28 janeiro, 2015

Soberana sesta

Depois da EDP, da REN, da PT, da TAP, do frango assado e dos pastéis de nata, parece que a última coisa que ainda é realmente nossa – e fazemos quase tão bem como os melhores – estaria afinal para ser vendida também. E logo a única produção nacional que o Dr. Passos Coelho tem feito crescer significativamente, sem que o mérito lhe seja por todos devidamente reconhecido.

Logo agora que estava tão pimpona e se podia apresentar a estranhos sem ter que pentear a guedelha negligente, parecia que vinha aí um Mário qualquer – italiano invejoso e amigo do alheio – oferecer-se para comprar a dívida que, de tão nossa, até se chama “soberana”. O último pedacinho de Portugal que nos resta, e do qual devíamos sentir patriótico orgulho, poderia começar a desaparecer mediante a perversa troca por outra dívida com juros mais fraquinhos e fabricados em Frankfurt. Pensei eu! Afinal, o senhor só queria oferecer a massa a quem melhor a tem sabido cozinhar, os nossos muito amados bancos, que tantas maravilhas têm operado por esse mundo fora. A nossa dívida, portanto, parece garantida por muitos e bons anos e promete tornar-se uma senhora de bom porte. E que os deuses a conservem.

Só estaria ameaçada, por hipótese absurda, se nos ocorresse eleger um governo “radical”, que quisesse desfazer-se dela, ou de parte dela, assim sem mais nem menos, como os malucos dos gregos. O radicalismo do governo Tsipras manifestou-se logo na tomada de posse. Ainda antes de começar a dispensar a dívida, quase todo o governo grego dispensou a gravata e a igreja, num prenúncio claro de que pretende desfazer-se de certos nós e ortodoxias. Com tanto radicalismo, um dia destes ainda os apanham a comer bifes de soja, a usar sacos recicláveis e a governar para os cidadãos em vez de financiar os bancos.

A nossa sorte é haver sol e praias com areia suficiente para estender a toalha, porque assim podemos continuar a dormir uma longa e reparadora sesta.  

Portugal e a dívida


04 janeiro, 2015

A coisa assim quase dá certo

Arthur Boyd - Cripple in smoke from factory chimney (1942)


“Ausência de indústria e de fábricas significativas,
eis a higiene de um país como o nosso.
E quando não há chaminés importantes
até o fumo do cigarro conta para efeitos estatísticos.
Não é grande nem é enorme mas é simpático, este país.
Dois lados dão para a terra, dois lados para o mar.
E a coisa assim quase dá certo.”  

Gonçalo M. Tavares, Uma Viagem à Índia (2010)



Os números são sinais. Quando os números são convocados a assistir ao conselho de ministros, vêm a público dar sinal do épico trabalho do governo para endireitar o que nasceu torto. Chamam-lhe uns trabalho de Hércules, outros de Sísifo, quase. A mitologia grega parece excessiva para a mundana tarefa de arrumar a escrita, porém, como os números são muito pequeninos e estamos em ano de eleições, é preciso usar ao menos um megafone e duas hipérboles.

É assim que crescem a natalidade e a economia, e o desemprego baixa, presumivelmente porque a aquisição de uma dúzia de fraldas descartáveis a mais do que em período homólogo do ano anterior fez aumentar significativamente o PIB e sinaliza uma clara tendência de crescimento sustentado.  

A língua enrola-se adjetiva e adverbialmente; as têmporas latejam em êxtase estatístico; o chão treme e o país avança mais um centímetro na direção do vale fértil.

E mais vale tarde ao vale, não diz o ditado, mas podia dizer. Remoto consolo é o céu.


02 janeiro, 2015

Acidente


Portugal é o país onde os portugueses acontecem.
Se os portugueses fossem mais organizados
e fizessem mapas, iriam acontecer ao pé de outra gente
preventivamente.


Se um português acontecesse na Noruega, que é menos quente
já não teria depois que pôr-se ao fresco
porque seria logo norueguês e ainda teria bacalhau
se lhe apetecessem pataniscas.


Do que nunca se lembraria outra vez
era de ser português
e de ter saudades de coisas que nunca passaram nas televisões
como grandes batalhas com aparições
e restaurações, no tempo em que havia unicórnios
e dragões


e todos os portugueses eram heróis
e muito honestos
e mais espertos do que todos os outros
que eram só piratas, coitados
e espanhóis.


