29 outubro, 2014

Uma conspiração de asnos


O professor mais desejado do mundo, colocado em 104 escolas sem ser já candidato a nenhuma, deveria também ser candidato ao Livro Guinness de Recordes, mesmo contra a sua vontade e vencendo a distância insular do estabelecimento de ensino que se antecipou aos rigorosos métodos continentais de colocação de docentes. Sempre seria mais original do que as habituais entradas portuguesas no prestigiado repositório das ideias mais parvas e imbatível tomo do conhecimento inútil. Quase sempre, as candidaturas portuguesas consistem em cozinhar algo estupidamente grande: a maior caldeirada de peixe, a maior feijoada, a maior empada de atum de lata, o maior arroz de atilhos… e assim por diante, até ao empanturramento final.

Se não quiserem desviar-se excessivamente do motivo gastronómico, podem sempre dizer que se trata da maior “salsicha educativa” do mundo, medida ao vivo nas televisões pelo próprio primeiro-ministro. Ninguém percebeu ainda o que seria a dita salsicha, nem qual a receita que o chefe de governo teria em mente, mas existem fundadas suspeitas de que alguém terá mesmo tentado cozinhar coisa bastante insólita: fosse um ministro em lume brando, ou a escola pública em banho-maria, fosse um secretário de estado flambé ou um diretor geral confitado. Na mais conservadora das teorias da conspiração que por aí circulam, fontes geralmente sóbrias afiançam como muito provável que um agente infiltrado, ao serviço de interesses obscuros, terá concebido um churrasco informático de dantescas proporções para atingir um qualquer objetivo.

O suposto objetivo parece tão vago, ou tão absurdamente incoerente, como a política de educação do ainda ministro Crato e há até quem sugira que são parte da mesma coisa, o que já me parece francamente confuso. Confuso, mas não mais improvável do que a incompetência épica de alguém que não consegue subtrair o nome de um professor de uma lista. Um professor entre muitos, porque houve bastantes competidores involuntários a este recorde da asneira.

Como nenhum dos cozinheiros deste pantagruélico deboche dá um passo em frente e admite a sua incompetência para as funções que desempenha, resta-nos concluir que se trata de uma culpa coletiva e que o ministério da educação está entregue a uma confederação de asnos.      

19 outubro, 2014

As aventuras do capitão Grancho

As chamadas ironias do destino podem ter vários sabores. Por vezes são fantasticamente doces. Deve ter sido isso o que sentiram muitos professores quando tomaram conhecimento da demissão do secretário de estado Grancho, sabendo dos verdadeiros “motivos de ordem pessoal” que a motivaram. 

Os vagos e formulaicos “motivos de ordem pessoal” servem geralmente para ocultar qualquer coisa. É como quem diz: “não têm nada a ver com isso”. Só que, neste caso, já toda a gente sabia que João fora expulso da sala por ter sido apanhado a copiar os trabalhos de outros meninos. A ironia da coisa é tão perfeita que parece inventada, uma vez que foi este o secretário de Estado responsável pela prova de avaliação dos professores, elemento central de uma política que tem a “exigência” como norte. Um plágio manhoso como aquele que perpetrou parece demasiado bom para ser verdade. 
   
A única “razão pessoal” compreensível para a demissão do dr. Grancho seria um sentimento de vergonha, mas isso não parece possível vindo de alguém que teve a pouquíssima vergonha de ir pregar sobre a “dimensão moral do professor” cometendo no ato a fraude académica mais rasteira e preguiçosa, que consiste na pura e simples reprodução, ipsis verbis, pontuação incluída, de grandes nacos de prosa que outros haviam transpirado, ainda por cima tendo a distintíssima cara de pau de publicar e assinar o servicinho, sem nunca revelar sombra nem penumbra dos verdadeiros autores.

Se Grancho estudou liderança no seu mestrado de administração escolar, deve saber que não há melhor liderança do que a do exemplo. Na nau da educação cujo comando lhe entregaram (seguramente por mérito demonstrado em currículo académico e profissional sólido e sério), mestre João decidiu ser capitão Grancho.


Dustin Hoffman como Capitão Gancho
Num país cuja sociedade entendesse a seriedade da fraude de plágio, o senhor não teria apenas a sua carreira política e reputação académica arruinadas, poderia também sofrer sanções, inclusivamente penais. Mas agora esperem só para ver o castigo que espera este probo e profundo estudioso da autonomia escolar. Aceitam-se apostas.

