22 maio, 2014

Eurovisões

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Para a maioria dos portugueses, não há muita diferença entre votar nas eleições para o Parlamento Europeu ou no Festival da Eurovisão. A grande diferença é que, num dos casos, a votação é precedida de música. Obviamente, refiro-me à campanha eleitoral.

2
Não sei quantas pessoas elogiaram a qualidade das listas dos maiores partidos. Devem ser listas de pijama, porque me dão muito sono.

3
Uma vez que perto de um terço dos eleitores sondados manifesta ainda a intenção de votar nos partidos que transformaram a caixa de aposentações numa caixa de esmolas e os funcionários públicos em vaquinhas leiteiras para dar de mamar a outros, o suicídio começa a parecer-me uma alternativa menos negra e uma carreira de bombista oferece um futuro mais promissor e um cinto menos apertado.

Curso do Instituto de Emprego e Formação Profissional

4
O candidato a Presidente da Comissão Europeia apoiado pelos partidos do governo acha que as pessoas são tão importantes como o feijão de lata Continente, o papel higiénico Renova, ou as loiças de Valadares. Ainda não cheira mal?    

5
Assis tem justificação para a pobreza do seu discurso europeu. É franciscano. Mas é o Rangel quem anda a comer como um passarinho e entrou em dieta rigorosa de ideias próprias (alguma vez teve?).  

08 maio, 2014

Enfiar a cachaça na veia: brevíssimo tratado sobre os perigos da erosão semântica

Já todos fizemos aquela experiência, um pouco infantil, que consiste em repetir a mesma palavra muitas vezes, até termos a sensação de que ela não faz sentido algum, de que não passa de um conjunto de sons arbitrariamente reunidos. Pois bem, se não é essa a sensação que os portugueses têm quando ouvem palavras e expressões como “ajustamento”, “despesa do estado”, “défice orçamental”, “crescimento”, “recessão”, “espiral recessiva”, “austeridade”, “regresso aos mercados”, “saída limpa”, “estado social”… Se não é essa a sensação que têm até quando ouvem dizer “esquerda” e “direita”, então é porque andam muito distraídos, ou podem estar a marchar, como regimento de soldados cegos, para a trincheira onde os conduza a voz da autoridade à qual escolheram obedecer. Pode até parecer que ali ao fundo há um jardim, mas é mais provável que exale um fedor de fim.


A repetição mecânica e preguiçosa de conceitos sujeita as palavras que os sustentam a um processo de erosão semântica que é tanto mais acelerado quanto maior é o número de pessoas que acefalamente as usam. Ao passarem de boca em boca, gastas pela saliva de políticos de aviário, porta-vozes oficiosos, comentadores incontinentes e cidadãos incautos, as palavras comportam-se como calhaus cujas arestas vão perdendo definição. A contundência da primeira pedrada, aquele momento original em que o vocábulo, à força de querer dizer qualquer coisa, poderia abrir uma janela onde ela antes não existia (ou, quem sabe, até uma cabeça), esse poder de operar na renitente espessura da realidade uma incisão que deixe penetrar alguma luz sobre a noite opaca da ignorância, dissipa-se progressivamente no rotundo de gordas frases e na moleza de arremessos verbais que tanto caem no banco, como na serradura, carpinteirando apitos para caçar patos. Até que, por fim, a rocha não passa de areia, que se atira aos olhos de quem não quer ver e suporta bem a reiteração de mentiras sobre maleitas e mezinhas. A familiaridade dos bordões pode dar algum conforto aos supersticiosos; os repetidos refrões podem até embalar os tolos, mas eu, enquanto música de fundo, aprecio pouco, e como sucedâneo de pensamento político, prefiro margarina sem sal. Escorrega melhor e não faz tanto mal. Se o absurdo não liberta (como diria Camus), pelo menos alivia (diria eu).

