
do repórter do romance Scoop, de
Evelyn Waugh, que desembarcou do comboio no país errado, mas nem por isso
deixou de relatar a guerra nas páginas do jornal que o enviara ao país onde ela
realmente ocorria. Os nossos comentadores e repórteres desembarcaram as ideias
feitas que tinham mais à mão e entregaram às redações a encomenda. Contribuíram assim para que os seus leitores, espetadores e ouvintes se dividissem de
acordo com as mesmas ideias feitas, com rótulos vazios, mas que bastam ao
preconceito e dispensam estudo: radical, marxista e... sexy (conceito político
que não descobri na minha estante, mas admito apropriado e relevante para
avaliação objetiva das propostas gregas).
A crónica que não se fará das diferentes atitudes relativamente
ao caso helénico encontraria certamente as pessoas divididas em dois grandes
grupos – como em quase tudo neste planeta, que antes era analogicamente
maniqueísta e agora é digitalmente binário: as que gostaram dos resultados e esperam
algo de bom e as que acham que o resultado vai dar em desgosto e temem algo de mau.
Como em quase tudo o que tão simplesmente se divide, os dois grupos estarão
certamente errados.
Mas que tantos tenham, simplesmente, prestado um pouco de
atenção, já me diz que outras luzes se podem estar a acender, ou que a fadiga perante a ladainha com que se encantam os tolos pode, finalmente, ser
mais do que uma vela acesa à espera do milagre. Ou, então, é tudo imaginação
minha.