25 dezembro, 2015

Matinal (para ouvir só)

Girl waiting in the rain, by ZU Photography
Nem tudo pode ser belo
pela manhã
mas vale a pena acordar
quando o som nasce
e a sombra se levanta.

Levas contigo um saco azul
onde a chave se perde, o relógio
pequenino, um lenço de papel
para enxugar a noite e um coração
de prata.
  
Uma nuvem vai e deixa ver
o mar, para onde as dunas descem
desoladas.

Não importa se chove, ouve só
a chuva, o comboio que não chega
a impaciência
de quem espera e tu esperas
o quê?

Ouve só
o que ninguém pode ver.
Ouviste?

11 novembro, 2015

Fantasmas


Conheço gente que vive em casas assombradas. Há mesmo tanta gente que vive em casas assombradas, como descobrimos nas últimas semanas em Portugal, que mais parece que vivemos num país assombrado. Geralmente não se fala disso, porque os fantasmas se tornaram tão familiares que, em circunstâncias normais, já ninguém repara. Mesmo se há visitas respeitáveis em volta da mesa de jantar, a assombração entra na conversa e nada de especial acontece. É como se o fantasma fosse de casa.

E é de casa. Todos os fantasmas têm casa. Não há fantasmas sem-abrigo. Mas onde os fantasmas em que estou a pensar, aqueles que existem mesmo, realmente se abrigam, não é entre quatro paredes e debaixo de um teto nas casas de tijolo e de cimento, mas no interior de crânios hospitaleiros. Digo de propósito crânios, e não cérebros, porque a materialidade destes fantasmas rouba algum espaço vital à massa de neurónios. A sua grande habilidade, que lhes garante a sobrevivência enquanto espécie, consiste no facto de terem uma grande semelhança com ideias e pensamentos normais.

Para não matar de cansaço a metáfora, ou hesitando já na analogia, como quem indecide o que vestir de manhã, talvez fosse melhor falar de ideias parasitas, em vez de fantasmas. Não sei bem. Observo apenas que as interessantes semanas que mediaram entre as eleições de 4 de outubro e a rejeição do governo Coelho-Portas, pela maioria dos deputados que os votos dessas eleições levaram a S. Bento, revelaram uma quantidade tão grande de reações reflexas, histéricas ou simplesmente idiotas que sobrou pouco espaço para ouvir comentários objetivos e serenos. Escutando a gritaria, e se não soubesse muito bem como a gente das políticas é dada a hipérboles do tamanho das birras do Deus do Antigo Testamento, poderia até pensar que estava iminente uma revolução comunista, com a nacionalização relâmpago de todos os sectores da economia, o fuzilamento dos grandes capitalistas e a proibição da Coca-Cola.

Ora, se bem vejo o que já mal posso ouvir, a probabilidade de os partidos da esquerda portuguesa fazerem uma nova Revolução de Outubro é quase tão grande como a do regresso da Inquisição por iniciativa dos democratas-cristãos do CDS-PP, com fogueirinhas para queimar hereges depois da missa: nenhuma delas é absolutamente impossível, mas a sua probabilidade está muito próxima do zero. Poderia aqui fazer uma demonstração histórico-matemática, mas prefiro acreditar na inteligência dos meus acidentais leitores, que talvez habitem o mesmo século que eu e já devem ter procedido à limpeza do sótão que a higiene mental impõe.


Acho que quase toda a gente exagera bastante a importância dos acontecimentos. Uns sentem agora mais esperança, outros entram em desespero, mas quase todos parecem subestimar o poder do tempo, a indiferença do cosmos e a incompetência que geralmente nos salva dos grandes desígnios. Não tarda muito, o país regressa à mediocridade em que nos sentimos todos mais confortáveis. A não ser que haja um terramoto…   

18 outubro, 2015

Maioria ou dó menor?


À gruta funda em que me abrigo das agressões do clima político e económico, chegam fracos farrapos de notícias. Tenho uma janelinha com grades no quarto dos fundos, por onde entra alguma luz natural, mas é demasiado pequena para admitir os tremendos presuntos da pátria, que através das barras de metal me chegam já fatiados, como o fiambre e o queijo com que confeciono uma frugal sandes mista sem manteiga. E não é de coisas mistas que se ouve falar? Coligações, ou assim...
Se alguma coisa entendo do que se tem passado à superfície desde o dia em que levei o nariz à rua para ir votar, a simples aritmética não se aplica ao sistema político português, que é mais sofisticado do que as simples democracias parlamentares. Os votos e os assentos no hemiciclo de São Bento não valem todos o mesmo, traduzo eu. Aparentemente, a soma dos deputados da PàF vale mais, sendo embora aritmeticamente inferior ao número dos eleitos pelas pessoas que obviamente não queriam a PàF a governar. Vale mais, portanto, ter um governo que a maioria não quer, mesmo que a maioria conseguisse formar outro governo. É democraticamente impecável. Até porque, ainda segundo a minha livre tradução da brisa outonal, há votos que só servem para eleger oposições e outros que servem para formar governos. Porque sim, dizem.
Dizem que os partidos da esquerda não podem fazer compromissos para governar porque têm programas muito diferentes. E eu pensava que era por isso que eram partidos diferentes. E que querem coisas malucas, das quais nem se pode falar na presença de pessoas de bem, porque provocam hemorragias nasais e fazem crescer cabelo na palma das mãos. Aparentemente, portanto, os partidos da direita não têm programas próprios, nem diferenças ideológicas, nem nódoa que não saia com uma boa passagem pela água benta do poder, que dissolve convicções firmes como quem revoga decisões irrevogáveis.
Não sei se as convicções da esquerda são menos solúveis, mas lembro-me de um primeiro-ministro socialista que disse que meteu o socialismo na gaveta. Nunca mais por cá foi visto. Ora, se os ditos social-democratas podem ser neoliberais, os ditos socialistas podem ser oportunistas e os sempre democratas-cristãos podem fazer o inconfessável (desde que o confessem e vão à missa comer uma bolacha sem fermento), por que é que um comunista não pode mudar de oculista?

