21 julho, 2013

A mecânica dos fluidos, ou como usar janelas e evitar as portas

Anda tanta gente ocupada com as pequenas piruetas políticas que abrem os noticiários que, desconfio eu, quase ninguém parece reparar no gorila (prometo que um dia explico esta e outras ilusões cognitivas). No momento em que escrevo estas palavras temos em funções um governo mais ou menos interino e um governo remodelado que não passou do modelo. Houve afobadas correrias pelos corredores do poder para fingir que se costurava à pressa uma roupinha de levar a Belém e agradar ao pensionista residente, mas no fim os impenitentes foram nus. Houve, sobretudo, a aparente impotência generalizada para escapar ao círculo vicioso da intriga palaciana, do cálculo eleitoralista, do dichote parlamentar e da desonestidade intelectual. Este corrupio de cromos e caretos é irritante e até um pouco embaraçoso, e como não resolve nada, resta-nos esperar que também não comprometa nada de essencial. Pode ser que, quando a febre baixar e os olhares se desviarem para outras manchetes, a prazo médio ou curto, mais pobres ou menos folgados, os portugueses esqueçam os crimes agora cometidos em seu nome (em estado de emergência nacional ou de insanidade temporária, conforme as doutrinas) e voltem a ocupar as horas dos noticiários tal como ocupam as casas de banho públicas: por pouco tempo e com dois dedos no nariz.

Mas se nada disto vai durar mais do que a espuma do champanhe, haverá alguém que nos explique o que realmente importa saber? Um título de jornal anunciava há tempos o convite endereçado pelo presidente da república a várias dezenas de economistas (como não quero insultar ninguém acima das minhas possibilidades, limito-me a tratar excelências e santidades a golpes de afiada minúscula). O supremo magistrado da nação pretenderia auscultar os ditos sobre os modos de transformar o presente do país num futuro qualquer (parece que a ambição está neste momento pouco acima do nível de sobrevivência, quer do país, quer dos seus cidadãos). Logicamente, chamam-se os economistas. Não um economista ou dois, observe-se. Eram logo às dúzias de padeiro. E se não for para ir a Belém, é para ir aos estúdios de televisão e a todos os jornais. Diariamente, incessantemente, sem fins de semana nem feriados que nos valham, em regime de apneia opinativa, chamam-se sempre economistas. Mas não se dispensam também os politólogos, para já não falar de outros observadores profissionais polivalentes e políticos sentados no banco de suplentes, que ora são promovidos a analistas políticos, ora são apenas designados pelo termo genérico de “comentadores”. O que eles parecem todos ser é “especialistas” da matéria que aflige Portugal e arredores, única razão que vislumbro para que sejam consultados tão ávida e assiduamente. Peço a vossa licença, não obstante, para duvidar… metodicamente.

Façamos uma pequena comparação. Quando temos uma chatice com o carro, mais vale ir a uma garagem e depositar a nossa confiança nos conhecimentos técnicos do mecânico. Temos boas razões para acreditar que ele percebe a natureza do problema e pode facilmente reparar a avaria ou aconselhar-nos a adquirir um automóvel que se pareça menos com um achado arqueológico. O mecânico automóvel é, em geral, um especialista. Ou seja, conhece o sistema de peças e os modos como estas devem ligar-se entre si para que o veículo possa circular em boas condições. Dado o estado das peças individuais e do conjunto do sistema, o mecânico competente pode prever com relativa facilidade o que é passível de ocorrer uns quilómetros mais adiante e até fazer uma estimativa credível sobre a vida útil da viatura, dado um tipo de uso médio e salvo qualquer acidente ou imprevisto de outra natureza. A estimativa baseia-se no conhecimento da mecânica do veículo e da interação deste com os contextos rodoviários típicos para os quais foi concebido, bem como numa quantidade representativa de comportamentos de exemplares semelhantes do mesmo modelo e marca. Dadas essas condições, a previsão do especialista é mesmo bastante fiável.   

À semelhança do carro do parágrafo anterior, o calhambeque a que chamamos Portugal (não sou eu quem está sempre a dizer que o país tem cerca de nove séculos), também está com certos e determinados problemas de circulação. De circulação de dinheiro, neste caso. Os bancos não emprestam, o estado confisca, as pessoas não gastam, os investidores não investem e os desempregados circulam lentamente nas filas dos centros de emprego para esmolar a caridade contrafeita do piedoso cristão da segurança social (ainda por cima, deve ser terrível para a circulação sanguínea, sobretudo para quem sofra de varizes). Logicamente, chama-se quem sabe da matéria. E qual é a diferença entre um mecânico e um economista que faz “projeções”, ou um politólogo que “antecipa cenários”? O primeiro sabe do que fala, os segundos ocupam tempo de antena e gastam oxigénio.