01 janeiro, 2015

O ano da fava


Os balanços do ano finado e as previsões para o ano que alvorece estão para esta infindável quadra, forçosa e esforçadamente festiva para muitos, como o bolo-rei ele mesmo: ninguém aprecia especialmente, mas faz-se sempre. O ser humano afeiçoa-se com facilidade a celebrações e preenche os calendários com dias “especiais”. É claro que a sua profusão os torna menos especiais, mas qualquer desculpa serve para comer até para lá da saciedade, beber até ao estupor dos sentidos e, claro, para retrospetivas e prospetivas perdas de tempo.

Entre balanços, previsões e todas as marcas das celebrações, prefiro contemplar a fava. A fava vem metaforicamente a propósito porque é o legume que mais provavelmente sairá à maioria dos portugueses no inauspicioso ano que me amanheceu hoje, enfriado e embaciado, nas vidraças da janela. Segundo me é possível vislumbrar entre os espumosos vapores da festança de ontem e os gases tóxicos de uma campanha eleitoral que começou com um ano de antecedência, o ano de 2015, por muito que me custe rebentar o balãozinho ainda meio insuflado dos meus ressacados leitores, não vai ser nada de especialmente divertido.

Sem cartas astrais, baralhos de tarô, folhas de chá ou mendes e marcelos, não prevejo nada realmente bom (realmente não prevejo nada, mas é maneira de falar). E se o que aí vem apenas bom fosse, já ótimo seria. Pela riqueza do discurso político que se ouve, que pouco deve à imaginação e à dívida tudo deve, vai ser um ano em que, mais uma vez, se falará do que menos abunda como se a sua abundância fosse tudo o que falta.

Se ao menos a árvore de Natal fosse a das patacas, pensamos nós, logo se veria.  


08 dezembro, 2014

A demanda do bêbedo: exercícios de estatística acrobática para as escolas

Os rankings das escolas começaram por me deixar um pouco mais tranquilo, uma vez que provaram, de maneira que julgo irrefutável, que os funcionários do Ministério da Educação têm acesso a computadores e a máquinas de calcular. Depois dos episódios da colocação de professores, havia sobre o assunto um justificado ceticismo, que agora se dissipou. Julgo, contudo, que os referidos recursos informáticos teriam sido mais úteis ao país se os funcionários tivessem passado os últimos meses a jogar Angry Birds ou a ver vídeos de gatinhos no YouTube. Pelo menos teríamos alguns cidadãos descontraídos, em vez de milhares de pais enganados.

Os rankings, ou “ordenações”, não resultam da avaliação de coisa nenhuma, lançam luz sobre o que já estava iluminado e obscurecem aquilo que queriam dar a ver. O problema da aplicação de métodos quantitativos a questões sociais é muitas vezes este mesmo: medem-se as coisas que podem ser medidas, porque é fácil, e ignoram-se as coisas que precisam de ser medidas, porque é impossível, ou pouco prático. Somar as notas dos exames e fazer a média é exercício de crianças, mas ordenar escolas aplicando a algumas (privadas) este único critério e acrescentando à maioria (públicas) ponderações de quantificação mais ou menos impressionista é coisa mais arbitrária do que o peso de um arrátel na Idade Média (quantas décimas vale a média entre 7 pais operários fabris, 3 canalizadores e 8 escriturários?).

Produzem-se então umas tabelas giras, que agradam especialmente aos diretores de colégios privados, e cria-se a ilusão de que se ficou a saber alguma coisa que não se sabia anteriormente. Recorrer a estes critérios e às tabelas ordenadas que resultam da sua aplicação é fazer como o bêbedo que procurava as chaves de casa debaixo do candeeiro da rua, porque tinha mais luz, em vez de ir à procura delas no sítio onde as perdera. A analogia entre a demanda do ébrio cidadão e os erros produzidos por uma investigação pouco avisada é bastante velha e o ministro Nuno Crato, que parece geralmente sóbrio, percebe-a pelo menos 100 vezes melhor do que eu (mas admito a imprecisão da minha matemática).

Comparar resultados de uma escola privada, que leva a exame 100 alunos selecionados, com os de uma escola pública que leva 500 que ninguém escolheu (alguns dos quais nem sequer frequentaram a dita) é, no mínimo, enganador quanto à qualidade dos estabelecimentos. Assim, os rankings das escolas parecem apenas mais uma modalidade do desporto radical que muitos políticos praticam: a estatística acrobática. Há alguns que dominam perfeitamente o mortal à retaguarda com pirueta e outros que apenas se espalham ao comprido e ficam convencidos de que caíram em pé. Mas não faz grande mal, porque há sempre bastantes eleitores que se deixam enganar e até uns quantos que gostam de ser enganados.  


