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10 maio, 2015

Angústias de um anglófilo anónimo (com vocabulário de inglês alimentar)


O autor semificcional destas páginas é aquilo a que se costuma chamar anglófilo. Ao princípio, não dói. A doença poderá ter sido incubada em resultado de uma resposta irrefletida para calar interrogatório de criança. Disseram-lhe que a cegonha o trouxera de Londres, em vez de Paris, de onde todas as crianças deveriam, educadamente, proceder. É uma quase mitologia particular, que poderia explicar duas coisas: a quase traição à pátria língua dos exclusivistas hábitos de leitura que manteve durante muitos anos e ainda a dificuldade de cantar em coro sem desafinar. Excentricidades.

A condição de anglófilo – que aqui se refere às culturas de língua inglesa e não apenas à Inglaterra – tem várias fases empiricamente observáveis. Na primeira, olha-se muito para cima. Tudo o que fala inglês é alto e reluz. Na segunda fase, há algum conforto e sorrisos parvos de reconhecimento. É como andar em casa sem chocar muito com a mobília e o pescoço já não dói tanto. Depois disso, o inglês já não é bem uma língua estrangeira. Às vezes é até como se um espelho nos devolvesse a cara mal amanhecida de um susto qualquer. Abrem-se por fim completamente os olhos e não é o sol que brilha de todos os traseiros. É também pelo olfato que se sobe à realidade. (Sobe, sim, porque nunca me pareceu que encontrar a verdade pudesse equivaler a uma queda, mesmo que a descoberta implique maçãs indigestas e traumatismos vários).

Hoje, esse quase-eu que a contragosto subscreve o que agora escrevo é uma espécie de anglófilo anónimo: não tem cura, nem vai às reuniões, mas admite que tem um problema. Problema que imperfeitamente se resume no entendimento de que Portugal, que era, segundo Eça, um país traduzido do francês em calão, é hoje um país traduzido do inglês por calões. Se não fossem preguiçosos tradutores de ideias pré-fabricadas, políticos, economistas e plumitivos sortidos teriam mais dúvidas e angústias. Bastava perguntarem ao cozinheiro da história que se segue.

FOOD STAMPS (vocabulário de inglês alimentar - 1)

Bertrand Olotara é cozinheiro no Senado dos Estados Unidos, a câmara alta do poder legislativo americano. Todos os dias alimenta os homens do poder, mas ele próprio não ganha o suficiente para se alimentar, nem para alimentar os cinco filhos, que educa sozinho. De nada lhe servem os dois cursos superiores (Direito e Gestão). Nem com um segundo emprego (numa mercearia) e trabalhando 70 horas, sete dias por semana, as verdinhas lhe chegam para verduras ou farturas. Precisa ainda de recorrer aos chamados food stamps, cupões para adquirir alimentos que são concedidos aos cidadãos americanos empregados, ou que se inscrevam em estágios e cursos de formação, e que não ganhem o suficiente para viver. O ministro Mota Soares estudou a lição.


Na maior economia do mundo, quem trabalha, mesmo duas vezes a tempo inteiro, pode passar grandes privações e não ter sequer dinheiro para pagar a renda de casa. Vivem muitos em parques de caravanas; outros partilham quartos; alguns ainda dormem no carro, se o tiverem, ou até na rua, que é mais ventilada. O modelo primeiro do que se chama “mercado livre” e do individualismo empreendedor; o modelo mesmo da sociedade capitalista e meritocrática a que muitos dos nossos tradutores de ideias estúpidas em “econinglês” aspiram, subsidia assim, através dos food stamps, as empresas que pagam salários miseráveis. Como a Walmart, que é propriedade de uma das famílias mais ricas do mundo. E rico, aqui, quer dizer seriamente, fabulosamente, obscenamente e, já agora, imoralmente rico. A não ser que a alguém pareça moralmente aceitável a exploração do trabalho escravo. E que outra coisa se pode chamar a esta maneira de tratar quem trabalha? Discutir se isto é mais ou menos neo-liberal é apenas uma questão de pedântico mau gosto.