Sigam o capitão Grancho. Em terra de cegos, piratas são reis.

11 outubro, 2014

Manual de esclarificação

Um professor é colocado em 75 escolas simultanemente (não é gralha, nem hipérbole, vinha no jornal). Pequenino problema. Mas como, estupidamente, a lei não permite a acumulação dos 75 postos de trabalho (privilégio reservado a geniais admistradores de empresas e a imparciais deputados juristas) e o docente também não invocou o direito ao uso do dom da ubiquidade (por coincidência, um direito apenas reconhecido a geniais administradores de empresas e a imparciais deputados juristas), apenas uma vaga ficará preenchida. Ficaria, porque aparentemente o dito professor já desistira do concurso, tendo mais do que uma vez informado a tutela, por ter encontrado emprego numa das ilhas atlânticas.

Pequeno problema? Nem por isso. Escolas e alunos terão simplesmente que aguardar por novo “procedimento concursal”, que usará seguramente as regras do anterior e deverá, portanto, permitir um “normal arranque do ano letivo”, após decreto governamental a declarar que o ano letivo, oficialmente, não começa antes da Páscoa de 2015 (ou 2016, porque um ano é apenas de 1,25% do tempo de vida de alguém que chegue aos 80 e, portanto, tem pouco significado).

Estes soluços de setembro/outubro foram a melhor coisa que poderia ter acontecido aos alunos das escolas bafejadas com os efeitos da implosão programada do ministério. Finalmente regressou a exigência do ensino há tantas décadas perdida e as crianças vão poder adquirir de novo as competências essenciais à sobrevivência numa sociedade ferozmente competitiva (principalmente se a competição for por subsídios do Fundo Social Europeu destinados a tecnotretas ou ONGs espertinhas): como evitar um murro nos queixos; como pregar uma rasteira ao puto dos óculos; como rematar uma bola contra as janelas da sala de professores; como pular o muro da escola para ir charrar na esquina do McDonald's; como forjar a assinatura do encarregado de educação; como escrever uma cábula nas coxas para os testes mesmo difíceis; como ensinar a mãe a parecer adolescente outra vez para ir fazer os exames nacionais com o BI da filha. Enfim, apenas alguns exemplos do currículo quase infinito deste curso nuclear da verdadeira escola que o ministério, sábia e corajosamente, mas perante a incompreensão quase generalizada, em boa hora decidiu pôr em prática.  
   
Já antes disto, o ministro felizmente matemático, cujo ministério criara uma fórmula de cálculo para ordenação de professores que somava os resultados da primeira liga de futebol com resmas de fraldas descartáveis e dividia por dois, parecera ligeiramente surpreendido com o facto de os resultados serem um nadinha absurdos. Igualmente apanhado à traição pelo facto de ter havido casos de dois professores colocados numa única vaga, o ministro felizmente versado na morfologia e semântica do idioma materno, apareceu contrito e, como penitência, desatou a conjugar o verbo manter, procurando manter a compostura.

Depois de tudo devidamente “esclarificado”, o ministério procederá às compensações devidas aos professores afetados. Segundo fonte próxima do ministro (ou segundo um residente em Fonte Boa dos Nabos, no concelho de Mafra, que também é relativamente próximo), o ministério prepara-se para oferecer uma caravana com lugar para quatro pessoas a todos os professores em “mobilidade” que andem a caminho das escolas onde podem, poderão, ou poderiam ficar colocados. Os ditos atrelados serão ainda equipados com computador portátil e ligação móvel à internet, por forma a permitir que os docentes sujeitos aos “procedimentos concursais” à la minuta estejam permanentemente ligados às plataformas do sítio do ministério e, mediante uma divisão de trabalho por turnos com o cônjuge desempregado e um ou dois filhos em idade escolar (e sem professor nas escolas respetivas), possam preencher os formulários e aceitar colocações.

