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03 outubro, 2015

O Aleixo


O meu amigo Aleixo não tem queixo. Não ter queixo é uma daquelas infelicidades anatómicas em que se repara imediatamente e que muito cedo se confundem com quem as possui. São sinédoques vivas: aquela parte saliente que, no caso do Aleixo, se salienta pela ausência de saliência, acaba por representar o Aleixo todo. O não-queixo do Aleixo é o Aleixo inteiro.

É por isso que a alcunha do Aleixo é Desleixo. O coitado carrega aquele peso a menos desde que entrou na escola e ainda por cima, onde quer que a sua alcunha chegue, precede-o a fama injusta de incúria e negligência, porque nem todos percebem a criatividade infantil do trocadilho. O Aleixo acha que a dificuldade que tem de arranjar emprego se deve ao queixo ou à alcunha. “Se calhar é verdade que uma desgraça nunca vem só”, diz ele muitas vezes, no seu amor desmesurado por máximas parvas e lugares comuns que encontra no facebook. Não adianta consolá-lo com a hipótese de o desemprego de longa duração ser atribuível à sua incompetência, ou até, quem sabe, à política de austeridade, executada por várias desgraças com bastante queixo, mas pouca vergonha.

O Aleixo, que não tem queixo, mas tem que mastigar todos os dias uma ou duas refeições, já fez tantos estágios e cursos de formação, para não perder o subsídio de desemprego, que tive que lhe emprestar a garagem para ele estacionar os diplomas. Vão dar uma linda fogueira no magusto de S. Martinho. A primeira vez que vimos o Aleixo mastigar castanhas assadas percebemos a falta que faz um maxilar inferior de dimensões aceitáveis, pelo menos quando se quer comer em locais públicos ou falar de coisas sérias.

Daí que todos o tenhamos desencorajado de se meter na política, quando um dia veio dizer-nos que se ia filiar numa certa juventude partidária aprovada pelas autoridades eclesiásticas da terra. Já lá vão uns anos valentes, mas nunca os meus dons de retórica foram tão exercitados. É claro que não mencionei uma única vez o queixo retraído como possível fator de insucesso, mas desatei uma tal saraivada de impropérios sobre as perversões da vida política e as más influências dos betos que vão a missas e comícios no mesmo dia, que até hoje o Aleixo não deixa de me culpar pelo facto de não ter chegado a secretário de estado ou diretor geral de qualquer coisa num destes governos de agora.

Olhando para algumas das caras dos políticos menores que estão fechados nos gabinetes a despachar nomeações de correligionários nas últimas semanas antes das eleições (Ah! Se as pessoas lessem o Diário da República!), quase fico com pena do Aleixo, que pode ter pouco queixo, mas não tem menos talento do que alguns narizes e testas, barrigas e traseiros que se salientam por não se salientarem em coisa nenhuma, mas usaram com astúcia fina a ficha de adesão aos partidos certos.

O meu amigo Aleixo, que não tem queixo, queria ir votar nas eleições legislativas e achou boa ideia revelar a sua opção de voto à mesa da sueca. Como não tem queixo, não levou um paf no dito, que o Rodrigues da Chica lhe atirou por cima das garrafas de cerveja, mas vai ficar fechado na cave até segunda-feira e só volta a morder alguma coisa quando nos explicar o que é que o governo fez pela porção inferior e mediana da sua mandíbula.

27 março, 2013

A D. Adosinda trouxe-me notícias do défice

A D. Adosinda trouxe-me notícias do défice. Ela ainda insiste em chamar-lhe deficit, o que é talvez reminiscência de um tempo em que ninguém prestava muita atenção a esse cavalheiro.

A D. Adosinda é a minha consultora para assuntos de economia e finanças. Destas duas coisas ela sabe rigorosamente nada, condição que a meus olhos muito a recomenda e razão pela qual resolvi valer-me dos seus graciosos serviços. O facto de serem graciosos, no sentido de gratuitos, também pesou um pedacinho, vá. Desconfio, aliás, que só são graciosos porque a D. Adosinda ainda não deu conta de que, enquanto me limpa a casa por uma remuneração modesta, me faz o favor de abafar o som do noticiário, susbstituindo-o pela sua inestimável informação, que tem a vantagem de ser compreensível, ainda que às vezes pareça um nadinha fora de propósito.


Hoje, por exemplo, disse-me que estivera com o deficit em Sintra! Apanhado de chofre, limitei-me a arregalar os olhos para não entornar o café. Não sei se foi em Sintra que ele foi oficialmente avistado pela última vez, quando alguém das finanças veio à televisão dizer que tinha sido fortemente reduzido, mas a D. Adosinda garante-me que ele continua um belo rapaz, adjetivação simples que me parece traduzir o apreço da senhora por homens, digamos assim, robustos. Achei sensato não inquirir sobre os pormenores da coisa, uma vez que nesse exato momento a senhora se preparava para limpar o pó à jarra de porcelana que está em cima da cómoda.

As conversas com a D. Adosinda tornaram-se no momento mais luminoso dos meus dias, desde que todos os impostos me começaram a subir como uma violenta urticária, que me impede de sair de casa sem incorrer em despesas incomportáveis. Foi até a D. Adosinda que primeiro me chamou a atenção para o exorbitante preço do bitoque no snack-bar da esquina, que entretanto encerrou, e me sugeriu umas receitas fáceis e económicas, com muito ómega 3. Esta é outra coisa que muito aprecio: o cuidado que ela revela pelo meu nível de colesterol e tensão arterial. Desde o dia em que percebeu que a dilatação das minhas narinas e das veias da região temporal ocorria imediatamente após o aparecimento no écrã da televisão de uma astróloga ou de um economista, começou a desligar o aparelho da tomada para poder usar o aspirador. 

É possível que a motivação da minha consultora não seja puramente altruísta, uma vez que não lhe pago as horas vai já para três meses e um enfarte ocorrido nessas circunstâncias poderia incapacitar-me para a assinatura do cheque. Nisto a D. Adosinda tem a perspicácia dos credores do estado: faz o possível por me manter vivo, solvente e agradecido.     

Instantes

1   Diziam, pela calada agonia dos instantes que eram mudos.   Julgavam-nos pela constância infinita das lamentações pelo fôlego breve do pá...