Sabem qual é a melhor maneira de governar o país? Eu não sei, mas quanto
mais é o pouco que sei, mais me surpreende a segurança dos que presumem saber.
Quem conseguisse ouvir, de orelhas limpas, o que dizem políticos e
comentadores, de todos os orientes ideológicos, deveria ficar confuso. Admitindo
a possibilidade de alguém ser objetivo ao ponto de não deixar nenhum
preconceito afetar o seu juízo, a variedade de soluções governativas incompatíveis
que cobrem o céu e encobrem o sol conferiria a todos o direito à perplexidade e
à ignorância. Contra lógica e razão, porém, há demasiada gente que parece nunca
ter dúvidas quanto aos benefícios desta política, ou aos malefícios daqueloutra.
Na verdade, só não fica toda a gente de olhos trocados perante discórdias e
dislates, porque todos temos um filtro automático, que deixa facilmente penetrar
no crânio aquilo que nos agrada e que rejeita, ou aceita com muita dificuldade,
tudo o que ameace levantar o pó das ideias recebidas. É compreensível, mas é
forte pena, porque significa que o nosso nível de exigência com programas
políticos é demasiado baixo e se resume, em geral, a cair para o lado da cama
em que dormimos melhor. No fundo, esperamos apenas que nos ofereçam o conforto
das opiniões para as quais o contexto social que habitamos nos moldou e os
nossos interesses nos empurram. Ninguém pense que é imune a este tipo de
preconceito. Mudar de ideias, e sobretudo ser persuadido a mudar de ideias
pelos argumentos de alguém que não nos seja próximo e estimado, é mais difícil
do que mudar as pintas do leopardo.
Esta predisposição natural é o que explica convicções ideológicas que não
passam daquilo a que me apetece chamar uma “doença mimética degenerativa”. Ou
seja, tendemos a reproduzir inconscientemente, mas com crescente grau de
imperfeição relativamente ao modelo original, coisas que no seu tempo não
passaram de boas hipóteses explicativas para realidades outras, mas que
continuamos a aceitar como se fossem os equivalentes políticos e económicos da
lei da gravidade: coisas universais e imutáveis. Só que não pode haver duas
leis da gravidade! Segundo as leis da física, as coisas caem todas na mesma
direção e não é provável que se ouça alguém defender acaloradamente opinião
contrária, a não ser, talvez, num manicómio.
Não sendo possível provar que todos os políticos, economistas e
comentadores sejam loucos ou desonestos (não vale fazer piadas fáceis),
conclui-se das suas divergências que, no conhecimento das sociedades e no
governo das nações, as leis são menos evidentes do que nas ciências em que se
podem fazer demonstrações experimentais e matemáticas. Nas ciências sociais, das
três, uma: ou ainda não se encontrou uma lei da gravidade, ou a sua
demonstração está por fazer, ou, simplesmente, ela não existe. Eu sei qual das
três hipóteses me parece a mais provável, mas deixo que os leitores façam as
suas próprias escolhas.
Como não se espera que um político, muito menos um político que ocupa ou se
candidata a um cargo executivo, exprima dúvidas e responda “não sei”, os países
são governados com base em convicções que só podem ser, na melhor das
hipóteses, “ideológicas” e, nos casos piores, a defesa de interesses instalados
mais ou menos óbvios. Dando de barato a indecência desta segunda hipótese, é
interessante saber como se formam as ideologias da primeira. De onde se retiram
as certezas quanto à justeza (já não digo à “verdade”) do que se pensa? Como os
políticos não são feitos de matéria diferente do resto dos humanos, na falta de
conhecimento seguro, usam os mesmos filtros automáticos, lugares comuns e
ideias “mimeticamente degeneradas” a que quase toda a gente recorre
quotidianamente.
Os políticos que hoje estão em exercício, em Portugal e em muitos outros
países, não revelam maior espessura intelectual do que um filete de cavala, e a
linguagem que utilizam trai a origem das suas poucas ideias. Aqueles que agora nos governam pertencem, alguns
sem o saberem, ao “clube dos austríacos mortos”, que continua a dominar o
pensamento dos que acreditam que se descobriu uma fórmula político-económica
para o melhor governo das sociedades apenas porque ficaram demonstrados o
fracasso e os crimes dos regimes comunistas, mas em que o próprio conceito de sociedade
é enfraquecido pelo individualismo que constitui o núcleo da doutrina. Na
famosas palavras de Thatcher: “There is
no such thing as society. There are individual
men and women, and there are families.” (Não há sociedade. Há homens e mulheres individuais e há famílias.)
No livro Ill Fares the Land (2010), o historiador Tony Judt traçou
sumariamente a descendência intelectual das ideias dominantes que desde a década
de oitenta fizeram marcha atrás nas reformas sociais do período posterior à 2ª
Guerra Mundial. Se a origem próxima da fé cega nas virtudes do mercado, mais ou menos
desregulado, e do suposto imperativo de reduzir o papel do estado à
insignificância, está nos chamados “rapazes de Chicago”, a doutrina destes é já
uma degenerescência de ideias anteriores, nascidas num contexto político e
social bem diferente daquele em que vivemos hoje.
F. A. Hayek e Ludwig von Mises. |
Mas o problema não está nas ideias de Friedrich
Hayek ou Ludwig von Mises, que inspiraram a doutrina do mercado livre da “Escola
de Chicago”, nem na ideia de “destruição criativa” do capitalismo de Joseph
Schumpeter, muito menos na “sociedade aberta” de Karl Popper, ou até nos métodos
de gestão de Peter Drucker. A Áustria em que todos eles nasceram, viveram e da qual
todos eles escaparam, entre o crepúsculo do império Austro-Húngaro e as convulsões
políticas e económicas que se prolongaram até ao fim da Guerra Fria, sob a
ameaça permanente e sucessiva de regimes opressivos e sanguinários movidos por
ideologias arregimentadoras e coletivizantes, pode explicar em boa parte o seu excessivo
individualismo e a resistência a conceitos e categorias que lhes recordassem
tribulações passadas. Compreensível instinto, e uma defesa contra extremos
indesejáveis, mas que exige contextualização e distância crítica, que nos
protejam hoje de outros dogmatismos, receituários simplistas, ou “ideias
mimeticamente degeneradas”.
Traduzo aqui algumas palavras de Tony Judt:
“(…) quando recapitulamos os clichés convencionais sobre
mercados livres e liberdades ocidentais, estamos de facto a fazer eco – como luz
de uma estrela que empalidece – de um debate inspirado e ocorrido há setenta
anos, entre homens na sua maioria nascidos em finais do século XIX. É verdade
que os termos económicos em que somos levados a pensar hoje em dia não são
geralmente associados a estas distantes divergências e experiências políticas. A
maioria dos estudantes de pós-graduações em gestão nunca ouviram falar de
alguns destes exóticos pensadores estrangeiros e não são encorajados a lê-los.
E no entanto, sem um entendimento das origens austríacas da sua (e da nossa) maneira
de pensar, é como se falássemos uma língua que não compreendemos inteiramente.”
E vamos continuar a falar. E a ouvir. E a não compreender muito bem aquilo
que dizemos ou ouvimos. Mas nem por isso duvidando o suficiente. Duvidamos dos
políticos e, no entanto, vamos caucionando as políticas. Só porque precisamos de
acordar amanhã e de acreditar que é outro dia, mas sem sabermos bem o que nos dizem, ou o que aquilo que nos dizem quer dizer.