O senhor ministro acha fundamental que os pais tenham informação sobre as escolas nas quais poderiam inscrever os filhos. Eu também acho, mas a informação que ele disponibiliza só seria útil se estivessem reunidas duas condições. Primeira: que as “ordenações” fossem mais do que a mistura de um conjunto de médias aritméticas obtidas de maneiras diferentes (comparar a média dos nabos com a média das abóboras resulta numa sopa turva). Segunda: que fosse possível ir comprar a escola ao supermercado mais próximo, ou teletransportar as crianças todos os dias para qualquer escola do país.

E afinal, quando a medida se transforma na meta, deixa de ser uma boa medida. É quase inevitável, se a avaliação prevalece sobre o ensino e tende a discriminar arbitrariamente, que a pressão exercida sobre as escolas para melhorarem a sua posição nas tabelas leve à manipulação, ainda que benigna e bem-intencionada, dos fatores que contribuem para a formação das médias. A doce ilusão de rigor que os números facilmente produzem serve assim, pelo menos, para embalar o sono dos inocentes e para dar mais uma inocente facadinha no sistema público de ensino. Quem ganha com estas contas? E quem conta mais para quem tais histórias conta?

24 novembro, 2014

Neptuno, corrupções e teorias imperfeitas

A corrupção pode encontrar-se como se descobre um planeta invisível. A irregularidade detetada na trajetória orbital de Urano só parecia explicável pela força gravitacional de uma grande massa próxima. Urbain Le Verrier calculou um planeta. O “seu planeta” foi depois avistado por Gottfried Galle, que apontou um telescópio na direção que as tabelas astrais de Le Verrier indicavam. Viria a chamar-se Neptuno. Ninguém antes o tinha visto, mas tinha que estar lá, caso contrário a órbita de Urano não seria explicável segundo as leis de Newton. A riqueza inexplicável de certos cidadãos também faz suspeitar de muita massa em órbita próxima. Falta depois um telescópio que a vislumbre e comprove a gravidade da relação.

A analogia entre a descoberta de Le Verrier e os modos de descobrir a corrupção foi feita por Proust, mas não foi lá que eu a encontrei referida esta semana. Também não foi nos jornais e televisões, ocupados com os escândalos de corrupção do momento, que ameaçam desacreditar de vez o sistema político, mas não vão alterar o que sabemos sobre o sistema solar.
Amedee Charles Henri de Noe (Cham): Caricatura da descoberta de Neptuno, em 'Le Charivari', 1-Jan-1847
Tropecei na analogia, hoje mesmo, no livro de um português do qual não temos que nos envergonhar, o astrofísico Pedro Ferreira, professor da Universidade de Oxford. O seu livro The Perfect Theory, publicado em Portugal pela Presença (o título português transforma o artigo do título em indefinido, Uma Teoria Perfeita), esteve entre os seis finalistas do prémio anual da Royal Society para livros sobre ciência (o Royal Society Winton Prize for Science Books). É uma espécie de “biografia” da Teoria da Relatividade Geral, desde Einstein até aos nossos dias, e é tanto sobre as ideias, como sobre as pessoas que as pensaram: humanas, falíveis e geniais. (Que os leigos não temam, porque não há fórmulas matemáticas para decifrar). 

Falo disto apenas porque são estas histórias que a um tempo me distraem e me tornam mais evidente a vil tristeza que povoa o espaço em volta. Não apenas os escândalos de corrupção com certos vistos e ex-primeiros-ministros, mas as vistas curtas e os interesses ocultos dos que podem mudar ou influenciar a política em geral, e a política de educação e ciência em particular.

Os crânios fertilizados pela monocultura dominante reproduzem em mau português e em pior filosofia a ideia, que acham óbvia, da necessidade de ligação das universidades ao mundo empresarial. Acham eles e elas (foi uma Chica qualquer, deputada esperta, que li por estes dias), que as universidades devem ensinar em função de uma certa procura. Ora, uma universidade que responda exclusivamente a clientes não educa nem cultiva, forma. Forma técnicos. Não é a mesma coisa.  