03 outubro, 2015

O Aleixo


O meu amigo Aleixo não tem queixo. Não ter queixo é uma daquelas infelicidades anatómicas em que se repara imediatamente e que muito cedo se confundem com quem as possui. São sinédoques vivas: aquela parte saliente que, no caso do Aleixo, se salienta pela ausência de saliência, acaba por representar o Aleixo todo. O não-queixo do Aleixo é o Aleixo inteiro.

É por isso que a alcunha do Aleixo é Desleixo. O coitado carrega aquele peso a menos desde que entrou na escola e ainda por cima, onde quer que a sua alcunha chegue, precede-o a fama injusta de incúria e negligência, porque nem todos percebem a criatividade infantil do trocadilho. O Aleixo acha que a dificuldade que tem de arranjar emprego se deve ao queixo ou à alcunha. “Se calhar é verdade que uma desgraça nunca vem só”, diz ele muitas vezes, no seu amor desmesurado por máximas parvas e lugares comuns que encontra no facebook. Não adianta consolá-lo com a hipótese de o desemprego de longa duração ser atribuível à sua incompetência, ou até, quem sabe, à política de austeridade, executada por várias desgraças com bastante queixo, mas pouca vergonha.

O Aleixo, que não tem queixo, mas tem que mastigar todos os dias uma ou duas refeições, já fez tantos estágios e cursos de formação, para não perder o subsídio de desemprego, que tive que lhe emprestar a garagem para ele estacionar os diplomas. Vão dar uma linda fogueira no magusto de S. Martinho. A primeira vez que vimos o Aleixo mastigar castanhas assadas percebemos a falta que faz um maxilar inferior de dimensões aceitáveis, pelo menos quando se quer comer em locais públicos ou falar de coisas sérias.

Daí que todos o tenhamos desencorajado de se meter na política, quando um dia veio dizer-nos que se ia filiar numa certa juventude partidária aprovada pelas autoridades eclesiásticas da terra. Já lá vão uns anos valentes, mas nunca os meus dons de retórica foram tão exercitados. É claro que não mencionei uma única vez o queixo retraído como possível fator de insucesso, mas desatei uma tal saraivada de impropérios sobre as perversões da vida política e as más influências dos betos que vão a missas e comícios no mesmo dia, que até hoje o Aleixo não deixa de me culpar pelo facto de não ter chegado a secretário de estado ou diretor geral de qualquer coisa num destes governos de agora.

Olhando para algumas das caras dos políticos menores que estão fechados nos gabinetes a despachar nomeações de correligionários nas últimas semanas antes das eleições (Ah! Se as pessoas lessem o Diário da República!), quase fico com pena do Aleixo, que pode ter pouco queixo, mas não tem menos talento do que alguns narizes e testas, barrigas e traseiros que se salientam por não se salientarem em coisa nenhuma, mas usaram com astúcia fina a ficha de adesão aos partidos certos.

O meu amigo Aleixo, que não tem queixo, queria ir votar nas eleições legislativas e achou boa ideia revelar a sua opção de voto à mesa da sueca. Como não tem queixo, não levou um paf no dito, que o Rodrigues da Chica lhe atirou por cima das garrafas de cerveja, mas vai ficar fechado na cave até segunda-feira e só volta a morder alguma coisa quando nos explicar o que é que o governo fez pela porção inferior e mediana da sua mandíbula.

24 setembro, 2015

O futuro que passou

O que nos levam eles?

Muitos portugueses emigraram nos últimos anos. A maior parte deles não vai votar nas próximas eleições. De certo modo, foi indo-se embora que votaram. Com os pés, literalmente, exprimiram a sua confiança no futuro do país.

Caso alguém não tenha pensado nisso, o futuro do país é o futuro das pessoas que nele vivam. O futuro dos portugueses que emigraram, pelo menos durante uma boa parte das suas vidas, não será o futuro de Portugal, será o futuro dos países para onde emigraram. Aquilo que sabem fazer, aquilo que façam nascer, não será português agora, nem talvez depois, nem possivelmente nunca. A não ser nas histórias sentimentais que aquecem a alma dos amantes de símbolos e saudades, que sempre acham algum consolo remoto nos vestígios de Portugal no mundo, o futuro de Portugal perde quase tudo o que esta gente poderia dar-lhe a ganhar.

Para estes portugueses que emigraram, Portugal é mais passado que futuro. Para nós, que ainda aqui estamos, é um pedaço de futuro que passou. 

E eu, que fiquei por cá, embora contrariado, fico também com uma dúvida: votar naqueles que levaram tantas pessoas a partir, não será traí-las duas vezes? Por favor, não me digam de novo que não havia outra maneira, porque isso é o mesmo que dizer que tudo isto é fado. E tudo isso é triste.    

22 setembro, 2015

As barbas de Henrique VIII

Nunca se viram tantos homens de barba. A coisa não me interessa enquanto tendência. Não sou de modas. Já enquanto economista – doutorado a um fim de semana pela Universidade da Internet de Baixo – e historiador especializado em problemas capilares, a súbita multiplicação de faces hirsutas entre os meus concidadãos do sexo masculino tem-me dado bastante que pensar.