Professora em mobilidade vintage

Este regime facilitado de itinerância resolve vários problemas de uma vez só (a começar pelos da empresa fornecedora das caravanas, que se encontrava em processo de insolvência) mas principalmente o problema de habitação dos professores que habitualmente se viam obrigados e arrendar quartos ou apartamentos, pagando as respetivas cauções, após aceitarem horários numa escola da qual poderiam ser despedidos 48 horas depois, não obstante garantias de que lá ficariam, apesar de não haver para eles horário nenhum. Dividir turmas de 30 alunos em duas estaria fora de cogitação, uma vez que violaria uma média aritmética gira e conduziria inevitavelmente à obesidade do corpo docente por falta de exercício dos membros inferiores e das cordas vocais. Além disso, com turmas de 15 alunos corria-se o risco de poder mesmo dar aulas práticas de línguas ou de ciências, o que era capaz de desgastar desnecessariamente o material e é contrário às melhores práticas dos liceus nacionais das décadas em que vivem os nossos visionários caranguejos.

Engraçado mesmo é que não ouvi piar muitos dos passarinhos que no ano passado cairam dos seus poleiros morais em voo picado sobre os professores em greve que tanto mal faziam às criancinhas inocentes.   

08 outubro, 2014

Tsundoku: caos, acaso e complexidade


O meu escritório é muito dado à ocorrência de um fenómeno que, aparentemente, só os japoneses nomearam. Chama-se tsundoku. Se tsunami, palavra igualmente japonesa mas já universalizada, designa um fenómeno natural de consequências geralmente catastróficas, tsundoku designa um fenómeno, digamos, cultural, que consiste na acumulação mais ou menos desordenada – em pilhas, pirâmides ou torres de pisa – de livros que se adquiriram e continuam ainda por ler (o “ainda” é uma manifestação de obstinada resistência da minha parte ao derrotismo que os mais espessos volumes ou impenetráveis temas e autores podem induzir).

Pode haver quem, um pouco levianamente, chame “caos” a esta simples falta de arrumação. Mas é uma aceção fraca da palavra caos. Neste sentido corrente e desvalorizado, caos é uma coisa má e que se resolve de maneira simples: ou se tira uma semana de férias e se arruma tudo alfabética e tematicamente nas prateleiras (se ainda houver nelas espaço para estes novos refugiados da guerra do indivíduo contra a finitude do tempo), ou se chama a D. Adosinda para lhe chegar um fósforo e acender um biblioclasmo privado, assim consumindo, numa estúpida solução final, qualquer ideia que me pudesse amanhecer no entreabrir de uma negligenciada janela impressa. A simplicidade da solução ignora a maravilhosa complexidade do problema.

“Complexidade” é outro termo, aliás parente científico do conceito de caos (e que as pessoas usam também de uma maneira que pouco ou nada quer dizer) que explica melhor as propriedades emergentes de uma pilha de livros na sua potencial interação com uns neurónios acesos. Na aceção que significa alguma coisa de jeito, “complexo” não quer dizer complicado, nem difícil, nem simplesmente designa um sistema com muitos elementos. No sentido corrente – o sentido simples de complexidade, um quase paradoxo engraçado – para perceber um problema basta dividi-lo nas partes que o constituem, analisar cada uma delas e juntá-las todas outra vez. Chama-se a esse método “reducionismo” e o seu sucesso pressupõe que o todo seja igual à soma das partes. O motor de um automóvel é um bom exemplo destes sistemas simples, redutíveis à soma das partes (o que não quer dizer que não seja impenetrável para pessoas como eu).

Muita ciência opera, com assinalável sucesso, segundo esse princípio metodológico. Mas num sistema realmente complexo, que também é designado como dinâmico e adaptativo – o que quer dizer que muda pelo facto de ser “composto de mudança”, sem que agente algum controle o sentido dessa mesma mudança – o todo não é igual à soma das partes. Ou seja, não é possível, em rigor, prever o resultado das carambolas de bilhar dos muitos elementos que o compõem. Imaginem uma mesa de bilhar com 20 bolas em movimento e pensem o que seria calcular a trajetória de cada uma delas ao longo de uma simples meia dúzia de choques. Não é muito difícil, é bem mais parecido com “muito impossível”.

As propriedades destes sistemas dizem-se “emergentes” porque são o resultado das “iterações” dos mesmos pela “interação” das partes que os compõem e são algo que não existia anteriormente. A rede complexa de nódulos e ligações atualiza-se e transforma-se a cada instante (as células de um organismo, por exemplo), numa espécie de imponderabilidade quântica em que tudo é probabilístico, mas o grau provável de confiança em qualquer previsão pode ser como jogar numa fantástica lotaria.

