A exaltação com o acordo ortográfico, que há muito deveria ter entrado em
vigor em todos os países de língua oficial portuguesa, mas não entrou, parece
uma interminável tempestade em copo de aguardente. Mas não é apenas a falta de sobriedade
que caracteriza o argumentário expendido, sobretudo pelos rezingões que passiva
ou ativamente resistem à adoção do perigoso documento. A qualidade intelectual
e científica da discussão deverá ficar para a história da cultura portuguesa como
o equivalente contemporâneo dos debates teológicos medievais sobre o número de
anjos que poderiam dançar na cabeça de um alfinete.
Fez-se o acordo em nome de uma uniformização que favoreceria a compreensão
mútua e fortaleceria a posição do português enquanto língua internacional. Ora,
para os falantes de qualquer das variedades, a ortografia era um inimigo tão terrível
como um exército de liliputianos armados com ovos de codorniz. Já do ponto de
vista de qualquer estrangeiro que não conheça a língua em grande profundidade,
as mudanças não serão mais visíveis do que uma caganita de mosca no fundo de um
poço às escuras. Alguém ia ficar ofendido com a presença de uma consoante muda
aqui ou ali? (“Minha senhora, não se incomode, assim calada até gostamos mais
de a ouvir”). E alguém vai agora dar pela sua falta? Só se tiverem muito pouco
que fazer, preocupações bem mesquinhas ou uma visão muito distorcida da
importância fonética de um vestígio etimológico.
Para ser breve, faço apenas uma quase lista das principais razões por que
acho o acordo inútil, mas inofensivo. Não há convergência entre variedades de
uma língua se não houver contacto entre elas. O tipo e a frequência do contacto
são também fatores determinantes. Em situações de contacto, há sempre uma
variedade dominante, mas a convergência entre as variedades em contacto não
significa uniformização. Essa convergência parcial ocorre naturalmente na
pronúncia (por neutralização de traços mais marcados) e ainda no léxico e,
talvez em menor grau, na gramática. A ortografia só seria um obstáculo se as
diferenças fossem impeditivas da compreensão dos textos. Portanto, apenas na
comunicação escrita. Ora, essas diferenças nunca antes impediram que em português
nos entendêssemos, nem deixariam de o fazer simplesmente em virtude do acordo,
que consente ainda bastante variação.
As diferenças lexicogramaticais são bem mais significativas e potencial, ou
pontualmente, impeditivas da comunicação. Isto porque são também diferenças de
significantes e é para produzir significados que falamos e escrevemos. Ora, como
as questões lexicogramaticais não podem ser objeto de legislação avulsa, e
resistem mesmo à codificação em gramáticas prescritivas – que por cá se insiste
em fazer, sem cuidar de exaustivamente descrever a língua que efetivamente
falamos – acordos ortográficos são meros exercícios de impotência perante um
fenómeno natural, uma espécie de dique de papel contra um tsunami. As reações a
esse arranjo meramente decorativo, por seu lado, sobretudo as dos prolixos
abencerragens que habitam a filologia do século XIX, atingem proporções de um absurdo
quixotesco. Bastaria ler com alguma atenção as reações a anteriores reformas e
acordos para se perceber a triste figura que estes cavaleiros ranzinzas hoje fazem.
Vá lá, descontraiam!
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