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08 dezembro, 2014

A demanda do bêbedo: exercícios de estatística acrobática para as escolas

Os rankings das escolas começaram por me deixar um pouco mais tranquilo, uma vez que provaram, de maneira que julgo irrefutável, que os funcionários do Ministério da Educação têm acesso a computadores e a máquinas de calcular. Depois dos episódios da colocação de professores, havia sobre o assunto um justificado ceticismo, que agora se dissipou. Julgo, contudo, que os referidos recursos informáticos teriam sido mais úteis ao país se os funcionários tivessem passado os últimos meses a jogar Angry Birds ou a ver vídeos de gatinhos no YouTube. Pelo menos teríamos alguns cidadãos descontraídos, em vez de milhares de pais enganados.

Os rankings, ou “ordenações”, não resultam da avaliação de coisa nenhuma, lançam luz sobre o que já estava iluminado e obscurecem aquilo que queriam dar a ver. O problema da aplicação de métodos quantitativos a questões sociais é muitas vezes este mesmo: medem-se as coisas que podem ser medidas, porque é fácil, e ignoram-se as coisas que precisam de ser medidas, porque é impossível, ou pouco prático. Somar as notas dos exames e fazer a média é exercício de crianças, mas ordenar escolas aplicando a algumas (privadas) este único critério e acrescentando à maioria (públicas) ponderações de quantificação mais ou menos impressionista é coisa mais arbitrária do que o peso de um arrátel na Idade Média (quantas décimas vale a média entre 7 pais operários fabris, 3 canalizadores e 8 escriturários?).

Produzem-se então umas tabelas giras, que agradam especialmente aos diretores de colégios privados, e cria-se a ilusão de que se ficou a saber alguma coisa que não se sabia anteriormente. Recorrer a estes critérios e às tabelas ordenadas que resultam da sua aplicação é fazer como o bêbedo que procurava as chaves de casa debaixo do candeeiro da rua, porque tinha mais luz, em vez de ir à procura delas no sítio onde as perdera. A analogia entre a demanda do ébrio cidadão e os erros produzidos por uma investigação pouco avisada é bastante velha e o ministro Nuno Crato, que parece geralmente sóbrio, percebe-a pelo menos 100 vezes melhor do que eu (mas admito a imprecisão da minha matemática).

Comparar resultados de uma escola privada, que leva a exame 100 alunos selecionados, com os de uma escola pública que leva 500 que ninguém escolheu (alguns dos quais nem sequer frequentaram a dita) é, no mínimo, enganador quanto à qualidade dos estabelecimentos. Assim, os rankings das escolas parecem apenas mais uma modalidade do desporto radical que muitos políticos praticam: a estatística acrobática. Há alguns que dominam perfeitamente o mortal à retaguarda com pirueta e outros que apenas se espalham ao comprido e ficam convencidos de que caíram em pé. Mas não faz grande mal, porque há sempre bastantes eleitores que se deixam enganar e até uns quantos que gostam de ser enganados.  


O senhor ministro acha fundamental que os pais tenham informação sobre as escolas nas quais poderiam inscrever os filhos. Eu também acho, mas a informação que ele disponibiliza só seria útil se estivessem reunidas duas condições. Primeira: que as “ordenações” fossem mais do que a mistura de um conjunto de médias aritméticas obtidas de maneiras diferentes (comparar a média dos nabos com a média das abóboras resulta numa sopa turva). Segunda: que fosse possível ir comprar a escola ao supermercado mais próximo, ou teletransportar as crianças todos os dias para qualquer escola do país.

E afinal, quando a medida se transforma na meta, deixa de ser uma boa medida. É quase inevitável, se a avaliação prevalece sobre o ensino e tende a discriminar arbitrariamente, que a pressão exercida sobre as escolas para melhorarem a sua posição nas tabelas leve à manipulação, ainda que benigna e bem-intencionada, dos fatores que contribuem para a formação das médias. A doce ilusão de rigor que os números facilmente produzem serve assim, pelo menos, para embalar o sono dos inocentes e para dar mais uma inocente facadinha no sistema público de ensino. Quem ganha com estas contas? E quem conta mais para quem tais histórias conta?

29 outubro, 2014

Uma conspiração de asnos


O professor mais desejado do mundo, colocado em 104 escolas sem ser já candidato a nenhuma, deveria também ser candidato ao Livro Guinness de Recordes, mesmo contra a sua vontade e vencendo a distância insular do estabelecimento de ensino que se antecipou aos rigorosos métodos continentais de colocação de docentes. Sempre seria mais original do que as habituais entradas portuguesas no prestigiado repositório das ideias mais parvas e imbatível tomo do conhecimento inútil. Quase sempre, as candidaturas portuguesas consistem em cozinhar algo estupidamente grande: a maior caldeirada de peixe, a maior feijoada, a maior empada de atum de lata, o maior arroz de atilhos… e assim por diante, até ao empanturramento final.

Se não quiserem desviar-se excessivamente do motivo gastronómico, podem sempre dizer que se trata da maior “salsicha educativa” do mundo, medida ao vivo nas televisões pelo próprio primeiro-ministro. Ninguém percebeu ainda o que seria a dita salsicha, nem qual a receita que o chefe de governo teria em mente, mas existem fundadas suspeitas de que alguém terá mesmo tentado cozinhar coisa bastante insólita: fosse um ministro em lume brando, ou a escola pública em banho-maria, fosse um secretário de estado flambé ou um diretor geral confitado. Na mais conservadora das teorias da conspiração que por aí circulam, fontes geralmente sóbrias afiançam como muito provável que um agente infiltrado, ao serviço de interesses obscuros, terá concebido um churrasco informático de dantescas proporções para atingir um qualquer objetivo.