Mas se há palavras e expressões cujo uso frequente decorre de fatores estreitamente conjunturais, e que rapidamente voltarão à sua vidinha nas notas de rodapé e apêndices de relatórios e contas, sem que daí decorra prejuízo para o erário público ou para a saúde do corpo social, outras há que – submetidas à usura do expediente político e das mais piedosas intenções – quando esvaziadas de sentido, fazem esquecer a razão pela qual as pessoas se organizam em grupos e em estados e tornam a ideia de regressar ao estado natural para caçar o almoço e reduzir o número de concorrentes comensais um pouco menos repelente. Se o medo assalta as pessoas sob a forma de qualquer insegurança, a revolta é compreensível e a lei uma mula.

Se continuarem a dizer “desigualdade” e “pobreza” como se elas não fossem mais do que borbulhas irritantes no rosto da crise que passa, arriscam-se a não perceber que a doença é funda, vem de muito longe, se tem agravado nos últimos 30 anos e não se trata com cuidados paliativos. Não perceberam ainda que há uma “selva” em “capitalismo selvagem” e que segundo a “lei da selva” todos fazem parte da cadeia alimentar, mas a maioria acaba no sistema digestivo do predador mais forte?

Segundo Hobbes (que selvaticamente traduzo), o “estado natural”, caso não existisse uma comunidade política (uma sociedade organizada), “não deixaria lugar para produzir nada, porque os frutos da produção seriam incertos. Consequentemente, não valeria a pena cultivar a terra, nem navegar, nem haveria utilidade para as mercadorias importadas, nem construção de espaçosos edifícios, nem máquinas para transportar ou remover coisas pesadas, nem conhecimento do mundo, nem maneiras de medir o tempo, nem artes, nem letras, nem sociedade e, o pior de tudo, haveria medo constante e perigo de morte violenta, e a vida das pessoas seria solitária, embrutecida e curta.”

Se não há aqui nada reminiscente da abdicação voluntária de educação, saúde e justiça – oferecidas a todos em condições de real igualdade – camuflada pela erosão semântica da expressão “estado social” que estrategicamente penduraram nas falácias dos défices e das dívidas, é porque há muita gente interessada em “enfiar a cachaça na veia” (a expressão original, que o leitor já gastou também, metia avestruzes e areia e já não dava pedra).       

18 abril, 2014

Uma vida normal, ou o regresso da ovelha que não gosta de rebanhos

Este blogue mudou de nome. Não sei se agora será ainda a mesma coisa. O título original, “Crises e coisas feias”, conduzia os seus temas possíveis à viela estreita em que o país se deixou enfiar, ou no qual acordou encafuado por artes da quadrilha de contabilistas criativos e engenheiros da finança a quem entregou a pasta e o papel. Era um óbvio produto destes tempos difíceis e das erupções cutâneas que os fala-barato me provocam. Num certo sentido, acabava por padecer, por contágio e por contexto, de um dos males que queria diagnosticar: a redução da política a meros “ajustes de contas” – quer em sentido literal, quer figurado – e a redução do mundo e da vida à linguagem da gestão e dos mercados.

Governar, hoje, consiste quase exclusivamente em reduzir o défice (a qualquer preço) e fazer política não é mais do que o arremesso de projéteis avulsos ao telhado do vizinho. É pobrezinho. Na cabeça de demasiada gente, já não vivemos numa economia de mercado, mas numa “sociedade de mercado”, em que tudo se pode comprar e vender – desde os melões, às atenções – e em que tudo tem um preço, mas nada tem grande valor. Viver, assim, não é preciso.

O novo título do blogue, “A agenda do eremita”, sugere a liberdade que uma certa forma de solidão permite. Sem pertencer a nenhuma forma de organização coletiva (ser sócio do ACP não conta!), nem me sentindo especialmente atado por baraços profissionais (sinto-me, na minha corporação, um corpo estranho, ainda que essencialmente inerte), fico desobrigado de seguir o rebanho e dispensado de balir em uníssono na hora da ordenha. Esta ovelha não dá leite. E para o atual peditório já todos demos mais do que a conta. Só não demos os tiros que alguns mereceriam, se a revolução certa se pudesse fazer na rua.