Esta lógica de mercado imediatista teria inviabilizado Einstein e toda a Física Teórica, desde Isaac Newton a Pedro Ferreira, para não falar do ensino das humanidades e das ciências sociais, com exceção, claro está, da economia das escolas que professam a doutrina vigente e fornecem os técnicos de que o sistema carece para se autojustificar e se ir sustentando. É uma forma de corrupção do ensino e da investigação, que não deveriam ter que ser apenas “aplicados”, deveriam antes procurar saber. A universidade portuguesa pensada pelos “mercadistas” (que o neologismo me seja perdoado) poderia até formar técnicos que fabricassem um telescópio, mas dificilmente daria alguém que encontrasse Neptuno.    

09 novembro, 2014

Tragicomédia com pratos voadores

Há uma enorme tensão dramática num diálogo entre alienados com armas na mão. A tensão é quase sempre sustentada pela ameaça iminente de um desfecho trágico. Nos filmes ou no teatro, esse dramatismo faz parte do prazer que o espetador procura. Na vida real, porém, talvez só alguma perversão explique por que vejo tantas vezes o canal parlamento. 


As cenas de teatro que este canal oferece são bastante repetitivas, mas nem por isso menos assustadoras. Um destes dias, por exemplo, atiravam-se entre as várias bancadas alguns números do orçamento para 2015 – o aumento do IMI, a fiscalidade dita verde, a suposta impossibilidade de baixar o IRS – e vários deputados dos partidos que se acostumaram a governar comportavam-se como se brincassem na praia com preciosos pratos de porcelana chinesa pensando que fossem frisbees. Talvez os pratos, que são a vida de todos nós, e para muitos já são apenas cacos, devessem merecer um pouco mais de cuidado. As erráticas trajetórias dos pratos voadores, nestas discussões, provocam-me sempre uma valente dor de cabeça. Às vezes chega a ser uma espécie de violenta enxaqueca. 


Mas se fechar bem os olhos, espetar um indicador em cada ouvido e esperar 20 ou 30 anos, talvez isto passe. Estou a contar com uma esperança de vida que não subtraia muito dinheiro à segurança social com o pagamento da minha reforma (meramente hipotética, ou até mirífica, eu sei), porque o meu principal papel, enquanto cidadão responsável de um país em permanente estado de carência, é garantir o desafogo orçamental suficiente para que os governos competentemente distribuam os proveitos de uma fiscalidade justa por quem realmente merece e precisa. E são muitos os que aparentemente precisam: cônjuges, filhos, sobrinhos, afilhados, amigos, compadres, correligionários, clientes e respetivas empresas de sucesso; bem como gente bem colocada para beneficiar cônjuges, filhos, sobrinhos, afilhados, amigos, compadres, correligionários, clientes e respetivas empresas de sucesso.

Como isto é tudo gente de bem, com famílias numerosas e amigos que também se reproduzem com alguma desenvoltura, não se pode sequer dizer que os beneficiários da governamental munificência sejam uma minoria negligenciável, nem que os seus interesses não devam merecer o nosso abnegado sacrifício. Espera-se de nós – deficitários na fina astúcia de ser amigos, familiares, correligionários, clientes, ou empreendedores especializados na arte de estabelecer relações nos círculos certos, ou em outras figuras da geometria política partidária privatizada (PPP) – que compreendamos o défice das contas públicas, o problema da dívida externa, o fundo de apoio à banca e o fundo de resolução do BES, funções quadráticas, antimatéria, as profecias do Bandarra e a importância dos brócolos numa dieta saudável. Será pedir muito?


Desconfio que foi o Bandarra quem profetizou este grande império de espíritos tansos e que foram os brócolos que obrigaram milhares de portugueses mais fraquinhos, e menos espirituosos, à emigração. Eu até gosto de brócolos e também gostaria de mudar de estado, mas por este andar, só se for para o estado gasoso. O que não seria improvável se eu fosse um banco. Afinal, conhecemos vários casos de bancos que num dia eram sólidos e no dia seguinte passaram diretamente a gasosos, perdendo aquela parte importante entre os dois estados que é a liquidez, num fenómeno de verdadeira sublimação. 


As cenas do teatro parlamentar não aspiram a nada de sublime. Os atores são quase todos toscos, sejam eles figurões ou figurantes, e muitos são apenas parte do trágico coro canino que dobra a cerviz perante a sombra do dono. O que eles representam percebe-se. Quem eles deviam representar demora a perceber.

Instantes

1   Diziam, pela calada agonia dos instantes que eram mudos.   Julgavam-nos pela constância infinita das lamentações pelo fôlego breve do pá...