O verão vai quente e o cérebro lento, pelo que até as
notícias mais importantes podem levar algumas semanas a desbravar a curta distância
entre os sentidos e a consciência. Eu até vejo, ouço e leio, mas abate-se-me
sobre o crâneo tal canícula, percorre-me o corpo um torpor tal, que muitas das
coisas que deveriam realmente interessar-me são levadas pela maré antes de o
gelo da caipirinha derreter. Mas cedo ou tarde, ébrio ou sóbrio, vou-me dando
conta das momentosas ocorrências que engordam os títulos dos jornais e agitam o
estio dos portugueses.
Só agora me amanheceu, por exemplo, a felicidade arenosa em
que o país se rebola desde princípios de julho. De repente, parece que há
portugueses a ganhar imensas coisas improváveis e eu nem tinha dado conta dos
alvores do quinto império. Que faz bem à alma ver o mérito de alguém recompensado,
não tenho dúvida. Então quando uma pessoa dedica uma vida inteira a aperfeiçoar
qualidades, a aprofundar conhecimentos e atinge depois os cumes da fama e do
proveito, ou simplesmente conquista o respeito daqueles que sabem apreciar o
seu talento, temos direito a ficar um bocadinho mais felizes e a sentir quase
restaurada a nossa fé na humanidade. Mesmo que a recompensa mais alta de uma
carreira pareça modesta, o que verdadeiramente importa é que as aptidões de
cada um sejam premiadas. Já de quinto império, se me dão licença, só depois da
quinta imperial.
Mas esqueçam por instantes os desportistas, e até os
escritores e os artistas, ou mesmo os cientistas, e todas as taças, medalhas e
prémios internacionais com que se vai enchendo a arca do tesouro da mitologia
nacional. Reservem uns momentos deste vosso verão azul, uns centímetros cúbicos
do vossos corações vermelhos para, se quiserem até com orgulho patriótico, porem
bem os olhos no modesto português que inesperadamente foi projetado para as
elevadas funções de… porteiro. Digo bem, porteiro. Parece pouco. Porém, culminando
uma carreira de abnegado serviço público, na qual pôs o interesse nacional
acima de ambições egoístas e interesses mundanos, o nosso compatriota José
Manuel foi agora reconhecido, exclusivamente, pelo enorme talento que
aparentemente possui para “abrir portas” (nas palavras de um investigador da
matéria citado em publicação hebdomadária).
Pensem só no grau de especialização que não deve ser
necessário para que, ao fim de décadas de denodo, alguém saiba fazer
supremamente bem apenas uma das duas coisas que habitualmente se fazem com as
portas. Ainda por cima, o José Manuel vai abrir portas numa instituição à qual o
mundo inteiro deve estar grato pela revolução que operou nas vidas de milhões
de pessoas e de dúzias de países, que descobriram finalmente as vantagens do
despojamento material. A Goldman Sachs é o verdadeiro farol da conduta moral e
não canoniza os virtuosos com tanta facilidade como a Santa Sé. E o José Manuel
é um santo homem.
Os invejosos dirão que aquilo que o José Manuel vai fazer
não é bem abrir portas, mas segurar portas abertas, talvez por causa das
correntes de ar. Para isso, insistem os maledicentes, bastava usar aquela
espécie de calço que se entala entre a porta e o soalho. Francamente, não sei se
vejo o José Manuel a baixar-se para meter cunhas.
Eu sei que há ainda as portas que Portas abriu, e as
portinholas abertas por uns enérgicos e energéticos secretários de estado
socialistas, mas vai longa a prosa e alto o sol. O país continua lindo, mas
ainda não chegámos ao Brasil.