Já todos fizemos aquela experiência, um pouco infantil, que consiste em
repetir a mesma palavra muitas vezes, até termos a sensação de que ela não faz
sentido algum, de que não passa de um conjunto de sons arbitrariamente
reunidos. Pois bem, se não é essa a sensação que os portugueses têm quando
ouvem palavras e expressões como “ajustamento”, “despesa do estado”, “défice
orçamental”, “crescimento”, “recessão”, “espiral recessiva”, “austeridade”, “regresso
aos mercados”, “saída limpa”, “estado social”… Se não é essa a sensação que têm
até quando ouvem dizer “esquerda” e “direita”, então é porque andam muito
distraídos, ou podem estar a marchar, como regimento de soldados cegos, para a
trincheira onde os conduza a voz da autoridade à qual escolheram obedecer. Pode
até parecer que ali ao fundo há um jardim, mas é mais provável que exale um fedor
de fim.
A repetição mecânica e preguiçosa de conceitos sujeita as palavras que os
sustentam a um processo de erosão semântica que é tanto mais acelerado quanto
maior é o número de pessoas que acefalamente as usam. Ao passarem de boca em
boca, gastas pela saliva de políticos de aviário, porta-vozes oficiosos, comentadores
incontinentes e cidadãos incautos, as palavras comportam-se como calhaus cujas
arestas vão perdendo definição. A contundência da primeira pedrada, aquele momento
original em que o vocábulo, à força de querer dizer qualquer coisa, poderia abrir
uma janela onde ela antes não existia (ou, quem sabe, até uma cabeça), esse poder
de operar na renitente espessura da realidade uma incisão que deixe penetrar
alguma luz sobre a noite opaca da ignorância, dissipa-se progressivamente no rotundo
de gordas frases e na moleza de arremessos verbais que tanto caem no banco,
como na serradura, carpinteirando apitos para caçar patos. Até que, por fim, a
rocha não passa de areia, que se atira aos olhos de quem não quer ver e suporta
bem a reiteração de mentiras sobre maleitas e mezinhas. A familiaridade dos
bordões pode dar algum conforto aos supersticiosos; os repetidos refrões podem
até embalar os tolos, mas eu, enquanto música de fundo, aprecio pouco, e como sucedâneo
de pensamento político, prefiro margarina sem sal. Escorrega melhor e não faz
tanto mal. Se o absurdo não liberta (como diria Camus), pelo menos alivia (diria
eu).
Mas se há palavras e expressões cujo uso frequente decorre de fatores
estreitamente conjunturais, e que rapidamente voltarão à sua vidinha nas notas
de rodapé e apêndices de relatórios e contas, sem que daí decorra prejuízo para
o erário público ou para a saúde do corpo social, outras há que – submetidas à
usura do expediente político e das mais piedosas intenções – quando esvaziadas de
sentido, fazem esquecer a razão pela qual as pessoas se organizam em grupos e
em estados e tornam a ideia de regressar ao estado natural para caçar o almoço e
reduzir o número de concorrentes comensais um pouco menos repelente. Se o medo
assalta as pessoas sob a forma de qualquer insegurança, a revolta é
compreensível e a lei uma mula.
Se continuarem a dizer “desigualdade” e “pobreza” como se elas não fossem mais
do que borbulhas irritantes no rosto da crise que passa, arriscam-se a não
perceber que a doença é funda, vem de muito longe, se tem agravado nos últimos
30 anos e não se trata com cuidados paliativos. Não perceberam ainda que há uma
“selva” em “capitalismo selvagem” e que segundo a “lei da selva” todos fazem parte
da cadeia alimentar, mas a maioria acaba no sistema digestivo do predador mais
forte?
Segundo Hobbes (que selvaticamente traduzo), o “estado natural”, caso não
existisse uma comunidade política (uma sociedade organizada), “não deixaria
lugar para produzir nada, porque os frutos da produção seriam incertos.
Consequentemente, não valeria a pena cultivar a terra, nem navegar, nem haveria
utilidade para as mercadorias importadas, nem construção de espaçosos edifícios,
nem máquinas para transportar ou remover coisas pesadas, nem conhecimento do
mundo, nem maneiras de medir o tempo, nem artes, nem letras, nem sociedade e, o
pior de tudo, haveria medo constante e perigo de morte violenta, e a vida das
pessoas seria solitária, embrutecida e curta.”
Se não há aqui nada reminiscente da abdicação voluntária de educação, saúde
e justiça – oferecidas a todos em condições de real igualdade – camuflada pela erosão
semântica da expressão “estado social” que estrategicamente penduraram nas falácias
dos défices e das dívidas, é porque há muita gente interessada em “enfiar a
cachaça na veia” (a expressão original, que o leitor já gastou também, metia
avestruzes e areia e já não dava pedra).