LS Lowry: "Man Lying on a Wall", 1957

E há, certamente, uma revolução a fazer, mas é uma revolução de dar voltas à cabeça, exercício que provoca algumas vertigens. Hei de voltar a essas voltas um dia destes (se entretanto não mudar de ideias), mas a minha vida não é isto. É que, ao contrário do que os escritos anteriores poderiam sugerir, a economia e a política ocupam uma parte bastante pequenina dos meus dias. Aliás, uma das minhas estratégias de sobrevivência consiste mesmo em evitar noticiários, debates e entrevistas sobre o estado de sítio, não vá a coisa passar-me a peçonha e deixar-me a falar (e a pensar?) como os jornalistas da bolsa e dos negócios: “abrindo em baixa”, “em linha com outras praças”, “seguindo no vermelho” ou “encerrando em contra ciclo”. Ah! A pura poesia dos mercados… passados, futuros e derivados!

Este blogue estava a precisar que eu o deixasse ter uma “vida normal”, como todos os portugueses estão a precisar que os deixem ter uma vida normal. Numa vida normal e num país decente, cada um deveria poder dedicar-se à sua atividade cuidando apenas de fazer bem (e de, não podendo ou não sabendo amar, ao menos não fazer mal aos outros). Numa vida normal e num país tolerável, ninguém deveria estar entalado entre as angústias do Sudão e os impostos da Suécia. Numa vida normal e num país que não me desse urticária, eu não me ocuparia só de crises e de coisas feias por causa do bom e do bonito.

Por enquanto, ainda há quem se lembre da vida antes do eufemístico “ajustamento”: dos cortes que foram uma ceifa, da poda que foi um desbaste e do enxerto que foi de porrada. A nossa vida não é isto.

30 março, 2014

Armados e perigosos

Regresso hoje ao que mais me exaspera e deprime nas conversas diárias sobre a crise. Como tenho tentado dizer nestas páginas, de várias maneiras e com insucesso garantido (ver posts anteriores), há menos verdade nas ideias que determinam decisões políticas e económicas do que muitos, nas suas vãs filosofias, gostariam de acreditar, ou de fazer-nos acreditar. “Há mais coisas entre o céu e a terra, Horácio!” Há mais de mil maneiras de fazer bacalhau, mais do que uma maneira de esfolar o gato, e até, obviamente, várias maneiras de pagar uma dívida. É a política, estúpido!

E a política, além de ser “a arte do possível, do alcançável – a arte da segunda melhor escolha” (tradução aproximada das palavras de Bismarck) é necessariamente discurso e retórica, porque as palavras são as suas armas principais. A expressão “luta política” diz quase tudo sobre a herança belicosa dos confrontos verbais mais ou menos ritualizados a que hoje praticamente se resumem os debates parlamentares e os comícios e passeatas de fim de semana para consumo televisivo.



As palavras desta “luta” são muitas vezes armas sujas e de pontaria incerta, o que significa que têm incalculáveis danos colaterais. Quase sempre ocultam mais do que revelam e os bordões a que recorrem traem uma indigência intelectual perigosa, a prevalência inquietante de atávicos simplismos, ou ambas as coisas simultaneamente. As ideias da “culpa” da dívida e da sua “expiação”, mediante certos “sacrifícios”, por exemplo, que estão implícitas ou explícitas em muitos discursos pseudo-explicativos, são noções arquetípicas que caem bem ao puritanismo calvinista e ao masoquismo católico – ou ao casamento feliz dos dois na conjuntura atual – subjacentes até nas palavras dos mais laicos pensadores, mas ensinam coisa nenhuma sobre a natureza realmente complexa dos sarilhos em que estamos metidos. Causa não é sinónimo de culpa; dívida não é sinónimo de pecado e o “sacrifício” de pessoas inocentes no fogo do inferno do desemprego e da pobreza não devia ser solução aceitável.