Depois de tomar um chá e de coçar a orelha direita com a mão do mesmo lado, fui à estante da história à procura de luz. É lá que se esconde o interruptor do meu candeeiro de leitura. No exato momento de dar à dita, digamos assim, acendeu-se-me o olhar com as lombadas da história inglesa e a barba refulgente do monarca das seis mulheres. O excesso de cônjuges do oitavo Henrique, e a maneira criativa como dissolveu os matrimónios inférteis em varonil descendência, podem ter desviado as atenções daquele que é provavelmente o seu maior legado à posteridade e fonte de inspiração da minha proposta para aumentar exponencialmente a receita fiscal e resolver de uma penada o problema do défice.


(Henrique VIII por Hans Holbein, o jovem)

Em 1535, numa época em que as caras atapetadas eram tão ou mais frequentes do que hoje, o bom do rei, proprietário ele mesmo de ruivo revestimento facial, impôs, como se impõe, um imposto sobre as barbas. O imposto não era cego e indiscriminado, ao contrário do IVA que os nossos escanhoados governantes nos infligem, e tinha uma óbvia preocupação social. Como recomendam os princípios de uma fiscalidade distributiva, era um imposto progressivo, uma vez que variava com a posição social do barbudo.

Já a sua filha Isabel, primeira do nome enquanto rainha e fruto das segundas núpcias, com Ana Bolena, reintroduziria o imposto, entretanto abolido, com uma variação provavelmente mais justa, que tinha em atenção a dificuldade de adquirir lâminas descartáveis antes da invenção dos supermercados: apenas eram tributadas as barbas com pelo menos duas semanas de crescimento. Não se sabe como é que os inspetores das finanças faziam os cálculos. Devia ser a olho, fazendo uso dos chamados métodos indiciários, que ainda hoje têm muitos adeptos e se traduzem assim: o que parece, paga.

É claro que os monarcas ingleses não foram os únicos a perceber as vantagens de tosquiar por via tributária os cavalheiros negligentes. Pedro I da Rússia, já nos finais do século XVII, quis modernizar à força os costumes e, “em linha com as praças europeias” (segundo redação do meu correspondente na bolsa de detritos linguísticos), obrigou os súbditos a transportar consigo um comprovativo de boa cobrança, sob a forma de uma medalhinha que trazia, de um lado, a águia imperial e, do outro, além de uma representação da parte inferior da face coberta de pelos, uns dizeres que atestavam pagamento do imposto – “dinheiro recebido” – e a justificação lapidar da sua existência: “a barba é um peso supérfluo”. E não é?

Já estão certamente a ver onde quero chegar e antecipo até as objeções práticas que podem ser colocadas à proposta, que ainda mal esbocei, de penalizar as barbas e salvar a nação das garras dos credores. Provavelmente estão a pensar que o imposto nunca arrecadaria receita que se visse, uma vez que os nossos enérgicos cidadãos imediatamente boicotariam a medida através de um barbeamento estratégico. Errado, porque o meu programa tem as contas feitas e essa não seria uma medida isolada. Para impedir a evasão fiscal por ausência de pilosidade, seriam também tributados, como artigos de luxo, as lâminas de barbear e todos os instrumentos passíveis de atingir fins semelhantes, como cremes depilatórios, navalhas, machados, moto-serras e pedras lascadas.  

Agora vou fazer a barba, que é o único luxo que me resta.

13 setembro, 2015

Política de preços baixos



As campanhas eleitorais são como as campanhas de promoções dos hipermercados. Se os hipermercados baixam os preços, como forma de levar as pessoas a entrar nas lojas e a gastar dinheiro em coisas de que não precisam, enquanto se abastecem do essencial; nas campanhas eleitorais os partidos embaratecem a conversa e baixam os custos das políticas futuras, de maneira a levar as pessoas a votar na fada dos dentes. Aquilo que antes poderia parecer coisa de sonhos improváveis, afigura-se de súbito realizável pela introdução de um papelinho numa ranhura, como dentinho caído que se introduz num recanto secreto para que a fada da especialidade no seu lugar deixe, sei lá, uma quantia correspondente à sobretaxa do IRS, que por abnegação deixámos cair do bolso, ou aquela parte dos salários e pensões que voluntariamente sacrificámos ao serviço da dívida.
   
Por isso é que não me meto em campanhas. Ou antes, não compro mais do que o indispensável. Nem aos hipermercados, nem aos partidos grandes, que são os verdadeiros hipermercados da política. Se aos primeiros vou apenas quando estritamente necessário, dos segundos espero tão pouco que já nem os panfletos deles uso na lareira, porque aquilo pega mal e liberta estranhos odores.

É claro que a maioria dos portugueses não pensa como eu. A julgar pelas sondagens, quase ninguém resiste a ideias em saldo. “Não conhecem outras”, diz o meu amigo Inácio. E é capaz de ter razão, porque mesmo quem lê jornais não acha lá mais variedade. As sondagens, que tenho visto pelo canto do olho, sugerem até que há cerca de um terço dos portugueses que sofrem de “síndrome de Estocolmo” e se preparam para abraçar quem os fez reféns de uma miséria que já parecia em vias de extinção. Digo “reféns” porque a dita “austeridade” é apenas o pretexto para amarrar o país a uma política de liberalização da economia que apenas vai acentuar o que nos foi vendido como consequência da crise. E dizem que isso é bom. Como o óleo de fígado de bacalhau e o arroz de atilhos?