A cada instante, ainda que impercetivelmente, um sistema complexo é, portanto, uma coisa nova, aparentada com o seu estado anterior – como a nossa cara pela manhã se parece geralmente com a cara da véspera, salvo qualquer erupção cutânea ou ressaca violenta – mas já irreversivelmente outra. Por isso as ideias de que a história se repete, ou de que o país não muda, são por vezes perigosas literalizações de simples figuras de estilo. É certo que tem graça identificar o parentesco entre o comendador Acácio e uns quantos traseiros parlamentarmente assentados, mas convém não esquecer que até as moscas e as suas preferências gastronómicas evoluem por seleção natural.

Os sistemas complexos/dinâmicos/adaptativos são uma das fronteiras da ciência moderna. Quando se diz que os meteorologistas se enganam muito, ou que os arquitetos urbanistas de hoje são piores do que os romanos, ou que os psicólogos e sociólogos não servem para nada, é porque não se percebe que os problemas que estes enfrentam são desta espécie de complexidade (desconfio que alguns deles também não percebem, mas isso é outro problema). Quem não conviva prudentemente com o grau de incerteza próprio de sistemas biológicos, sociais e ecológicos (três caixinhas chinesas a contar de baixo), está mais ou menos condenado a pensar como o dr. Marinho e Pinto, economistas das Neves e analistas Lourenços, ou os ouriços-cacheiros de Isaiah Berlin (pensadores de uma única ideia à qual reduzem, ou reconduzem, todo o universo e arredores). 

O que me traz de volta ao fascinante tsundoku que me rodeia. Neste meu pequeno sistema complexo, em que livros se encontram por aparente acidente, nunca se sabe bem o livro que se segue. Não sei o livro que vou ler a seguir; não sei se a seguir vou ler mais do que um livro; não sei sequer se a seguir me apetece ler qualquer destes livros (o carteiro continua a entregar encomendas e as livrarias ainda não fecharam); não sei o que algum destes livros poderá mudar na arrumação do meu sótão de neurónios e sinapses… Só sei que não vou arrumar nada hoje. E isso é bom.

08 agosto, 2014

O verão é BEStial


Para quem só veja telejornais, até pode parecer que as vozes que comentam a solução do BEStial problema se dividem de acordo com as muito previsíveis trincheiras de situação e oposição, o que torna também previsível que os simpatizantes do governo digam “sim senhor” e os outros redigam “senhor não”. Mas as dúvidas quanto às garantias de defesa do contribuinte aparecem de toda a parte, e não vêm de perigosos comunistas, nem de céticos impenitentes, nem de portugueses que são suspeitos de malandragem ou ideológicas perversões apenas por serem portugueses escaldados e não filiados.

Só por exemplo, caiu-me na caixa de correio o post de um blogue, cujo título em português poderia ser “Como saquear um país, à maneira do Espírito Santo”, de uma certa Frances Coppola (eu sei o que o nome lembra, mas o Padrinho, por cá, tem outro sal). Traduzo uma parte do texto sobre o dinheiro do Fundo de Resolução que o estado vai emprestar, os 4,4 ou 3,9 mil milhões extraídos dos fundos da troika reservados para recapitalização dos bancos: [O dinheiro] pode estar reservado para esse fim, mas continua a ser dívida pública. A não ser que possa ser refinanciado com dinheiro do setor privado MUITO rapidamente, a declaração do Banco de Portugal de que capitalizar o novo banco “não terá qualquer custo para o erário público, [nem para os contribuintes]” não é remotamente realista.

O dinheiro deste fundo é em grande parte público por várias razões, que não vêm ao caso, mas principalmente porque quando o risco de espinhas é mesmo, mesmo sério, os privados génios da gestão e da finança esperam sempre até que o robalinho esteja escalado. Os contribuintes, por sua vez, seguram o coração nas mãos, porque nos bolsos já pouco há para segurar, e esperam o pior de quem já tantas vezes lhes assegurou que estava tudo bem na banca. Agora, com este novo banco, que não passa de um banco de urgência, os principais financiadores do estado temem naturalmente que lhes venham dizer como poderão involuntariamente contribuir (mais uma vez) para salvar a pátria que outros esmifram.