Quem paga o salário de Bertrand Olotara é uma empresa privada, naturalmente. Porque estes estados capitalistas de ideias mais avançadas não podem contratar funcionários (pecaminosa despesa), mas contratam empresas (que são despesas boas) e deixam-nas fazer o que entendem, porque o mercado é “livre”. A desonestidade intelectual e a injustiça social vão assim de mãos dadas, numa simetria que resulta esteticamente impecável: as empresas choram a caminho do banco e os empregados correm ao banco alimentar.

FOOD BANKS (vocabulário de inglês alimentar - 2)

Os cidadãos do Reino Unido acabam de votar maioritariamente no mesmo partido que os governou durante os últimos cinco anos, manifestando a sua satisfação com a política a que se chama de “austeridade”, que sábia e corajosamente consiste em reduzir todas as despesas com coisas inúteis. Ou seja, essencialmente com os pobres, que não morrem, nem saem de baixo.

Há cinco ou seis anos, os food banks (bancos alimentares) eram uma coisa raríssima no Reino Unido. Hoje há mais de mil. Servem todos aqueles que não têm dinheiro para comer, empregados e desempregados. Muitos “empregados” recebem apenas as horas que trabalham por semana se os empregadores precisarem deles, sejam 50, sejam zero (é por isso que se chamam zero-hour contracts), sem nunca saberem o que os espera ao virar da esquina. Esta “flexibilidade laboral” resulta em enormes benefícios para a economia, segundo afiançam, também por cá, os mais conscienciosos sábios. E garante também que há menos trabalhadores obesos, digo eu.

Os desempregados, por sua vez, não têm outro remédio se não ir pedir comida, porque perdem os subsídios se não cumprirem as regrazinhas da burocracia dos centros de emprego, como apresentações regulares (tipo medida leve de coação para arguidos), mesmo que isso implique gastar o dinheiro que não têm em transportes que ninguém lhes paga. O governo português também não faltou a essa aula.  


Quase 5 milhões de pessoas no Reino Unido não têm o suficiente para comer. Mas a culpa é dos pobres, como muito bem têm observado os políticos do partido agora reeleito. Se não, vejamos. Michael Gove, líder parlamentar dos Conservadores, disse que as pessoas que usam os bancos alimentares “não sabem administrar bem as suas finanças”. A baronesa Anne Jenkin, que tem assento na câmara dos lordes e dedicou alguma atenção ao assunto, concluiu (nobremente) que “os pobres não sabem cozinhar”. A ex-deputada conservadora Edwina Currie afirmou que as pessoas que usam os bancos alimentares desperdiçam dinheiro em tatuagens e em comida para cães. Coisas destas não se ouvem por cá, pois não?

Portugal acha que é um bom aluno de inglês, mas toca muito de ouvido e é meio mouco. Juntamente com as duas grandes economias anglófonas dos exemplos acima, completamos o trio de países da OCDE onde as desigualdades entre ricos e pobres são maiores. Já estávamos nesta posição antes desta crise, que serve de pretexto a tudo, mas não justifica grande coisa, e estamos agora a fazer as políticas que garantiram aos outros dois países tão invejáveis posições na tabela classificativa da indignidade. Well done! Parabéns! 


08 maio, 2014

Enfiar a cachaça na veia: brevíssimo tratado sobre os perigos da erosão semântica

Já todos fizemos aquela experiência, um pouco infantil, que consiste em repetir a mesma palavra muitas vezes, até termos a sensação de que ela não faz sentido algum, de que não passa de um conjunto de sons arbitrariamente reunidos. Pois bem, se não é essa a sensação que os portugueses têm quando ouvem palavras e expressões como “ajustamento”, “despesa do estado”, “défice orçamental”, “crescimento”, “recessão”, “espiral recessiva”, “austeridade”, “regresso aos mercados”, “saída limpa”, “estado social”… Se não é essa a sensação que têm até quando ouvem dizer “esquerda” e “direita”, então é porque andam muito distraídos, ou podem estar a marchar, como regimento de soldados cegos, para a trincheira onde os conduza a voz da autoridade à qual escolheram obedecer. Pode até parecer que ali ao fundo há um jardim, mas é mais provável que exale um fedor de fim.