Se há hoje mais pobres miseravelmente pobres; pobres que antes eram remediados; remediados que antes viviam com desafogo e – por contraponto meramente acidental e benigno, claro – ricos que estão hoje mais ricos, o que parece previsível é que os três primeiros grupos (essencialmente os que dependem de um salário), sejam cada vez mais entregues a si próprios e aos caprichos das lotarias financeiras, enquanto os quartos colherão os benefícios das desregulações dos mercados todos, abatendo à carga todo o lastro que os possa prender à terra, sobretudo coisas maçadoras como os “custos do trabalho”.  

Os portugueses inocentes foram convencidos de que tudo isto é inevitável e até benéfico. Se calhar porque se atreveram a respirar o ar que não lhes pertencia, pagam agora os juros do oxigénio emprestado. Reconhecidos, muitos acreditam que o ladrão lhes vai devolver a carteira. Os verdadeiros responsáveis só não choram a caminho dos bancos porque já lá estavam a beber champanhe, celebrando antecipadamente a colheita das contribuições que esperam roubar à segurança social. Quem não puder pagar, que se governe com menos.

Ainda pelas mesmas sondagens, há quantidade quase igual de portugueses que têm esperança de que o hipermercado do lado faça preço diferente e estão dispostos a consumir lá os próximos quatro anos. Não digam que fui eu a avisar, mas suspeito que a diferença está quase toda no rótulo e, quando muito, vão receber um brinde barato que não dura seis meses. 

11 agosto, 2015

Agosto é para contar feijões. E depões?

Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!

                                                             Mário Cesariny

O país esturrica ao sol, bronzeado e bem passado, enquanto políticos almoçam os feijões que o INE conta. O INE é o Instituto Nacional de Estatística e a sua única função é contar coisas. Já a função dos políticos, principalmente os políticos engravatados do “arco dos poleirinhos”, é a de contar histórias (ou de produzir “narrativas”, que é mais fino e pós-moderno). Agarram nos feijões do desemprego que o INE contou e recontam, descontam, discutem se o feijão é preto, ou se é frade, ou se é de bico. Mas o caso é mais bicudo, porque nem o feijão coze, nem o desempregado almoça.


Qual é o espanto? A campanha não é alegre? Então a função dos políticos em campanha não é dar-nos música agora e, correndo tudo bem, deixar-nos de tanga depois? Talvez seja, mas recomendo reserva no juízo. Não quero que fiquem com a impressão de que pertenço à grande maioria que gosta de dizer que os políticos são todos iguais. Primeiro, porque não é verdade. E não é apenas porque uns sejam piores do que outros, o que seria puro cinismo e a esfarrapada desculpa que alguns usam para fazer toda a sorte de sacanices. “Se eles fazem…” começa a história. Se pensam assim, mais vale que se dediquem à política.

O que quero dizer é que a conversa dos feijões serve para desviar atenções. Enquanto o olhar se entretém com o sobe e desce de umas casas decimais, esquece-se o pobre que esmola, o rico que esfola, o país inclinado para o mar como Titanic de pedra e o planeta a caminho do inferno numa carroça a jato.

Os senhores do governo e arredores veem “sinais”. Apareceu-lhes a imagem da virgem da retoma numa tosta mística! Num país assim entretido, ganha as eleições quem tiver mais devotos.

04 julho, 2015

Um dilema em dias de ócio


Se eu quisesse, escrevia hoje sobre o dilema grego. Afinal, dilema é uma palavra de origem grega, formada pelo prefixo di-, que significa dois, e por lemma, que significava premissa, ou coisa recebida e aceite como verdadeira. Na lógica, dilemma era uma espécie de silogismo, no qual, de duas proposições apresentadas, uma ou outra seria verdadeira. Mas, oxi ou nai? Na retórica, consistia em oferecer a um opositor a escolha entre duas alternativas igualmente desfavoráveis. Oxi ou nai? No vertente dilema helénico, a escolha que os incríveis credores oferecem é mais ou menos a de um salteador ganancioso que se engana nas conjunções: “A bolsa e a vida!”

E é isto a vida? É a economia? São a mesma coisa? Não parece que se trata apenas de política ao serviço de um certo sistema financeiro? Os pobres que se amanhem ou que saiam de baixo.

As coisas podiam ser de outra maneira, se as pessoas deixassem de achar tudo óbvio e natural em matéria de economia. Se deixassem de aceitar os lemmas, as premissas, dos silogismos que as leis do lucro e do mais forte impõem como “lógicos”. Mas para deixarem de achar tudo óbvio, precisariam de estudar mais, em vez de lerem jornais ou de irem às universidades adquirir certificados de comportamento ideologicamente correto, por equivalência ou não. Se estudassem mais, até deixariam de achar que a economia é a mesma coisa que o sistema económico e descobririam, talvez, que nem uma nem outro são fenómenos naturais, como os terramotos ou os golos do Eusébio. As coisas podiam ser de outra maneira porque são pessoas que as pensam e que as fazem. Chama-se cultura, isso que as pessoas colhem do que em sociedade semeiam. A economia é o que as pessoas juntas dela fizerem.

Então, e há para aí leituras para pensar sobre o mundo “fora do caixão” em que levaram o cérebro a sepultar?* O que se poderia ler então para abrir um pouco a janela deste sufoco ideológico? Sei lá. Talvez Debt, the First 5,000 Years, de David Graeber, para uma visão antropológica de longo alcance histórico e cultural sobre dívidas e dinheiro, a começar pelo mito fundador da doutrina económica, que vem de Adam Smith e que todos os manuais de economia repetem desde 1776 sem terem investigado nada: a ideia de que antes de haver dinheiro os negócios se faziam pela troca direta de géneros. Parece que nunca foi assim, revelação que relativiza bastante tudo o que se possa ler sobre “economia” (as aspas fazem já parte do meu processo de relativização). Pelo menos, ler Graeber ajuda a pôr tudo noutra perspetiva. Não é indiferente o lugar de onde se olha, nem é bom ignorar o lugar dos outros. 
 