Eu não faço ideia nenhuma se o “fundo de resolução” pode resolver alguma coisa, ou apenas ajudar a dissolver o que a enxurrada ainda não levou, porque não faço fé nas previsões de financeiros, nem de políticos, independentemente da doutrina económica que professem. E não por rabugice, ou embirração, mas apenas por semialfabetizada cautela quanto à ciência possível de sistemas complexos e, vá lá, admito, porque já ouvi muitos destes indivíduos dizer tantas asneiras e aldrabices com olhinhos cândidos ou poses de doutor, que não me sinto inclinado a deixar-me de cautelas, nem de caldos de galinha.

Considerando que todos os erros e desastres são no fim explicados com aquilo que “na altura” não se podia adivinhar, como agora aconteceu e sempre tem acontecido para justificar medidas de emergência de todos os tamanhos e feitios, que descanso estival nos podem garantir as garantias que agora nos dão?

Quem disse que neste verão o país não arde? 

23 junho, 2014

A atenção é um bicho com asas

Jimmy Giuffre, saxofonista, clarinetista, flautista, arranjador e compositor de jazz, escreveu e tocou música para pessoas, pássaros, borboletas e mosquitos. Há hoje quem ache que as primeiras, na altura, não lhe prestaram suficiente atenção.

Mas esta não é a história de Jimmy Giuffre, nem um ensaio sobre génios mais ou menos ignorados. Não é sequer a história da menina que perdeu a boneca porque se distraiu a olhar para o gato que se atirou da janela atrás de um pássaro que voou atrás do mosquito que era afinal a flauta tocada por Jimmy Giuffre. Estas frases eram apenas uma maneira de chamar a atenção. De chamar a atenção de pessoas, já que não sei tocar instrumento que possa prender à terra criaturas que facilmente dão à asa.  

“O Pintassilgo” de Carel Fabritius (1654)
A atenção é um recurso escasso. Na economia do tempo das nossas vidas, é talvez o menos abundante dos recursos. É pela nossa atenção que lutam publicitários e políticos, por exemplo, quando apontam, de modo mais ou menos subtil, a ranhura onde esperam a inserção do nosso cartão de débito ou o crédito do nosso voto. Todos os que acham que têm algo para dizer querem a nossa atenção, evidentemente. Todos os que gostam de nós esperam a nossa atenção, naturalmente. E há ainda os que apenas querem a atenção de quem quer que seja, mesmo que não tenham nada para oferecer em troca: um dedo de talento, amor algum, beleza bastante, saber que sirva.

Obviamente, não há atenção que chegue para tudo, nem para todos. A procura excede muito claramente a oferta. Sendo recurso tão escasso, a atenção é um bem precioso. Não sendo metal ou mineral, vale a sua ausência de peso em ouro. Mas há diferenças importantes entre atenção e quaisquer recursos transacionáveis. A primeira não pertence ao governo ou ao patrão, que dela não podem dispor como provavelmente gostariam – cortando, plafonando, taxando ou confiscando. Esta diferença interessa-me. Significa que, quer o tempo que tenhamos seja curto ou longo, aquilo a que damos atenção é da nossa exclusiva e indeclinável responsabilidade. Sobretudo para aqueles que vivem com muito pouco, ou com pouco mais do que o bastante para manter a cabeça colada aos ombros e o estômago descolado das costas, não existe mais poderoso capital. No entanto, são estes também os infelizes que, geralmente escravos de labores puramente alimentares, menos liberdade têm para escolher aquilo a que gostariam de dedicar a sua atenção.

Outra diferença entre atenção e bens apropriáveis, e talvez a mais importante, é que a atenção não se pode comprar. Pelo menos na nossa língua, os verbos que lhe servem de predicado não sugerem comércio. Dizemos “dar atenção”; dizemos “prestar atenção”; dizemos “chamar a atenção” e “desviar as atenções”. Em inglês diz-se “pay attention!”, mas na verdade não é a atenção que se paga, paga-se dando atenção, o que é sinal de boas maneiras. Pode pagar-se o tempo de alguém que se emprega para que se dedique a uma tarefa, mas o que é remunerado é o tempo nela despendido e/ou o produto do trabalho, não aquilo que durante a execução da tarefa possa ter ocupado a mente e os sentidos do executante. Ao coser um sapato, o sapateiro pode muito bem ganhar asas nos pés, como certo deus grego; sapatear uma valsa em tempo de swing, como Fred Astaire, ou encher de calçado o traseiro do seu ódio de estimação, como qualquer de nós faz quando sonha acordado.    