Nassim Taleb chama à economia, entre outras ciências “moles”, qualquer coisa como uma especialidade sem especialistas (with no experts). Por uma razão simples: ao contrário das ciências em que as coisas são passíveis de quantificação mais ou menos exata e todas as variáveis são conhecidas, a economia não permite fazer previsões a médio e longo prazo com nenhum grau de segurança. Repito e sublinho: o grau de segurança é ZERO. Em matéria de conhecimento do sistema que estuda e do rigor das previsões que esse conhecimento permite, a economia está uns passos atrás da meteorologia, conforme o próprio ex-ministro das finanças, Vítor Gaspar, implicitamente reconheceu, depois de uma referência infeliz à influência dos rigores do inverno sobre o crescimento económico no primeiro trimestre de 2013. E, no entanto, chamam-se os economistas e outros “especialistas”. Deve ser porque a maneira de um economista falar sobre aquilo que não sabe é melhor do que a das outras pessoas. Não, não é por causa da linguagem técnica. Verdade se diga que o jargão da economia é o perfeito exemplo daquilo a que se chama “falácia nominativa” (dar nomes às coisas pode criar a ilusão de que se compreendem). Mas não é apenas por isso, é porque eles falam do que não sabem, mas muitos deles nem sequer sabem que não sabem. Parece que foi um economista famoso e já defunto, John Kenneth Galbraith, quem assim se referiu aos prognosticadores em geral, pelo que suponho que ele seria um dos que sabiam que não sabiam e não estava muito preocupado em fazer amigos.

A realidade económica e política é demasiado fluida e complexa (a globalização tornou-a ainda incrivelmente mais complexa). Mesmo que fosse possível um conhecimento completo dos fatores que estiveram na origem de crises e ciclos negativos passados, bem como daqueles que contribuíram para a sua resolução, isso não seria suficiente para afirmar com qualquer grau de segurança que adotar determinadas políticas bastaria para resolver situações presentes e garantir resultados futuros. Como a nossa situação atual demonstra, os modelos existentes são, no mínimo, um pedacinho imperfeitos, para não dizer que são monstros acéfalos.

Mas há pessoas que supostamente sabem destes assuntos. E sabem umas coisas, naturalmente. O que não podem é saber aquilo que a ciência deles ainda não descobriu. Pensem, por analogia imperfeita, no cancro. Já se sabe bastante sobre uns quantos tipos de cancro e os tratamentos são hoje mais eficazes do que no passado, mas isso não significa que se tenha descoberto a cura do cancro. Um especialista em oncologia que seja responsável prognostica em função dos limites do que efetivamente sabe. Mas nem todos os especialistas são assim e, aparentemente, os das disciplinas em que a insegurança nos prognósticos é maior são os mais atrevidos. A chatice é que ser reconhecido como especialista cria uma maior necessidade de autoilusão quanto à própria competência, que é desse modo elevada acima da competência efetiva, e suscita um reflexo incontrolável para tentar salvar a face, fugindo em frente e ignorando, se necessário for, as evidências (encontra-se uma boa explicação disto mesmo na obra de Daniel Kahneman, um Nobel da Economia que é psicólogo). Esta compulsão para dar respostas quando não é possível saber a resposta certa tem como consequência que os “especialistas” errem tanto ou mais do que a massa bruta dos cidadãos medianamente informados.



A inutilidade prática de dar atenção a supostos especialistas de disciplinas em que o conhecimento do passado e do presente é insuficiente para prever o futuro ficou provada num impressionante estudo levado a cabo por Philip Tetlock, que ao longo de 20 anos pôs à prova as previsões de analistas políticos e economistas. Tetlock entrevistou 284 pessoas profissionalmente remuneradas como consultores ou comentadores em questões de política e economia e pediu-lhes que avaliassem a probabilidade de certas ocorrências num futuro relativamente próximo, quer sobre as áreas do planeta nas quais eram especialistas, quer sobre regiões que conheceriam menos bem. Estes especialistas apenas tinham que dizer se achavam que determinada situação permaneceria inalterada, ou se haveria mais ou menos de uma coisa qualquer, fosse crescimento económico, fosse liberdade política. Perguntou também aos entrevistados como é que chegavam às suas conclusões, como é que avaliavam os dados que não confirmavam as suas opiniões e como é que reagiam quando se provava que estavam enganados. Ao todo, reuniu mais de 80 mil previsões. Os resultados foram aterradores. Os “especialistas” teriam acertado mais vezes se tivessem atribuído o mesmo grau de probabilidade a qualquer dos três cenários possíveis. Confirmou-se também que os maiores especialistas são por vezes os que mais erram, por excesso de confiança nos seus conhecimentos e capacidades. E o mais engraçado de tudo é mesmo a dificuldade de admitirem os erros e a criatividade das justificações encontradas.    

Como se viu recentemente com o caso da demissão de um ministro, que pensou sair pela porta grande, foi acusado de escolher a porta pequena e afinal se encontrou numa porta giratória, nem os mais argutos comentadores foram capazes de prever fecho nem desfecho. Esta não é, certamente, uma ciência certa! Já se o método escolhido para retirar o ministro das Necessidades, em vez da demissão, tivesse sido a defenestração, bastaria um conhecimento elementar de física para estimar que, a uma velocidade uniformemente acelerada, o encontro do grave estadista com o pavimento teria tido consequências realmente irrevogáveis.  



Instantes

1   Diziam, pela calada agonia dos instantes que eram mudos.   Julgavam-nos pela constância infinita das lamentações pelo fôlego breve do pá...