Se eu quisesse escrevia sobre o dilema grego. Mas para isso era preciso que estivesse mais interessado em economia e em negócios, o que só seria possível se “negócio” não fosse uma palavra de origem latina formada pelo prefixo negativo nec- (não) e pela palavra otium, que deu o nosso “ócio”, e significava tempo de lazer, dedicado ao descanso, à comida, aos jogos, à contemplação ou ao estudo. Negócio? Não ao ócio? Oxi, claro, porque hoje é sábado e amanhã é domingo.


* Esta pergunta é uma forma de retaliação em espécie contra a estratégia retórica dos pensadores da monocultura dominante, que consiste em chamar estúpidos a todos os que pensam de maneira diferente.

06 junho, 2015

As estantes: monoculturas e o mundo claramente invisível

you can't leave me on the shelf
you gotta commit yourself

Billie Holiday, “Now or Never” (1949)

Quando olho para uma estante, vejo apenas um sítio para arrumar livros. Tenho uma visão pitosga do mobiliário e da decoração. Embora saiba que as prateleiras podem ser usadas para colocar muitos outros objetos, a coisa que primeiro me ocorre, certamente por força do que a vida me fez e do que eu faço dela, é aquilo que as prateleiras podem fazer pela minha modesta biblioteca. A limitação não está nas estantes, portanto, mas na minha imaginação.

As minhas estantes são estantes especializadas. Como se especializaram em livros, estes acabaram por ocupar todo o espaço de que elas podiam dispor. Logo, as estantes são como as pessoas. Às nossas especializações, profissionais ou diletantes, costumamos chamar “ocupações”, designação que parece apropriada, uma vez que elas ocupam muito do espaço onde outras coisas poderiam caber. Podem ir ocupando literalmente o espaço físico e finito das casas onde vivemos, se forem como as estantes de quem adquire muitos livros, por exemplo, mas ocupam sobretudo o espaço da mente, cujo potencial infinito costumamos confinar aos dois ou três quartinhos habituais, aqueles recantos da casa do ser que nos dão o conforto da familiaridade.

Somos, pelo menos em parte, aquilo que nos ocupa, mas estes hábitos ocupacionais são apenas aquilo de que podemos mais facilmente falar quando nos apresentamos a alguém. Dizemos: “sou professor”, “sou eletricista”, “sou melómano”, “sou colecionador de borboletas”, etc. As ocupações são identidades de cartão, bidimensionais e recicláveis, embora poucas vezes as reciclemos de forma voluntária, porque perder um hábito que socialmente nos define é mais difícil do que perder alguém de família.

E quando a autodefinição nos agrada, persistimos. Se a persistência se torna monomania, porém, podemos um dia acordar com o mundo às avessas: em vez de ver nas estantes superfícies para arrumação de livros, podemos dar connosco a achar que o mundo inteiro é apenas um conjunto de estantes em potência. O hábito torna-se assim num vício com inclinações expansionistas. A partir daí, a lógica já só existe na mente do obcecado bibliómano, que ainda assim a achará evidente e universalmente compreensível.

Todo o mundo é uma estante

Portanto, até os bons hábitos podem ser maus. A especialização disciplinar dos estudiosos de qualquer matéria é um desses hábitos expansionistas: é uma coisa tão boa que pode ser catastrófica. É desejável, porque é sempre preciso saber mais e é impossível não restringir aquilo que se estuda a uma pequena parcela da realidade de cada vez. Só que, quanto mais o olhar se especializa e mais é o que vê no menos que olha, mais é também o que perde naquilo que deixa de olhar:

Até que a luz que se faz não deixa ver
a luz inteira
e a noite fechada de fraco fósforo
se alumia 

Aquilo que nos define pode ser também aquilo que nos cega e nos constrange. E constrange e obscurece o mundo ao ponto de o tornar invisível, de tão claro.

Mas o que é realmente aterrador é quando a visão estreita de pessoas individuais se transforma em todo um Zeitgeist, que em português se costuma traduzir por “espírito do tempo”. É o que ocorre quando o olhar de uma especialidade se transforma na única maneira de pensar sobre a realidade, ou uma parte considerável dela, quando uma monomania se transforma numa monocultura.

Infelizmente, vivemos numa dessas monoculturas e a especialidade que arruma o mundo todo nas suas prateleiras é a economia. Já ouvi dizer que a crise nos transformou a todos em economistas instantâneos, o que, para mim, não significa que haja mais gente a perceber melhor o que se passa, mas mais gente a olhar para o mundo pelo lado errado do telescópio. Pode ser que muitos não tenham dado conta, mas toda a conversa que passa por política nestes tempos que não correm, mas se arrastam, não é mais do que a redução pitosga da sociedade a um conjunto de indicadores macroeconómicos e variáveis contabilísticas.

A sociedade não é redutível a relações económicas. A economia não é uma “teoria de tudo”. Andam a pôr a nossa vida nas prateleiras erradas.

10 maio, 2015

Angústias de um anglófilo anónimo (com vocabulário de inglês alimentar)


O autor semificcional destas páginas é aquilo a que se costuma chamar anglófilo. Ao princípio, não dói. A doença poderá ter sido incubada em resultado de uma resposta irrefletida para calar interrogatório de criança. Disseram-lhe que a cegonha o trouxera de Londres, em vez de Paris, de onde todas as crianças deveriam, educadamente, proceder. É uma quase mitologia particular, que poderia explicar duas coisas: a quase traição à pátria língua dos exclusivistas hábitos de leitura que manteve durante muitos anos e ainda a dificuldade de cantar em coro sem desafinar. Excentricidades.

