Este blogue mudou de nome. Não sei se agora será ainda a mesma coisa. O
título original, “Crises e coisas feias”, conduzia os seus temas possíveis à
viela estreita em que o país se deixou enfiar, ou no qual acordou encafuado por
artes da quadrilha de contabilistas criativos e engenheiros da finança a quem
entregou a pasta e o papel. Era um óbvio produto destes tempos difíceis e das
erupções cutâneas que os fala-barato me provocam. Num certo sentido, acabava
por padecer, por contágio e por contexto, de um dos males que queria diagnosticar:
a redução da política a meros “ajustes de contas” – quer em sentido literal,
quer figurado – e a redução do mundo e da vida à linguagem da gestão e dos
mercados.
Governar, hoje, consiste quase exclusivamente em reduzir o défice (a
qualquer preço) e fazer política não é mais do que o arremesso de projéteis
avulsos ao telhado do vizinho. É pobrezinho. Na cabeça de demasiada gente, já não
vivemos numa economia de mercado, mas numa “sociedade de mercado”, em que tudo
se pode comprar e vender – desde os melões, às atenções – e em que tudo tem um
preço, mas nada tem grande valor. Viver, assim, não é preciso.
O novo título do blogue, “A agenda do eremita”, sugere a liberdade que uma
certa forma de solidão permite. Sem pertencer a nenhuma forma de organização
coletiva (ser sócio do ACP não conta!), nem me sentindo especialmente atado por
baraços profissionais (sinto-me, na minha corporação, um corpo estranho, ainda
que essencialmente inerte), fico desobrigado de seguir o rebanho e dispensado
de balir em uníssono na hora da ordenha. Esta ovelha não dá leite. E para o
atual peditório já todos demos mais do que a conta. Só não demos os tiros que
alguns mereceriam, se a revolução certa se pudesse fazer na rua.
LS Lowry: "Man Lying on a Wall", 1957 |
E há, certamente, uma revolução a fazer, mas é uma revolução de dar voltas
à cabeça, exercício que provoca algumas vertigens. Hei de voltar a essas voltas
um dia destes (se entretanto não mudar de ideias), mas a minha vida não é isto.
É que, ao contrário do que os escritos anteriores poderiam sugerir, a economia
e a política ocupam uma parte bastante pequenina dos meus dias. Aliás, uma das
minhas estratégias de sobrevivência consiste mesmo em evitar noticiários, debates
e entrevistas sobre o estado de sítio, não vá a coisa passar-me a peçonha e
deixar-me a falar (e a pensar?) como os jornalistas da bolsa e dos negócios: “abrindo
em baixa”, “em linha com outras praças”, “seguindo no vermelho” ou “encerrando em
contra ciclo”. Ah! A pura poesia dos mercados… passados, futuros e derivados!
Este blogue estava a precisar que eu o deixasse ter uma “vida normal”, como
todos os portugueses estão a precisar que os deixem ter uma vida normal. Numa
vida normal e num país decente, cada um deveria poder dedicar-se à sua
atividade cuidando apenas de fazer bem (e de, não podendo ou não sabendo amar,
ao menos não fazer mal aos outros). Numa vida normal e num país tolerável,
ninguém deveria estar entalado entre as angústias do Sudão e os impostos da
Suécia. Numa vida normal e num país que não me desse urticária, eu não me ocuparia
só de crises e de coisas feias por causa do bom e do bonito.
Por enquanto, ainda há quem se lembre da vida antes do eufemístico “ajustamento”:
dos cortes que foram uma ceifa, da poda que foi um desbaste e do enxerto que
foi de porrada. A nossa vida não é isto.