Mas é aqui que a proverbial fêmea do mamífero bunodonte, artiodáctilo, não ruminante e doméstico torce o rabo. Uma vez que tanta coisa é feita para atrair atenções, toda a prudência é pouca na maneira de as distribuir. Se há muito quem esbanje dinheiro, ou desaproveite aquilo que tem, mais são ainda os que malbaratam uma insanidade de horas entregando os sentidos a coisas que não fazem sentido nenhum, como se atenção sobrasse para atender a tudo e não houvesse sequelas associadas ao mau uso do tempo. O cérebro é que paga. Se muitos pensam cuidar suficientemente da saúde pelos particulares cuidados que dedicam à parte do corpo a sul do pescoço, já a matéria esponjosa alojada a norte absorve essencialmente fast-food mental, certamente porque é pré-cozinhado e de mais fácil digestão, mas também porque atrai mais atenções. Em português também se diz “prender a atenção”. Como se fosse um pássaro? O que nos prende pode ser o que nos perde.

Exemplos disto mesmo: o grosso da matéria publicada em jornais e revistas, e seus correlatos televisivos e radiofónicos, sob a designação de notícia, reportagem ou comentário, bem como muitas das obras ficcionais e programas de entretenimento que os meios de radiodifusão produzem e importam. Esta espécie de carne processada, feita de ideias acriticamente repetidas e de simplificações patetas, é por muita gente consumida em quantidades que impedem a normal circulação de estímulos elétricos entre os neurónios, os quais deveriam criar novas redes de ligações, assim aumentando a maravilhosa complexidade da máquina pensante e, quem sabe até, com sorte, gerar ideias novas.

Se todos tratassem da cabeça com os cuidados que já vão dedicando ao coração e ao estômago e não deixassem que as suas atenções fossem desviadas pelas conversas da treta que o mercado mediático tem que produzir constantemente, talvez procurando alimento mental de maior substância e uma maior variedade de estímulos sensoriais (como os que todas as artes proporcionam, por exemplo) talvez houvesse esperança de salvar, já não digo a pátria, mas a própria vida.   

O que ocupa a atenção também pode ser o que a liberta. A atenção é um bicho com asas. Como aqueles que Jimmy Giuffre tocou.

O pintassilgo de Donna Tartt, que ganhou o prémio Pulitzer desde ano, nas substanciais 800 páginas que prenderam já a atenção de muitos milhares de leitores. 

22 maio, 2014

Eurovisões

1
Para a maioria dos portugueses, não há muita diferença entre votar nas eleições para o Parlamento Europeu ou no Festival da Eurovisão. A grande diferença é que, num dos casos, a votação é precedida de música. Obviamente, refiro-me à campanha eleitoral.

2
Não sei quantas pessoas elogiaram a qualidade das listas dos maiores partidos. Devem ser listas de pijama, porque me dão muito sono.

3
Uma vez que perto de um terço dos eleitores sondados manifesta ainda a intenção de votar nos partidos que transformaram a caixa de aposentações numa caixa de esmolas e os funcionários públicos em vaquinhas leiteiras para dar de mamar a outros, o suicídio começa a parecer-me uma alternativa menos negra e uma carreira de bombista oferece um futuro mais promissor e um cinto menos apertado.

Curso do Instituto de Emprego e Formação Profissional

4
O candidato a Presidente da Comissão Europeia apoiado pelos partidos do governo acha que as pessoas são tão importantes como o feijão de lata Continente, o papel higiénico Renova, ou as loiças de Valadares. Ainda não cheira mal?    

5
Assis tem justificação para a pobreza do seu discurso europeu. É franciscano. Mas é o Rangel quem anda a comer como um passarinho e entrou em dieta rigorosa de ideias próprias (alguma vez teve?).  

Instantes

1   Diziam, pela calada agonia dos instantes que eram mudos.   Julgavam-nos pela constância infinita das lamentações pelo fôlego breve do pá...