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01 janeiro, 2015

O ano da fava


Os balanços do ano finado e as previsões para o ano que alvorece estão para esta infindável quadra, forçosa e esforçadamente festiva para muitos, como o bolo-rei ele mesmo: ninguém aprecia especialmente, mas faz-se sempre. O ser humano afeiçoa-se com facilidade a celebrações e preenche os calendários com dias “especiais”. É claro que a sua profusão os torna menos especiais, mas qualquer desculpa serve para comer até para lá da saciedade, beber até ao estupor dos sentidos e, claro, para retrospetivas e prospetivas perdas de tempo.

Entre balanços, previsões e todas as marcas das celebrações, prefiro contemplar a fava. A fava vem metaforicamente a propósito porque é o legume que mais provavelmente sairá à maioria dos portugueses no inauspicioso ano que me amanheceu hoje, enfriado e embaciado, nas vidraças da janela. Segundo me é possível vislumbrar entre os espumosos vapores da festança de ontem e os gases tóxicos de uma campanha eleitoral que começou com um ano de antecedência, o ano de 2015, por muito que me custe rebentar o balãozinho ainda meio insuflado dos meus ressacados leitores, não vai ser nada de especialmente divertido.

Sem cartas astrais, baralhos de tarô, folhas de chá ou mendes e marcelos, não prevejo nada realmente bom (realmente não prevejo nada, mas é maneira de falar). E se o que aí vem apenas bom fosse, já ótimo seria. Pela riqueza do discurso político que se ouve, que pouco deve à imaginação e à dívida tudo deve, vai ser um ano em que, mais uma vez, se falará do que menos abunda como se a sua abundância fosse tudo o que falta.

Se ao menos a árvore de Natal fosse a das patacas, pensamos nós, logo se veria.  


21 julho, 2013

A mecânica dos fluidos, ou como usar janelas e evitar as portas

Anda tanta gente ocupada com as pequenas piruetas políticas que abrem os noticiários que, desconfio eu, quase ninguém parece reparar no gorila (prometo que um dia explico esta e outras ilusões cognitivas). No momento em que escrevo estas palavras temos em funções um governo mais ou menos interino e um governo remodelado que não passou do modelo. Houve afobadas correrias pelos corredores do poder para fingir que se costurava à pressa uma roupinha de levar a Belém e agradar ao pensionista residente, mas no fim os impenitentes foram nus. Houve, sobretudo, a aparente impotência generalizada para escapar ao círculo vicioso da intriga palaciana, do cálculo eleitoralista, do dichote parlamentar e da desonestidade intelectual. Este corrupio de cromos e caretos é irritante e até um pouco embaraçoso, e como não resolve nada, resta-nos esperar que também não comprometa nada de essencial. Pode ser que, quando a febre baixar e os olhares se desviarem para outras manchetes, a prazo médio ou curto, mais pobres ou menos folgados, os portugueses esqueçam os crimes agora cometidos em seu nome (em estado de emergência nacional ou de insanidade temporária, conforme as doutrinas) e voltem a ocupar as horas dos noticiários tal como ocupam as casas de banho públicas: por pouco tempo e com dois dedos no nariz.

Mas se nada disto vai durar mais do que a espuma do champanhe, haverá alguém que nos explique o que realmente importa saber? Um título de jornal anunciava há tempos o convite endereçado pelo presidente da república a várias dezenas de economistas (como não quero insultar ninguém acima das minhas possibilidades, limito-me a tratar excelências e santidades a golpes de afiada minúscula). O supremo magistrado da nação pretenderia auscultar os ditos sobre os modos de transformar o presente do país num futuro qualquer (parece que a ambição está neste momento pouco acima do nível de sobrevivência, quer do país, quer dos seus cidadãos). Logicamente, chamam-se os economistas. Não um economista ou dois, observe-se. Eram logo às dúzias de padeiro. E se não for para ir a Belém, é para ir aos estúdios de televisão e a todos os jornais. Diariamente, incessantemente, sem fins de semana nem feriados que nos valham, em regime de apneia opinativa, chamam-se sempre economistas. Mas não se dispensam também os politólogos, para já não falar de outros observadores profissionais polivalentes e políticos sentados no banco de suplentes, que ora são promovidos a analistas políticos, ora são apenas designados pelo termo genérico de “comentadores”. O que eles parecem todos ser é “especialistas” da matéria que aflige Portugal e arredores, única razão que vislumbro para que sejam consultados tão ávida e assiduamente. Peço a vossa licença, não obstante, para duvidar… metodicamente.

