O meu escritório é muito dado à ocorrência de um fenómeno que,
aparentemente, só os japoneses nomearam. Chama-se tsundoku. Se tsunami,
palavra igualmente japonesa mas já universalizada, designa um fenómeno natural
de consequências geralmente catastróficas, tsundoku
designa um fenómeno, digamos, cultural, que consiste na acumulação mais ou
menos desordenada – em pilhas, pirâmides ou torres de pisa – de livros que se
adquiriram e continuam ainda por ler (o “ainda” é uma manifestação de obstinada
resistência da minha parte ao derrotismo que os mais espessos volumes ou impenetráveis
temas e autores podem induzir).
Pode haver quem, um pouco levianamente, chame “caos” a esta simples falta
de arrumação. Mas é uma aceção fraca da palavra caos. Neste sentido corrente e
desvalorizado, caos é uma coisa má e que se resolve de maneira simples: ou se
tira uma semana de férias e se arruma tudo alfabética e tematicamente nas
prateleiras (se ainda houver nelas espaço para estes novos refugiados da guerra
do indivíduo contra a finitude do tempo), ou se chama a D. Adosinda para lhe
chegar um fósforo e acender um biblioclasmo privado, assim consumindo, numa
estúpida solução final, qualquer ideia que me pudesse amanhecer no entreabrir
de uma negligenciada janela impressa. A simplicidade da solução ignora a maravilhosa
complexidade do problema.
“Complexidade” é outro termo, aliás parente científico do conceito de caos
(e que as pessoas usam também de uma maneira que pouco ou nada quer dizer) que
explica melhor as propriedades emergentes de uma pilha de livros na sua
potencial interação com uns neurónios acesos. Na aceção que significa alguma
coisa de jeito, “complexo” não quer dizer complicado, nem difícil, nem
simplesmente designa um sistema com muitos elementos. No sentido corrente – o
sentido simples de complexidade, um quase paradoxo engraçado – para perceber um
problema basta dividi-lo nas partes que o constituem, analisar cada uma delas e
juntá-las todas outra vez. Chama-se a esse método “reducionismo” e o seu
sucesso pressupõe que o todo seja igual à soma das partes. O motor de um
automóvel é um bom exemplo destes sistemas simples, redutíveis à soma das partes
(o que não quer dizer que não seja impenetrável para pessoas como eu).
Muita ciência opera, com assinalável sucesso, segundo esse princípio
metodológico. Mas num sistema realmente complexo, que também é designado como dinâmico
e adaptativo – o que quer dizer que muda pelo facto de ser “composto de mudança”,
sem que agente algum controle o sentido dessa mesma mudança – o todo não é
igual à soma das partes. Ou seja, não é possível, em rigor, prever o resultado das
carambolas de bilhar dos muitos elementos que o compõem. Imaginem uma mesa de
bilhar com 20 bolas em movimento e pensem o que seria calcular a trajetória de
cada uma delas ao longo de uma simples meia dúzia de choques. Não é muito difícil,
é bem mais parecido com “muito impossível”.
As propriedades destes sistemas dizem-se “emergentes” porque são o
resultado das “iterações” dos mesmos pela “interação” das partes que os compõem
e são algo que não existia anteriormente. A rede complexa de nódulos e ligações
atualiza-se e transforma-se a cada instante (as células de um organismo, por
exemplo), numa espécie de imponderabilidade quântica em que tudo é
probabilístico, mas o grau provável de confiança em qualquer previsão pode ser como
jogar numa fantástica lotaria.
A cada instante, ainda que impercetivelmente, um sistema complexo é,
portanto, uma coisa nova, aparentada com o seu estado anterior – como a nossa
cara pela manhã se parece geralmente com a cara da véspera, salvo qualquer
erupção cutânea ou ressaca violenta – mas já irreversivelmente outra. Por isso
as ideias de que a história se repete, ou de que o país não muda, são por vezes
perigosas literalizações de simples figuras de estilo. É certo que tem graça
identificar o parentesco entre o comendador Acácio e uns quantos traseiros parlamentarmente
assentados, mas convém não esquecer que até as moscas e as suas preferências
gastronómicas evoluem por seleção natural.
Os sistemas complexos/dinâmicos/adaptativos são uma das fronteiras da
ciência moderna. Quando se diz que os meteorologistas se enganam muito, ou que
os arquitetos urbanistas de hoje são piores do que os romanos, ou que os
psicólogos e sociólogos não servem para nada, é porque não se percebe que os
problemas que estes enfrentam são desta espécie de complexidade (desconfio que
alguns deles também não percebem, mas isso é outro problema). Quem não conviva prudentemente
com o grau de incerteza próprio de sistemas biológicos, sociais e ecológicos
(três caixinhas chinesas a contar de baixo), está mais ou menos condenado a
pensar como o dr. Marinho e Pinto, economistas das Neves e analistas Lourenços,
ou os ouriços-cacheiros de Isaiah Berlin (pensadores de uma única ideia à qual
reduzem, ou reconduzem, todo o universo e arredores).
O que me traz de volta ao fascinante tsundoku
que me rodeia. Neste meu pequeno sistema complexo, em que livros se encontram
por aparente acidente, nunca se sabe bem o livro que se segue. Não sei o livro
que vou ler a seguir; não sei se a seguir vou ler mais do que um livro; não sei
sequer se a seguir me apetece ler qualquer destes livros (o carteiro continua a
entregar encomendas e as livrarias ainda não fecharam); não sei o que algum
destes livros poderá mudar na arrumação do meu sótão de neurónios e sinapses… Só
sei que não vou arrumar nada hoje. E isso é bom.