O suposto objetivo parece tão vago, ou tão absurdamente incoerente, como a política de educação do ainda ministro Crato e há até quem sugira que são parte da mesma coisa, o que já me parece francamente confuso. Confuso, mas não mais improvável do que a incompetência épica de alguém que não consegue subtrair o nome de um professor de uma lista. Um professor entre muitos, porque houve bastantes competidores involuntários a este recorde da asneira.

Como nenhum dos cozinheiros deste pantagruélico deboche dá um passo em frente e admite a sua incompetência para as funções que desempenha, resta-nos concluir que se trata de uma culpa coletiva e que o ministério da educação está entregue a uma confederação de asnos.      

11 outubro, 2014

Manual de esclarificação

Um professor é colocado em 75 escolas simultanemente (não é gralha, nem hipérbole, vinha no jornal). Pequenino problema. Mas como, estupidamente, a lei não permite a acumulação dos 75 postos de trabalho (privilégio reservado a geniais admistradores de empresas e a imparciais deputados juristas) e o docente também não invocou o direito ao uso do dom da ubiquidade (por coincidência, um direito apenas reconhecido a geniais administradores de empresas e a imparciais deputados juristas), apenas uma vaga ficará preenchida. Ficaria, porque aparentemente o dito professor já desistira do concurso, tendo mais do que uma vez informado a tutela, por ter encontrado emprego numa das ilhas atlânticas.

Pequeno problema? Nem por isso. Escolas e alunos terão simplesmente que aguardar por novo “procedimento concursal”, que usará seguramente as regras do anterior e deverá, portanto, permitir um “normal arranque do ano letivo”, após decreto governamental a declarar que o ano letivo, oficialmente, não começa antes da Páscoa de 2015 (ou 2016, porque um ano é apenas de 1,25% do tempo de vida de alguém que chegue aos 80 e, portanto, tem pouco significado).

Estes soluços de setembro/outubro foram a melhor coisa que poderia ter acontecido aos alunos das escolas bafejadas com os efeitos da implosão programada do ministério. Finalmente regressou a exigência do ensino há tantas décadas perdida e as crianças vão poder adquirir de novo as competências essenciais à sobrevivência numa sociedade ferozmente competitiva (principalmente se a competição for por subsídios do Fundo Social Europeu destinados a tecnotretas ou ONGs espertinhas): como evitar um murro nos queixos; como pregar uma rasteira ao puto dos óculos; como rematar uma bola contra as janelas da sala de professores; como pular o muro da escola para ir charrar na esquina do McDonald's; como forjar a assinatura do encarregado de educação; como escrever uma cábula nas coxas para os testes mesmo difíceis; como ensinar a mãe a parecer adolescente outra vez para ir fazer os exames nacionais com o BI da filha. Enfim, apenas alguns exemplos do currículo quase infinito deste curso nuclear da verdadeira escola que o ministério, sábia e corajosamente, mas perante a incompreensão quase generalizada, em boa hora decidiu pôr em prática.  
   
Já antes disto, o ministro felizmente matemático, cujo ministério criara uma fórmula de cálculo para ordenação de professores que somava os resultados da primeira liga de futebol com resmas de fraldas descartáveis e dividia por dois, parecera ligeiramente surpreendido com o facto de os resultados serem um nadinha absurdos. Igualmente apanhado à traição pelo facto de ter havido casos de dois professores colocados numa única vaga, o ministro felizmente versado na morfologia e semântica do idioma materno, apareceu contrito e, como penitência, desatou a conjugar o verbo manter, procurando manter a compostura.

Depois de tudo devidamente “esclarificado”, o ministério procederá às compensações devidas aos professores afetados. Segundo fonte próxima do ministro (ou segundo um residente em Fonte Boa dos Nabos, no concelho de Mafra, que também é relativamente próximo), o ministério prepara-se para oferecer uma caravana com lugar para quatro pessoas a todos os professores em “mobilidade” que andem a caminho das escolas onde podem, poderão, ou poderiam ficar colocados. Os ditos atrelados serão ainda equipados com computador portátil e ligação móvel à internet, por forma a permitir que os docentes sujeitos aos “procedimentos concursais” à la minuta estejam permanentemente ligados às plataformas do sítio do ministério e, mediante uma divisão de trabalho por turnos com o cônjuge desempregado e um ou dois filhos em idade escolar (e sem professor nas escolas respetivas), possam preencher os formulários e aceitar colocações.

Professora em mobilidade vintage

Este regime facilitado de itinerância resolve vários problemas de uma vez só (a começar pelos da empresa fornecedora das caravanas, que se encontrava em processo de insolvência) mas principalmente o problema de habitação dos professores que habitualmente se viam obrigados e arrendar quartos ou apartamentos, pagando as respetivas cauções, após aceitarem horários numa escola da qual poderiam ser despedidos 48 horas depois, não obstante garantias de que lá ficariam, apesar de não haver para eles horário nenhum. Dividir turmas de 30 alunos em duas estaria fora de cogitação, uma vez que violaria uma média aritmética gira e conduziria inevitavelmente à obesidade do corpo docente por falta de exercício dos membros inferiores e das cordas vocais. Além disso, com turmas de 15 alunos corria-se o risco de poder mesmo dar aulas práticas de línguas ou de ciências, o que era capaz de desgastar desnecessariamente o material e é contrário às melhores práticas dos liceus nacionais das décadas em que vivem os nossos visionários caranguejos.

Engraçado mesmo é que não ouvi piar muitos dos passarinhos que no ano passado cairam dos seus poleiros morais em voo picado sobre os professores em greve que tanto mal faziam às criancinhas inocentes.   

Instantes

1   Diziam, pela calada agonia dos instantes que eram mudos.   Julgavam-nos pela constância infinita das lamentações pelo fôlego breve do pá...