Dava jeito aos pobres portugueses que os políticos deixassem de usar metáforas mortas e se libertassem dos seus amuletos verbais; que parassem de procurar, ou fingir que procuram, culpas e culpados (tirando os óbvios criminosos), e que tratassem de encontrar explicações válidas e verdadeiras soluções. O chumbo de dispersão verbal com que mutuamente se alvejam polui o ar que respiramos e deixa atrás uma nuvem negra que leva tempo a dissipar-se e não permite discernir na linha do horizonte saída “limpa” (lavada dos pecados?) para futuro algum.

Brandindo armas que usam mal, ou usam com segundas intenções, os políticos são perigosos e deveriam ser vigiados por quem os soubesse obrigar a morder a língua e a morrer do seu próprio veneno. Os vigilantes que hoje temos não servem, porque muitos jornalistas e comentadores não sabem, ou não querem, falar língua diferente e apenas ecoam as palavras que os políticos preferem que se ouçam.

O mundo muda todos os dias, mas nós estamos metidos numa camisa de forças políticas cujo discurso estagnado amortalha o país, que só não vai morrer porque é teimoso. 

08 março, 2014

O verdadeiro carnaval: entremez e desfile de um país emburrecido


Acordo num país mal ataviado, de barba por fazer
e a notícia da manhã traduz o que importa
numa língua morta.

As frases recitadas
que todas as noites nos embalam o sono
e nos tolhem os sonhos,
são uma missa entoada em latim vulgar,
não dão pra dançar.

Ouço cantar uma língua de contas
e de trapos
e vejo aos saltos coelhos e cartolas,
merkels e mercados,
bancos e bandidos,
e muitos passos
perdidos.

Desfilam sociedades secretas
e casas de segredos,
arranjinhos e arremedos,
piores emendas para maus sonetos
e muitos bichos caretos.

Entre um estômago meio cheio
e uma cabeça meio vazia,
olhamos como se esperássemos
um milagre de maria.

Mas diz que, não tarda, vamos ali ao mercado
e que é tudo fiado,
mas com juros baixinhos.
Pra comprar jaquinzinhos?

Diz que o país, se calhar,
vai crescer um cabelo.
E o tamanho do pelo
vai pagar o pão?

Diz que dívida assim
e o défice anão; 
diz que pouco salário
e menor pensão;
diz que quem fala do alto
é quem tem a razão,

mas o maior défice
é de imaginação.


24 fevereiro, 2014

Clube dos austríacos mortos

Sabem qual é a melhor maneira de governar o país? Eu não sei, mas quanto mais é o pouco que sei, mais me surpreende a segurança dos que presumem saber.

Quem conseguisse ouvir, de orelhas limpas, o que dizem políticos e comentadores, de todos os orientes ideológicos, deveria ficar confuso. Admitindo a possibilidade de alguém ser objetivo ao ponto de não deixar nenhum preconceito afetar o seu juízo, a variedade de soluções governativas incompatíveis que cobrem o céu e encobrem o sol conferiria a todos o direito à perplexidade e à ignorância. Contra lógica e razão, porém, há demasiada gente que parece nunca ter dúvidas quanto aos benefícios desta política, ou aos malefícios daqueloutra. 

Na verdade, só não fica toda a gente de olhos trocados perante discórdias e dislates, porque todos temos um filtro automático, que deixa facilmente penetrar no crânio aquilo que nos agrada e que rejeita, ou aceita com muita dificuldade, tudo o que ameace levantar o pó das ideias recebidas. É compreensível, mas é forte pena, porque significa que o nosso nível de exigência com programas políticos é demasiado baixo e se resume, em geral, a cair para o lado da cama em que dormimos melhor. No fundo, esperamos apenas que nos ofereçam o conforto das opiniões para as quais o contexto social que habitamos nos moldou e os nossos interesses nos empurram. Ninguém pense que é imune a este tipo de preconceito. Mudar de ideias, e sobretudo ser persuadido a mudar de ideias pelos argumentos de alguém que não nos seja próximo e estimado, é mais difícil do que mudar as pintas do leopardo.