Façamos uma pequena comparação. Quando temos uma chatice com o carro, mais vale ir a uma garagem e depositar a nossa confiança nos conhecimentos técnicos do mecânico. Temos boas razões para acreditar que ele percebe a natureza do problema e pode facilmente reparar a avaria ou aconselhar-nos a adquirir um automóvel que se pareça menos com um achado arqueológico. O mecânico automóvel é, em geral, um especialista. Ou seja, conhece o sistema de peças e os modos como estas devem ligar-se entre si para que o veículo possa circular em boas condições. Dado o estado das peças individuais e do conjunto do sistema, o mecânico competente pode prever com relativa facilidade o que é passível de ocorrer uns quilómetros mais adiante e até fazer uma estimativa credível sobre a vida útil da viatura, dado um tipo de uso médio e salvo qualquer acidente ou imprevisto de outra natureza. A estimativa baseia-se no conhecimento da mecânica do veículo e da interação deste com os contextos rodoviários típicos para os quais foi concebido, bem como numa quantidade representativa de comportamentos de exemplares semelhantes do mesmo modelo e marca. Dadas essas condições, a previsão do especialista é mesmo bastante fiável.   

À semelhança do carro do parágrafo anterior, o calhambeque a que chamamos Portugal (não sou eu quem está sempre a dizer que o país tem cerca de nove séculos), também está com certos e determinados problemas de circulação. De circulação de dinheiro, neste caso. Os bancos não emprestam, o estado confisca, as pessoas não gastam, os investidores não investem e os desempregados circulam lentamente nas filas dos centros de emprego para esmolar a caridade contrafeita do piedoso cristão da segurança social (ainda por cima, deve ser terrível para a circulação sanguínea, sobretudo para quem sofra de varizes). Logicamente, chama-se quem sabe da matéria. E qual é a diferença entre um mecânico e um economista que faz “projeções”, ou um politólogo que “antecipa cenários”? O primeiro sabe do que fala, os segundos ocupam tempo de antena e gastam oxigénio.

Nassim Taleb chama à economia, entre outras ciências “moles”, qualquer coisa como uma especialidade sem especialistas (with no experts). Por uma razão simples: ao contrário das ciências em que as coisas são passíveis de quantificação mais ou menos exata e todas as variáveis são conhecidas, a economia não permite fazer previsões a médio e longo prazo com nenhum grau de segurança. Repito e sublinho: o grau de segurança é ZERO. Em matéria de conhecimento do sistema que estuda e do rigor das previsões que esse conhecimento permite, a economia está uns passos atrás da meteorologia, conforme o próprio ex-ministro das finanças, Vítor Gaspar, implicitamente reconheceu, depois de uma referência infeliz à influência dos rigores do inverno sobre o crescimento económico no primeiro trimestre de 2013. E, no entanto, chamam-se os economistas e outros “especialistas”. Deve ser porque a maneira de um economista falar sobre aquilo que não sabe é melhor do que a das outras pessoas. Não, não é por causa da linguagem técnica. Verdade se diga que o jargão da economia é o perfeito exemplo daquilo a que se chama “falácia nominativa” (dar nomes às coisas pode criar a ilusão de que se compreendem). Mas não é apenas por isso, é porque eles falam do que não sabem, mas muitos deles nem sequer sabem que não sabem. Parece que foi um economista famoso e já defunto, John Kenneth Galbraith, quem assim se referiu aos prognosticadores em geral, pelo que suponho que ele seria um dos que sabiam que não sabiam e não estava muito preocupado em fazer amigos.

A realidade económica e política é demasiado fluida e complexa (a globalização tornou-a ainda incrivelmente mais complexa). Mesmo que fosse possível um conhecimento completo dos fatores que estiveram na origem de crises e ciclos negativos passados, bem como daqueles que contribuíram para a sua resolução, isso não seria suficiente para afirmar com qualquer grau de segurança que adotar determinadas políticas bastaria para resolver situações presentes e garantir resultados futuros. Como a nossa situação atual demonstra, os modelos existentes são, no mínimo, um pedacinho imperfeitos, para não dizer que são monstros acéfalos.