A condição de anglófilo – que aqui se refere às culturas de língua inglesa e não apenas à Inglaterra – tem várias fases empiricamente observáveis. Na primeira, olha-se muito para cima. Tudo o que fala inglês é alto e reluz. Na segunda fase, há algum conforto e sorrisos parvos de reconhecimento. É como andar em casa sem chocar muito com a mobília e o pescoço já não dói tanto. Depois disso, o inglês já não é bem uma língua estrangeira. Às vezes é até como se um espelho nos devolvesse a cara mal amanhecida de um susto qualquer. Abrem-se por fim completamente os olhos e não é o sol que brilha de todos os traseiros. É também pelo olfato que se sobe à realidade. (Sobe, sim, porque nunca me pareceu que encontrar a verdade pudesse equivaler a uma queda, mesmo que a descoberta implique maçãs indigestas e traumatismos vários).

Hoje, esse quase-eu que a contragosto subscreve o que agora escrevo é uma espécie de anglófilo anónimo: não tem cura, nem vai às reuniões, mas admite que tem um problema. Problema que imperfeitamente se resume no entendimento de que Portugal, que era, segundo Eça, um país traduzido do francês em calão, é hoje um país traduzido do inglês por calões. Se não fossem preguiçosos tradutores de ideias pré-fabricadas, políticos, economistas e plumitivos sortidos teriam mais dúvidas e angústias. Bastava perguntarem ao cozinheiro da história que se segue.

FOOD STAMPS (vocabulário de inglês alimentar - 1)

Bertrand Olotara é cozinheiro no Senado dos Estados Unidos, a câmara alta do poder legislativo americano. Todos os dias alimenta os homens do poder, mas ele próprio não ganha o suficiente para se alimentar, nem para alimentar os cinco filhos, que educa sozinho. De nada lhe servem os dois cursos superiores (Direito e Gestão). Nem com um segundo emprego (numa mercearia) e trabalhando 70 horas, sete dias por semana, as verdinhas lhe chegam para verduras ou farturas. Precisa ainda de recorrer aos chamados food stamps, cupões para adquirir alimentos que são concedidos aos cidadãos americanos empregados, ou que se inscrevam em estágios e cursos de formação, e que não ganhem o suficiente para viver. O ministro Mota Soares estudou a lição.


Na maior economia do mundo, quem trabalha, mesmo duas vezes a tempo inteiro, pode passar grandes privações e não ter sequer dinheiro para pagar a renda de casa. Vivem muitos em parques de caravanas; outros partilham quartos; alguns ainda dormem no carro, se o tiverem, ou até na rua, que é mais ventilada. O modelo primeiro do que se chama “mercado livre” e do individualismo empreendedor; o modelo mesmo da sociedade capitalista e meritocrática a que muitos dos nossos tradutores de ideias estúpidas em “econinglês” aspiram, subsidia assim, através dos food stamps, as empresas que pagam salários miseráveis. Como a Walmart, que é propriedade de uma das famílias mais ricas do mundo. E rico, aqui, quer dizer seriamente, fabulosamente, obscenamente e, já agora, imoralmente rico. A não ser que a alguém pareça moralmente aceitável a exploração do trabalho escravo. E que outra coisa se pode chamar a esta maneira de tratar quem trabalha? Discutir se isto é mais ou menos neo-liberal é apenas uma questão de pedântico mau gosto.

Quem paga o salário de Bertrand Olotara é uma empresa privada, naturalmente. Porque estes estados capitalistas de ideias mais avançadas não podem contratar funcionários (pecaminosa despesa), mas contratam empresas (que são despesas boas) e deixam-nas fazer o que entendem, porque o mercado é “livre”. A desonestidade intelectual e a injustiça social vão assim de mãos dadas, numa simetria que resulta esteticamente impecável: as empresas choram a caminho do banco e os empregados correm ao banco alimentar.

FOOD BANKS (vocabulário de inglês alimentar - 2)

Os cidadãos do Reino Unido acabam de votar maioritariamente no mesmo partido que os governou durante os últimos cinco anos, manifestando a sua satisfação com a política a que se chama de “austeridade”, que sábia e corajosamente consiste em reduzir todas as despesas com coisas inúteis. Ou seja, essencialmente com os pobres, que não morrem, nem saem de baixo.

Há cinco ou seis anos, os food banks (bancos alimentares) eram uma coisa raríssima no Reino Unido. Hoje há mais de mil. Servem todos aqueles que não têm dinheiro para comer, empregados e desempregados. Muitos “empregados” recebem apenas as horas que trabalham por semana se os empregadores precisarem deles, sejam 50, sejam zero (é por isso que se chamam zero-hour contracts), sem nunca saberem o que os espera ao virar da esquina. Esta “flexibilidade laboral” resulta em enormes benefícios para a economia, segundo afiançam, também por cá, os mais conscienciosos sábios. E garante também que há menos trabalhadores obesos, digo eu.

Os desempregados, por sua vez, não têm outro remédio se não ir pedir comida, porque perdem os subsídios se não cumprirem as regrazinhas da burocracia dos centros de emprego, como apresentações regulares (tipo medida leve de coação para arguidos), mesmo que isso implique gastar o dinheiro que não têm em transportes que ninguém lhes paga. O governo português também não faltou a essa aula.  