A repetição mecânica e preguiçosa de conceitos sujeita as palavras que os sustentam a um processo de erosão semântica que é tanto mais acelerado quanto maior é o número de pessoas que acefalamente as usam. Ao passarem de boca em boca, gastas pela saliva de políticos de aviário, porta-vozes oficiosos, comentadores incontinentes e cidadãos incautos, as palavras comportam-se como calhaus cujas arestas vão perdendo definição. A contundência da primeira pedrada, aquele momento original em que o vocábulo, à força de querer dizer qualquer coisa, poderia abrir uma janela onde ela antes não existia (ou, quem sabe, até uma cabeça), esse poder de operar na renitente espessura da realidade uma incisão que deixe penetrar alguma luz sobre a noite opaca da ignorância, dissipa-se progressivamente no rotundo de gordas frases e na moleza de arremessos verbais que tanto caem no banco, como na serradura, carpinteirando apitos para caçar patos. Até que, por fim, a rocha não passa de areia, que se atira aos olhos de quem não quer ver e suporta bem a reiteração de mentiras sobre maleitas e mezinhas. A familiaridade dos bordões pode dar algum conforto aos supersticiosos; os repetidos refrões podem até embalar os tolos, mas eu, enquanto música de fundo, aprecio pouco, e como sucedâneo de pensamento político, prefiro margarina sem sal. Escorrega melhor e não faz tanto mal. Se o absurdo não liberta (como diria Camus), pelo menos alivia (diria eu).

Mas se há palavras e expressões cujo uso frequente decorre de fatores estreitamente conjunturais, e que rapidamente voltarão à sua vidinha nas notas de rodapé e apêndices de relatórios e contas, sem que daí decorra prejuízo para o erário público ou para a saúde do corpo social, outras há que – submetidas à usura do expediente político e das mais piedosas intenções – quando esvaziadas de sentido, fazem esquecer a razão pela qual as pessoas se organizam em grupos e em estados e tornam a ideia de regressar ao estado natural para caçar o almoço e reduzir o número de concorrentes comensais um pouco menos repelente. Se o medo assalta as pessoas sob a forma de qualquer insegurança, a revolta é compreensível e a lei uma mula.

Se continuarem a dizer “desigualdade” e “pobreza” como se elas não fossem mais do que borbulhas irritantes no rosto da crise que passa, arriscam-se a não perceber que a doença é funda, vem de muito longe, se tem agravado nos últimos 30 anos e não se trata com cuidados paliativos. Não perceberam ainda que há uma “selva” em “capitalismo selvagem” e que segundo a “lei da selva” todos fazem parte da cadeia alimentar, mas a maioria acaba no sistema digestivo do predador mais forte?

Segundo Hobbes (que selvaticamente traduzo), o “estado natural”, caso não existisse uma comunidade política (uma sociedade organizada), “não deixaria lugar para produzir nada, porque os frutos da produção seriam incertos. Consequentemente, não valeria a pena cultivar a terra, nem navegar, nem haveria utilidade para as mercadorias importadas, nem construção de espaçosos edifícios, nem máquinas para transportar ou remover coisas pesadas, nem conhecimento do mundo, nem maneiras de medir o tempo, nem artes, nem letras, nem sociedade e, o pior de tudo, haveria medo constante e perigo de morte violenta, e a vida das pessoas seria solitária, embrutecida e curta.”

Se não há aqui nada reminiscente da abdicação voluntária de educação, saúde e justiça – oferecidas a todos em condições de real igualdade – camuflada pela erosão semântica da expressão “estado social” que estrategicamente penduraram nas falácias dos défices e das dívidas, é porque há muita gente interessada em “enfiar a cachaça na veia” (a expressão original, que o leitor já gastou também, metia avestruzes e areia e já não dava pedra).       

Instantes

1   Diziam, pela calada agonia dos instantes que eram mudos.   Julgavam-nos pela constância infinita das lamentações pelo fôlego breve do pá...