Mas há pessoas que supostamente sabem destes assuntos. E sabem umas coisas, naturalmente. O que não podem é saber aquilo que a ciência deles ainda não descobriu. Pensem, por analogia imperfeita, no cancro. Já se sabe bastante sobre uns quantos tipos de cancro e os tratamentos são hoje mais eficazes do que no passado, mas isso não significa que se tenha descoberto a cura do cancro. Um especialista em oncologia que seja responsável prognostica em função dos limites do que efetivamente sabe. Mas nem todos os especialistas são assim e, aparentemente, os das disciplinas em que a insegurança nos prognósticos é maior são os mais atrevidos. A chatice é que ser reconhecido como especialista cria uma maior necessidade de autoilusão quanto à própria competência, que é desse modo elevada acima da competência efetiva, e suscita um reflexo incontrolável para tentar salvar a face, fugindo em frente e ignorando, se necessário for, as evidências (encontra-se uma boa explicação disto mesmo na obra de Daniel Kahneman, um Nobel da Economia que é psicólogo). Esta compulsão para dar respostas quando não é possível saber a resposta certa tem como consequência que os “especialistas” errem tanto ou mais do que a massa bruta dos cidadãos medianamente informados.



A inutilidade prática de dar atenção a supostos especialistas de disciplinas em que o conhecimento do passado e do presente é insuficiente para prever o futuro ficou provada num impressionante estudo levado a cabo por Philip Tetlock, que ao longo de 20 anos pôs à prova as previsões de analistas políticos e economistas. Tetlock entrevistou 284 pessoas profissionalmente remuneradas como consultores ou comentadores em questões de política e economia e pediu-lhes que avaliassem a probabilidade de certas ocorrências num futuro relativamente próximo, quer sobre as áreas do planeta nas quais eram especialistas, quer sobre regiões que conheceriam menos bem. Estes especialistas apenas tinham que dizer se achavam que determinada situação permaneceria inalterada, ou se haveria mais ou menos de uma coisa qualquer, fosse crescimento económico, fosse liberdade política. Perguntou também aos entrevistados como é que chegavam às suas conclusões, como é que avaliavam os dados que não confirmavam as suas opiniões e como é que reagiam quando se provava que estavam enganados. Ao todo, reuniu mais de 80 mil previsões. Os resultados foram aterradores. Os “especialistas” teriam acertado mais vezes se tivessem atribuído o mesmo grau de probabilidade a qualquer dos três cenários possíveis. Confirmou-se também que os maiores especialistas são por vezes os que mais erram, por excesso de confiança nos seus conhecimentos e capacidades. E o mais engraçado de tudo é mesmo a dificuldade de admitirem os erros e a criatividade das justificações encontradas.    

Como se viu recentemente com o caso da demissão de um ministro, que pensou sair pela porta grande, foi acusado de escolher a porta pequena e afinal se encontrou numa porta giratória, nem os mais argutos comentadores foram capazes de prever fecho nem desfecho. Esta não é, certamente, uma ciência certa! Já se o método escolhido para retirar o ministro das Necessidades, em vez da demissão, tivesse sido a defenestração, bastaria um conhecimento elementar de física para estimar que, a uma velocidade uniformemente acelerada, o encontro do grave estadista com o pavimento teria tido consequências realmente irrevogáveis.  



08 maio, 2013

Profetas e precipitações

A minha ignorância não tem limites. Até aqui, nada de novo. Vivo menos mal com a consciência desta limitação congénita, mas todos os dias mexo uma ou duas palhas no sentido de me ilustrar um pouco e merecer um lugar à mesa de jantar. Há, porém, uma descoberta recente que me tem provocado alguma perda de apetite e reparei até nuns olhares de soslaio da figura canhota que me observa quando faço a barba. Não é para menos. É que, pelas minhas contas, devo ser praticamente a única pessoa do mundo (pelo menos fora da Coreia do Norte) que não previu a crise financeira de 2008, nem a recessão, nem as crises da dívida e do défice que se lhe seguiram. Estou que não posso.

A verdade nua e crua – como a verdade se quer a caminho do verão e perto do mar, sempre com uma pitada de sal – é que estou já um nada estrábico, fiquei até meio surdo e ando bastante deprimido de tanto ler e ouvir aqueles que, ao contrário de mim, previram tudo. Todos me dizem que se estava mesmo a ver. Só podia ter sido assim. Economistas, paraeconomistas, pseudoeconomistas, taxistas, aqueles que começam as frases com, “eu não percebo nada de economia, mas…”, para já não falar dos licenciados por equivalência nas universidades que economizam em aulas para emitir diplomas, todos, mas todinhos, previram este castelo de cartas em que só nos caem duques. Podiam ter avisado. Ao menos teria metido as cuecas na mala e desligado o fogão.