Quase 5 milhões de pessoas no Reino Unido não têm o suficiente para comer. Mas a culpa é dos pobres, como muito bem têm observado os políticos do partido agora reeleito. Se não, vejamos. Michael Gove, líder parlamentar dos Conservadores, disse que as pessoas que usam os bancos alimentares “não sabem administrar bem as suas finanças”. A baronesa Anne Jenkin, que tem assento na câmara dos lordes e dedicou alguma atenção ao assunto, concluiu (nobremente) que “os pobres não sabem cozinhar”. A ex-deputada conservadora Edwina Currie afirmou que as pessoas que usam os bancos alimentares desperdiçam dinheiro em tatuagens e em comida para cães. Coisas destas não se ouvem por cá, pois não?

Portugal acha que é um bom aluno de inglês, mas toca muito de ouvido e é meio mouco. Juntamente com as duas grandes economias anglófonas dos exemplos acima, completamos o trio de países da OCDE onde as desigualdades entre ricos e pobres são maiores. Já estávamos nesta posição antes desta crise, que serve de pretexto a tudo, mas não justifica grande coisa, e estamos agora a fazer as políticas que garantiram aos outros dois países tão invejáveis posições na tabela classificativa da indignidade. Well done! Parabéns! 


12 fevereiro, 2015

Gregos radicais e iogurtes nacionais: crónicas da dúvida soberana



Deveria fazer-se crónica miúda e ilustrada das maneiras como as pessoas se agregaram em resposta às gregas ocorrências. Não estou a pensar apenas nas respostas políticas e institucionais, mais ou menos picadas pelo ferrão da helena melga que a meio da noite do austero inverno veio perturbar o sono burocrático dos ocupantes das cómodas cadeiras do consenso. Estou a pensar também nas reações do chamado “cidadão comum”, o verdadeiro habitante do parvus mundus (do latino “pequeno”, não do corrente “parvo”). E já nem falo, embora falando já, dos ermos crânios da opinião, os que tudo precisam de saber dizer por encomenda e com hora marcada, ao menos para preservação da face e do estipêndio.

Destes últimos, dificilmente esquecerei, até ao derradeiro dos meus monótonos dias, o painel de um orgulhoso canal de notícias que acompanhou as imagens da noite eleitoral emitidas de Atenas: sem que nenhum dos três “especialistas” percebesse palavra de grego, sem tradução consecutiva ou simultânea e sem legendas possíveis, nenhum deles pediu escusa de funções, nem se sentiu inibido de comentar fosse o que fosse. Como? Pedindo desde já desculpa aos animais da única expressão que me ocorre, enchendo de palha os jumentos que ficaram a ouvi-los.

Em vários canais, na mesma noite, jornalistas e enviados “especiais” lamentarem-se, quase timidamente, do facto de os chefes dos partidos gregos não falarem ao menos inglês nos seus discursos de vitória ou de derrota. Uma desconsideração, seguramente! Não sonhei, era ainda cedo e não tinha bebido ao jantar. Viram-se os ditos repórteres proverbialmente gregos e ficaram os líderes dos partidos portugueses cientes de que nas próximas legislativas vão ter que pensar em satisfazer a curiosidade das hordas de jornalistas estrangeiros, já previstos por vários analistas políticos e agências de viagens, perante a iminência de um resultado eleitoral verdadeiramente estranho em Portugal: a vitória de um dos dois partidos do costume! Porque “Portugal não é a Grécia!”, repete diariamente o trágico coro.   

Fomos, assim, incomparavelmente informados, à maneira do repórter do romance Scoop, de Evelyn Waugh, que desembarcou do comboio no país errado, mas nem por isso deixou de relatar a guerra nas páginas do jornal que o enviara ao país onde ela realmente ocorria. Os nossos comentadores e repórteres desembarcaram as ideias feitas que tinham mais à mão e entregaram às redações a encomenda. Contribuíram assim para que os seus leitores, espetadores e ouvintes se dividissem de acordo com as mesmas ideias feitas, com rótulos vazios, mas que bastam ao preconceito e dispensam estudo: radical, marxista e... sexy (conceito político que não descobri na minha estante, mas admito apropriado e relevante para avaliação objetiva das propostas gregas).   

A crónica que não se fará das diferentes atitudes relativamente ao caso helénico encontraria certamente as pessoas divididas em dois grandes grupos – como em quase tudo neste planeta, que antes era analogicamente maniqueísta e agora é digitalmente binário: as que gostaram dos resultados e esperam algo de bom e as que acham que o resultado vai dar em desgosto e temem algo de mau. Como em quase tudo o que tão simplesmente se divide, os dois grupos estarão certamente errados.

Mas que tantos tenham, simplesmente, prestado um pouco de atenção, já me diz que outras luzes se podem estar a acender, ou que a fadiga perante a ladainha com que se encantam os tolos pode, finalmente, ser mais do que uma vela acesa à espera do milagre. Ou, então, é tudo imaginação minha.


28 janeiro, 2015

Soberana sesta

Depois da EDP, da REN, da PT, da TAP, do frango assado e dos pastéis de nata, parece que a última coisa que ainda é realmente nossa – e fazemos quase tão bem como os melhores – estaria afinal para ser vendida também. E logo a única produção nacional que o Dr. Passos Coelho tem feito crescer significativamente, sem que o mérito lhe seja por todos devidamente reconhecido.