Esta predisposição natural é o que explica convicções ideológicas que não passam daquilo a que me apetece chamar uma “doença mimética degenerativa”. Ou seja, tendemos a reproduzir inconscientemente, mas com crescente grau de imperfeição relativamente ao modelo original, coisas que no seu tempo não passaram de boas hipóteses explicativas para realidades outras, mas que continuamos a aceitar como se fossem os equivalentes políticos e económicos da lei da gravidade: coisas universais e imutáveis. Só que não pode haver duas leis da gravidade! Segundo as leis da física, as coisas caem todas na mesma direção e não é provável que se ouça alguém defender acaloradamente opinião contrária, a não ser, talvez, num manicómio.

Não sendo possível provar que todos os políticos, economistas e comentadores sejam loucos ou desonestos (não vale fazer piadas fáceis), conclui-se das suas divergências que, no conhecimento das sociedades e no governo das nações, as leis são menos evidentes do que nas ciências em que se podem fazer demonstrações experimentais e matemáticas. Nas ciências sociais, das três, uma: ou ainda não se encontrou uma lei da gravidade, ou a sua demonstração está por fazer, ou, simplesmente, ela não existe. Eu sei qual das três hipóteses me parece a mais provável, mas deixo que os leitores façam as suas próprias escolhas. 
           
Como não se espera que um político, muito menos um político que ocupa ou se candidata a um cargo executivo, exprima dúvidas e responda “não sei”, os países são governados com base em convicções que só podem ser, na melhor das hipóteses, “ideológicas” e, nos casos piores, a defesa de interesses instalados mais ou menos óbvios. Dando de barato a indecência desta segunda hipótese, é interessante saber como se formam as ideologias da primeira. De onde se retiram as certezas quanto à justeza (já não digo à “verdade”) do que se pensa? Como os políticos não são feitos de matéria diferente do resto dos humanos, na falta de conhecimento seguro, usam os mesmos filtros automáticos, lugares comuns e ideias “mimeticamente degeneradas” a que quase toda a gente recorre quotidianamente.

Os políticos que hoje estão em exercício, em Portugal e em muitos outros países, não revelam maior espessura intelectual do que um filete de cavala, e a linguagem que utilizam trai a origem das suas poucas ideias. Aqueles que agora nos governam pertencem, alguns sem o saberem, ao “clube dos austríacos mortos”, que continua a dominar o pensamento dos que acreditam que se descobriu uma fórmula político-económica para o melhor governo das sociedades apenas porque ficaram demonstrados o fracasso e os crimes dos regimes comunistas, mas em que o próprio conceito de sociedade é enfraquecido pelo individualismo que constitui o núcleo da doutrina. Na famosas palavras de Thatcher: “There is no such thing as society. There are individual men and women, and there are families.” (Não há sociedade. Há homens e mulheres individuais e há famílias.)

No livro Ill Fares the Land (2010), o historiador Tony Judt traçou sumariamente a descendência intelectual das ideias dominantes que desde a década de oitenta fizeram marcha atrás nas reformas sociais do período posterior à 2ª Guerra Mundial. Se a origem próxima da fé cega nas virtudes do mercado, mais ou menos desregulado, e do suposto imperativo de reduzir o papel do estado à insignificância, está nos chamados “rapazes de Chicago”, a doutrina destes é já uma degenerescência de ideias anteriores, nascidas num contexto político e social bem diferente daquele em que vivemos hoje.

F. A. Hayek e Ludwig von Mises.

Mas o problema não está nas ideias de Friedrich Hayek ou Ludwig von Mises, que inspiraram a doutrina do mercado livre da “Escola de Chicago”, nem na ideia de “destruição criativa” do capitalismo de Joseph Schumpeter, muito menos na “sociedade aberta” de Karl Popper, ou até nos métodos de gestão de Peter Drucker. A Áustria em que todos eles nasceram, viveram e da qual todos eles escaparam, entre o crepúsculo do império Austro-Húngaro e as convulsões políticas e económicas que se prolongaram até ao fim da Guerra Fria, sob a ameaça permanente e sucessiva de regimes opressivos e sanguinários movidos por ideologias arregimentadoras e coletivizantes, pode explicar em boa parte o seu excessivo individualismo e a resistência a conceitos e categorias que lhes recordassem tribulações passadas. Compreensível instinto, e uma defesa contra extremos indesejáveis, mas que exige contextualização e distância crítica, que nos protejam hoje de outros dogmatismos, receituários simplistas, ou “ideias mimeticamente degeneradas”.  