Esta minha exclusão do pouco exclusivo grupo de profetas tem, é claro, uma explicação muito simples: é que as perspicazes previsões foram quase todas feitas após as nefastas ocorrências. Ah! Pois claro! Parece um nadinha como fazer batota, não é? Estes oráculos, espontâneos ou avençados, que foram rotundamente incompetentes para prever fosse o que fosse, não deixam que esse pormenor lhes venha agora empeçar os movimentos da língua, nem embaraçar a segurança com que explicam o que não entenderam. Quem ainda lhes dê atenção, não deixará de observar a fascinante ousadia com que agora falam do futuro, a segurança com que esgrimem gráficos, contam contos e acrescentam pontos, para provar, por um lado, que o que aconteceu não poderia deixar de ter acontecido e que, em consequência, o que tem que ser não deixará de fazer valer a sua força.

O problema que me aflige é que há diagnósticos e prognósticos para todos os gostos e as receitas não podem, forçosamente, coincidir. Assim sendo, que garantias temos nós de que esta gente sabe mesmo do que fala? Se todos sabem, mas não concordam uns com os outros, que coisas saberão realmente? Que saber é este e onde está ele guardado? Podemos confiar em alguma das coisas que diariamente ouvimos? A resposta é aterradoramente fácil: claro que não. Alguém há de acertar, mas será quase por acaso. Mas atenção, eles não fazem por mal, são apenas gente como nós.

A mente humana tem uma enorme dificuldade em lidar com a incerteza e com o acaso. Grande parte dos erros cognitivos e falácias lógicas em que todos os dias incorremos (uns mais do que outros) devem-se aos esforços subconscientes para conferir ordem e sentido a fenómenos complexos e sem verdadeira coerência, ou até a simples coincidências. Tal como os índios norte-americanos pensavam que a chuva caía, após longa seca, só porque tinham dançado na véspera (ignorando todas as vezes em que a chuva se recusara a cair), também nós temos tendência para estabelecer nexos causais entre acontecimentos apenas porque ocorreram em tempos ou lugares próximos entre si (Post hoc ergo propter hoc, será que o latim ainda impressiona alguém quando basta ir ao Google buscar a definição?); procuramos confirmação para aquilo em que acreditamos, ao mesmo tempo que ignoramos os factos que poderiam provar o erro de tais convicções; vemos monstros nas nuvens, figuras mitológicas nas constelações e a Virgem Maria numa tosta mista.


Tudo isto se deve à extraordinária aptidão do nosso cérebro para garantir a sobrevivência da espécie na selva ou na savana, mas é um pouco disfuncional numa cultura saturada de sinais, em que a racionalidade faz mais falta do que os instintos primitivos. Na selva, ou na savana, mais valia errar por excesso do que por defeito. Fugir da própria sombra porque ela, por um segundo que fosse, se parecia com o leão à procura do almoço, não teria consequências nenhumas. Já ignorar a sombra, que poderia mesmo ser o leão à procura do almoço, implicaria a probabilidade, ainda que remota, de uma viagem sem regresso pelo aparelho digestivo da fera. O problema é que o nosso cérebro é ainda praticamente igual ao dos caçadores-recoletores, e esta fascinante capacidade para reconhecer padrões, quando chamada a lidar com a complexidade da selva semiótica, resulta muitas vezes em divertidas leituras de folhas de chá. Veem-se ou inventam-se padrões onde eles não existem e constroem-se narrativas para ligar ocorrências desconexas. A nossa memória, então, é particularmente criativa e infiel a engendrar histórias com os destroços do passado, à procura de um sentido para a seta do tempo.

E é por isso que as crises parecem hoje fáceis de explicar. Retrospetivamente, claro. Porque entretanto já sabemos quais as variáveis que se conjugaram para nos tramar. O problema é que na altura não se estavam mesmo a ver, porque aquilo que era possível enxergar tinha a complexa configuração, não de um, mas de múltiplos caminhos que se bifurcam e nenhum parecia necessariamente mais provável. Podia temer-se o pior, é certo, porque sabemos que o pior pode sempre acontecer, mas é preciso ter azar.

Quanto ao futuro, e ao contrário do que os irreprimíveis profetas possam vislumbrar nos seus berlindes de cristal, é apenas mais uma nuvem, que pode ou não precipitar-se.   

Instantes

1   Diziam, pela calada agonia dos instantes que eram mudos.   Julgavam-nos pela constância infinita das lamentações pelo fôlego breve do pá...