Logo agora que estava tão pimpona e se podia apresentar a estranhos sem ter que pentear a guedelha negligente, parecia que vinha aí um Mário qualquer – italiano invejoso e amigo do alheio – oferecer-se para comprar a dívida que, de tão nossa, até se chama “soberana”. O último pedacinho de Portugal que nos resta, e do qual devíamos sentir patriótico orgulho, poderia começar a desaparecer mediante a perversa troca por outra dívida com juros mais fraquinhos e fabricados em Frankfurt. Pensei eu! Afinal, o senhor só queria oferecer a massa a quem melhor a tem sabido cozinhar, os nossos muito amados bancos, que tantas maravilhas têm operado por esse mundo fora. A nossa dívida, portanto, parece garantida por muitos e bons anos e promete tornar-se uma senhora de bom porte. E que os deuses a conservem.

Só estaria ameaçada, por hipótese absurda, se nos ocorresse eleger um governo “radical”, que quisesse desfazer-se dela, ou de parte dela, assim sem mais nem menos, como os malucos dos gregos. O radicalismo do governo Tsipras manifestou-se logo na tomada de posse. Ainda antes de começar a dispensar a dívida, quase todo o governo grego dispensou a gravata e a igreja, num prenúncio claro de que pretende desfazer-se de certos nós e ortodoxias. Com tanto radicalismo, um dia destes ainda os apanham a comer bifes de soja, a usar sacos recicláveis e a governar para os cidadãos em vez de financiar os bancos.

A nossa sorte é haver sol e praias com areia suficiente para estender a toalha, porque assim podemos continuar a dormir uma longa e reparadora sesta.  

Portugal e a dívida


04 janeiro, 2015

A coisa assim quase dá certo

Arthur Boyd - Cripple in smoke from factory chimney (1942)


“Ausência de indústria e de fábricas significativas,
eis a higiene de um país como o nosso.
E quando não há chaminés importantes
até o fumo do cigarro conta para efeitos estatísticos.
Não é grande nem é enorme mas é simpático, este país.
Dois lados dão para a terra, dois lados para o mar.
E a coisa assim quase dá certo.”  

Gonçalo M. Tavares, Uma Viagem à Índia (2010)



Os números são sinais. Quando os números são convocados a assistir ao conselho de ministros, vêm a público dar sinal do épico trabalho do governo para endireitar o que nasceu torto. Chamam-lhe uns trabalho de Hércules, outros de Sísifo, quase. A mitologia grega parece excessiva para a mundana tarefa de arrumar a escrita, porém, como os números são muito pequeninos e estamos em ano de eleições, é preciso usar ao menos um megafone e duas hipérboles.

É assim que crescem a natalidade e a economia, e o desemprego baixa, presumivelmente porque a aquisição de uma dúzia de fraldas descartáveis a mais do que em período homólogo do ano anterior fez aumentar significativamente o PIB e sinaliza uma clara tendência de crescimento sustentado.  

A língua enrola-se adjetiva e adverbialmente; as têmporas latejam em êxtase estatístico; o chão treme e o país avança mais um centímetro na direção do vale fértil.

E mais vale tarde ao vale, não diz o ditado, mas podia dizer. Remoto consolo é o céu.


02 janeiro, 2015

Acidente


Portugal é o país onde os portugueses acontecem.
Se os portugueses fossem mais organizados
e fizessem mapas, iriam acontecer ao pé de outra gente
preventivamente.


Se um português acontecesse na Noruega, que é menos quente
já não teria depois que pôr-se ao fresco
porque seria logo norueguês e ainda teria bacalhau
se lhe apetecessem pataniscas.


Do que nunca se lembraria outra vez
era de ser português
e de ter saudades de coisas que nunca passaram nas televisões
como grandes batalhas com aparições
e restaurações, no tempo em que havia unicórnios
e dragões


e todos os portugueses eram heróis
e muito honestos
e mais espertos do que todos os outros
que eram só piratas, coitados
e espanhóis.


01 janeiro, 2015

O ano da fava


Os balanços do ano finado e as previsões para o ano que alvorece estão para esta infindável quadra, forçosa e esforçadamente festiva para muitos, como o bolo-rei ele mesmo: ninguém aprecia especialmente, mas faz-se sempre. O ser humano afeiçoa-se com facilidade a celebrações e preenche os calendários com dias “especiais”. É claro que a sua profusão os torna menos especiais, mas qualquer desculpa serve para comer até para lá da saciedade, beber até ao estupor dos sentidos e, claro, para retrospetivas e prospetivas perdas de tempo.

Entre balanços, previsões e todas as marcas das celebrações, prefiro contemplar a fava. A fava vem metaforicamente a propósito porque é o legume que mais provavelmente sairá à maioria dos portugueses no inauspicioso ano que me amanheceu hoje, enfriado e embaciado, nas vidraças da janela. Segundo me é possível vislumbrar entre os espumosos vapores da festança de ontem e os gases tóxicos de uma campanha eleitoral que começou com um ano de antecedência, o ano de 2015, por muito que me custe rebentar o balãozinho ainda meio insuflado dos meus ressacados leitores, não vai ser nada de especialmente divertido.

Sem cartas astrais, baralhos de tarô, folhas de chá ou mendes e marcelos, não prevejo nada realmente bom (realmente não prevejo nada, mas é maneira de falar). E se o que aí vem apenas bom fosse, já ótimo seria. Pela riqueza do discurso político que se ouve, que pouco deve à imaginação e à dívida tudo deve, vai ser um ano em que, mais uma vez, se falará do que menos abunda como se a sua abundância fosse tudo o que falta.

Se ao menos a árvore de Natal fosse a das patacas, pensamos nós, logo se veria.  


Instantes

1   Diziam, pela calada agonia dos instantes que eram mudos.   Julgavam-nos pela constância infinita das lamentações pelo fôlego breve do pá...