Traduzo aqui algumas palavras de Tony Judt:

“(…) quando recapitulamos os clichés convencionais sobre mercados livres e liberdades ocidentais, estamos de facto a fazer eco – como luz de uma estrela que empalidece – de um debate inspirado e ocorrido há setenta anos, entre homens na sua maioria nascidos em finais do século XIX. É verdade que os termos económicos em que somos levados a pensar hoje em dia não são geralmente associados a estas distantes divergências e experiências políticas. A maioria dos estudantes de pós-graduações em gestão nunca ouviram falar de alguns destes exóticos pensadores estrangeiros e não são encorajados a lê-los. E no entanto, sem um entendimento das origens austríacas da sua (e da nossa) maneira de pensar, é como se falássemos uma língua que não compreendemos inteiramente.”
E vamos continuar a falar. E a ouvir. E a não compreender muito bem aquilo que dizemos ou ouvimos. Mas nem por isso duvidando o suficiente. Duvidamos dos políticos e, no entanto, vamos caucionando as políticas. Só porque precisamos de acordar amanhã e de acreditar que é outro dia, mas sem sabermos bem o que nos dizem, ou o que aquilo que nos dizem quer dizer.     

14 fevereiro, 2014

Mudar de sheep

A situação do país continua a preocupar-me um bocadinho, mas aparentemente não devia. Não só é bastante evidente que estamos todos cerca de zero-vírgula-quase-nada-por-cento mais ricos, como finalmente descobrimos que o país está nas mãos de um bom pastor. Perdão, gestor. Eu não sou grande coisa em contas, por isso não entendi bem como é que esta soma se traduziu em mais uma subtração no meu boletim de vencimento, mas também pode ser a graduação dos óculos.

Ou então, tudo isto se passa num quadro surrealista. Uma destas noites, não sei se mal acordado, meio adormecido ou simplesmente em sonhos, julguei ouvir o primeiro-ministro fazer uma palestra (discurso, alocução, aula de gestão?) sobre Mirós e ovelhas. Perante um auditório de autarcas, o senhor de São Bento entoava mais uma vez o recitativo da dívida seguido da ária da troika e, não obstante ser barítono, atreveu-se, qual tenor, a um dó de peito por causa de umas telas que não podia ter. Dava ele a entender que quem não tem dinheiro, não tem bichos.

Sem alucinogénio que explicasse a estranheza do que ouvia, comecei a suspeitar de um estado de dissonância cognitiva quando o PM verberou aqueles que se julgam donos do país e ainda por cima querem uns Mirós, mas que, afinal, parece que só têm umas ovelhas velhas (ponto de exclamação!).

Cartaz do filme "Black Sheep", 2006

É possível que a minha confusão se deva ao facto de o orador ter usado termos estrangeiros (estes gestores gostam muito de falar inglês). Segundo ele, “é preciso mudar de sheep”. Precisamos todos de mudar de sheep, aparentemente. Ainda sem entender a relação entre os quadros de Miró e o gado ovino, percebi que afinal podemos ter bichos, desde que sejam umas ovelhas novas.

Para quem não saiba inglês, nem a consoante inicial de chip (a palavra que Passos Coelho tentou dizer) se pronuncia como a de sheep (a que ele efetivamente disse), nem as vogais rimam. Mas chip rima com ship, o barco em que estamos metidos neste dilúvio e do qual só vão sair ilesos os tubarões e o caruncho. 

De uma só penada, o primeiro-ministro demonstrou o seu amor pela arte e pelo património e apresentou uma justificação prática da necessidade de testes de inglês no 9º ano.


Instantes

1   Diziam, pela calada agonia dos instantes que eram mudos.   Julgavam-nos pela constância infinita das lamentações pelo fôlego breve do pá...