A corrupção pode encontrar-se como se descobre um planeta invisível. A irregularidade
detetada na trajetória orbital de Urano só parecia explicável pela força
gravitacional de uma grande massa próxima. Urbain Le Verrier calculou um
planeta. O “seu planeta” foi depois avistado por Gottfried Galle, que apontou
um telescópio na direção que as tabelas astrais de Le Verrier indicavam. Viria
a chamar-se Neptuno. Ninguém antes o tinha visto, mas tinha que estar lá, caso
contrário a órbita de Urano não seria explicável segundo as leis de Newton. A
riqueza inexplicável de certos cidadãos também faz suspeitar de muita massa em
órbita próxima. Falta depois um telescópio que a vislumbre e comprove a gravidade
da relação.
A analogia entre a descoberta de Le Verrier e os modos de descobrir a
corrupção foi feita por Proust, mas não foi lá que eu a encontrei referida esta
semana. Também não foi nos jornais e televisões, ocupados com os escândalos de
corrupção do momento, que ameaçam desacreditar de vez o sistema político, mas
não vão alterar o que sabemos sobre o sistema solar.
Amedee Charles Henri de Noe (Cham): Caricatura da descoberta de Neptuno, em 'Le Charivari', 1-Jan-1847 |
Tropecei na analogia, hoje mesmo, no livro de um português do qual não
temos que nos envergonhar, o astrofísico Pedro Ferreira, professor da
Universidade de Oxford. O seu livro The Perfect Theory, publicado em Portugal pela
Presença (o título português transforma o artigo do título em indefinido, Uma Teoria Perfeita), esteve entre os seis finalistas do prémio anual da Royal
Society para livros sobre ciência (o Royal Society Winton Prize for Science Books). É uma espécie
de “biografia” da Teoria da Relatividade Geral, desde Einstein até aos nossos
dias, e é tanto sobre as ideias, como sobre as pessoas que as pensaram: humanas,
falíveis e geniais. (Que os leigos não temam, porque não há fórmulas matemáticas
para decifrar).
Falo disto apenas porque são estas histórias que a um tempo me distraem e
me tornam mais evidente a vil tristeza que povoa o espaço em volta. Não apenas
os escândalos de corrupção com certos vistos e ex-primeiros-ministros, mas as
vistas curtas e os interesses ocultos dos que podem mudar ou influenciar a
política em geral, e a política de educação e ciência em particular.
Os crânios fertilizados pela monocultura dominante reproduzem em mau
português e em pior filosofia a ideia, que acham óbvia, da necessidade de
ligação das universidades ao mundo empresarial. Acham eles e elas (foi uma Chica
qualquer, deputada esperta, que li por estes dias), que as universidades devem
ensinar em função de uma certa procura. Ora, uma universidade que responda
exclusivamente a clientes não educa nem cultiva, forma. Forma técnicos. Não é a
mesma coisa.
Esta lógica de mercado imediatista teria inviabilizado Einstein e toda a Física Teórica, desde Isaac Newton a Pedro Ferreira, para não falar do ensino das humanidades e das ciências sociais, com exceção, claro está, da economia das escolas que professam a doutrina vigente e fornecem os técnicos de que o sistema carece para se autojustificar e se ir sustentando. É uma forma de corrupção do ensino e da investigação, que não deveriam ter que ser apenas “aplicados”, deveriam antes procurar saber. A universidade portuguesa pensada pelos “mercadistas” (que o neologismo me seja perdoado) poderia até formar técnicos que fabricassem um telescópio, mas dificilmente daria alguém que encontrasse Neptuno.
Esta lógica de mercado imediatista teria inviabilizado Einstein e toda a Física Teórica, desde Isaac Newton a Pedro Ferreira, para não falar do ensino das humanidades e das ciências sociais, com exceção, claro está, da economia das escolas que professam a doutrina vigente e fornecem os técnicos de que o sistema carece para se autojustificar e se ir sustentando. É uma forma de corrupção do ensino e da investigação, que não deveriam ter que ser apenas “aplicados”, deveriam antes procurar saber. A universidade portuguesa pensada pelos “mercadistas” (que o neologismo me seja perdoado) poderia até formar técnicos que fabricassem um telescópio, mas dificilmente daria alguém que encontrasse Neptuno.