24 novembro, 2014

Neptuno, corrupções e teorias imperfeitas

A corrupção pode encontrar-se como se descobre um planeta invisível. A irregularidade detetada na trajetória orbital de Urano só parecia explicável pela força gravitacional de uma grande massa próxima. Urbain Le Verrier calculou um planeta. O “seu planeta” foi depois avistado por Gottfried Galle, que apontou um telescópio na direção que as tabelas astrais de Le Verrier indicavam. Viria a chamar-se Neptuno. Ninguém antes o tinha visto, mas tinha que estar lá, caso contrário a órbita de Urano não seria explicável segundo as leis de Newton. A riqueza inexplicável de certos cidadãos também faz suspeitar de muita massa em órbita próxima. Falta depois um telescópio que a vislumbre e comprove a gravidade da relação.

A analogia entre a descoberta de Le Verrier e os modos de descobrir a corrupção foi feita por Proust, mas não foi lá que eu a encontrei referida esta semana. Também não foi nos jornais e televisões, ocupados com os escândalos de corrupção do momento, que ameaçam desacreditar de vez o sistema político, mas não vão alterar o que sabemos sobre o sistema solar.
Amedee Charles Henri de Noe (Cham): Caricatura da descoberta de Neptuno, em 'Le Charivari', 1-Jan-1847
Tropecei na analogia, hoje mesmo, no livro de um português do qual não temos que nos envergonhar, o astrofísico Pedro Ferreira, professor da Universidade de Oxford. O seu livro The Perfect Theory, publicado em Portugal pela Presença (o título português transforma o artigo do título em indefinido, Uma Teoria Perfeita), esteve entre os seis finalistas do prémio anual da Royal Society para livros sobre ciência (o Royal Society Winton Prize for Science Books). É uma espécie de “biografia” da Teoria da Relatividade Geral, desde Einstein até aos nossos dias, e é tanto sobre as ideias, como sobre as pessoas que as pensaram: humanas, falíveis e geniais. (Que os leigos não temam, porque não há fórmulas matemáticas para decifrar). 

Falo disto apenas porque são estas histórias que a um tempo me distraem e me tornam mais evidente a vil tristeza que povoa o espaço em volta. Não apenas os escândalos de corrupção com certos vistos e ex-primeiros-ministros, mas as vistas curtas e os interesses ocultos dos que podem mudar ou influenciar a política em geral, e a política de educação e ciência em particular.

Os crânios fertilizados pela monocultura dominante reproduzem em mau português e em pior filosofia a ideia, que acham óbvia, da necessidade de ligação das universidades ao mundo empresarial. Acham eles e elas (foi uma Chica qualquer, deputada esperta, que li por estes dias), que as universidades devem ensinar em função de uma certa procura. Ora, uma universidade que responda exclusivamente a clientes não educa nem cultiva, forma. Forma técnicos. Não é a mesma coisa.  

Esta lógica de mercado imediatista teria inviabilizado Einstein e toda a Física Teórica, desde Isaac Newton a Pedro Ferreira, para não falar do ensino das humanidades e das ciências sociais, com exceção, claro está, da economia das escolas que professam a doutrina vigente e fornecem os técnicos de que o sistema carece para se autojustificar e se ir sustentando. É uma forma de corrupção do ensino e da investigação, que não deveriam ter que ser apenas “aplicados”, deveriam antes procurar saber. A universidade portuguesa pensada pelos “mercadistas” (que o neologismo me seja perdoado) poderia até formar técnicos que fabricassem um telescópio, mas dificilmente daria alguém que encontrasse Neptuno.    

09 novembro, 2014

Tragicomédia com pratos voadores

Há uma enorme tensão dramática num diálogo entre alienados com armas na mão. A tensão é quase sempre sustentada pela ameaça iminente de um desfecho trágico. Nos filmes ou no teatro, esse dramatismo faz parte do prazer que o espetador procura. Na vida real, porém, talvez só alguma perversão explique por que vejo tantas vezes o canal parlamento. 


As cenas de teatro que este canal oferece são bastante repetitivas, mas nem por isso menos assustadoras. Um destes dias, por exemplo, atiravam-se entre as várias bancadas alguns números do orçamento para 2015 – o aumento do IMI, a fiscalidade dita verde, a suposta impossibilidade de baixar o IRS – e vários deputados dos partidos que se acostumaram a governar comportavam-se como se brincassem na praia com preciosos pratos de porcelana chinesa pensando que fossem frisbees. Talvez os pratos, que são a vida de todos nós, e para muitos já são apenas cacos, devessem merecer um pouco mais de cuidado. As erráticas trajetórias dos pratos voadores, nestas discussões, provocam-me sempre uma valente dor de cabeça. Às vezes chega a ser uma espécie de violenta enxaqueca. 


Mas se fechar bem os olhos, espetar um indicador em cada ouvido e esperar 20 ou 30 anos, talvez isto passe. Estou a contar com uma esperança de vida que não subtraia muito dinheiro à segurança social com o pagamento da minha reforma (meramente hipotética, ou até mirífica, eu sei), porque o meu principal papel, enquanto cidadão responsável de um país em permanente estado de carência, é garantir o desafogo orçamental suficiente para que os governos competentemente distribuam os proveitos de uma fiscalidade justa por quem realmente merece e precisa. E são muitos os que aparentemente precisam: cônjuges, filhos, sobrinhos, afilhados, amigos, compadres, correligionários, clientes e respetivas empresas de sucesso; bem como gente bem colocada para beneficiar cônjuges, filhos, sobrinhos, afilhados, amigos, compadres, correligionários, clientes e respetivas empresas de sucesso.

Como isto é tudo gente de bem, com famílias numerosas e amigos que também se reproduzem com alguma desenvoltura, não se pode sequer dizer que os beneficiários da governamental munificência sejam uma minoria negligenciável, nem que os seus interesses não devam merecer o nosso abnegado sacrifício. Espera-se de nós – deficitários na fina astúcia de ser amigos, familiares, correligionários, clientes, ou empreendedores especializados na arte de estabelecer relações nos círculos certos, ou em outras figuras da geometria política partidária privatizada (PPP) – que compreendamos o défice das contas públicas, o problema da dívida externa, o fundo de apoio à banca e o fundo de resolução do BES, funções quadráticas, antimatéria, as profecias do Bandarra e a importância dos brócolos numa dieta saudável. Será pedir muito?


Desconfio que foi o Bandarra quem profetizou este grande império de espíritos tansos e que foram os brócolos que obrigaram milhares de portugueses mais fraquinhos, e menos espirituosos, à emigração. Eu até gosto de brócolos e também gostaria de mudar de estado, mas por este andar, só se for para o estado gasoso. O que não seria improvável se eu fosse um banco. Afinal, conhecemos vários casos de bancos que num dia eram sólidos e no dia seguinte passaram diretamente a gasosos, perdendo aquela parte importante entre os dois estados que é a liquidez, num fenómeno de verdadeira sublimação. 


As cenas do teatro parlamentar não aspiram a nada de sublime. Os atores são quase todos toscos, sejam eles figurões ou figurantes, e muitos são apenas parte do trágico coro canino que dobra a cerviz perante a sombra do dono. O que eles representam percebe-se. Quem eles deviam representar demora a perceber.

Instantes

1   Diziam, pela calada agonia dos instantes que eram mudos.   Julgavam-nos pela constância infinita das lamentações pelo fôlego breve do pá...