08 outubro, 2014

Tsundoku: caos, acaso e complexidade


O meu escritório é muito dado à ocorrência de um fenómeno que, aparentemente, só os japoneses nomearam. Chama-se tsundoku. Se tsunami, palavra igualmente japonesa mas já universalizada, designa um fenómeno natural de consequências geralmente catastróficas, tsundoku designa um fenómeno, digamos, cultural, que consiste na acumulação mais ou menos desordenada – em pilhas, pirâmides ou torres de pisa – de livros que se adquiriram e continuam ainda por ler (o “ainda” é uma manifestação de obstinada resistência da minha parte ao derrotismo que os mais espessos volumes ou impenetráveis temas e autores podem induzir).

Pode haver quem, um pouco levianamente, chame “caos” a esta simples falta de arrumação. Mas é uma aceção fraca da palavra caos. Neste sentido corrente e desvalorizado, caos é uma coisa má e que se resolve de maneira simples: ou se tira uma semana de férias e se arruma tudo alfabética e tematicamente nas prateleiras (se ainda houver nelas espaço para estes novos refugiados da guerra do indivíduo contra a finitude do tempo), ou se chama a D. Adosinda para lhe chegar um fósforo e acender um biblioclasmo privado, assim consumindo, numa estúpida solução final, qualquer ideia que me pudesse amanhecer no entreabrir de uma negligenciada janela impressa. A simplicidade da solução ignora a maravilhosa complexidade do problema.

“Complexidade” é outro termo, aliás parente científico do conceito de caos (e que as pessoas usam também de uma maneira que pouco ou nada quer dizer) que explica melhor as propriedades emergentes de uma pilha de livros na sua potencial interação com uns neurónios acesos. Na aceção que significa alguma coisa de jeito, “complexo” não quer dizer complicado, nem difícil, nem simplesmente designa um sistema com muitos elementos. No sentido corrente – o sentido simples de complexidade, um quase paradoxo engraçado – para perceber um problema basta dividi-lo nas partes que o constituem, analisar cada uma delas e juntá-las todas outra vez. Chama-se a esse método “reducionismo” e o seu sucesso pressupõe que o todo seja igual à soma das partes. O motor de um automóvel é um bom exemplo destes sistemas simples, redutíveis à soma das partes (o que não quer dizer que não seja impenetrável para pessoas como eu).

Muita ciência opera, com assinalável sucesso, segundo esse princípio metodológico. Mas num sistema realmente complexo, que também é designado como dinâmico e adaptativo – o que quer dizer que muda pelo facto de ser “composto de mudança”, sem que agente algum controle o sentido dessa mesma mudança – o todo não é igual à soma das partes. Ou seja, não é possível, em rigor, prever o resultado das carambolas de bilhar dos muitos elementos que o compõem. Imaginem uma mesa de bilhar com 20 bolas em movimento e pensem o que seria calcular a trajetória de cada uma delas ao longo de uma simples meia dúzia de choques. Não é muito difícil, é bem mais parecido com “muito impossível”.

As propriedades destes sistemas dizem-se “emergentes” porque são o resultado das “iterações” dos mesmos pela “interação” das partes que os compõem e são algo que não existia anteriormente. A rede complexa de nódulos e ligações atualiza-se e transforma-se a cada instante (as células de um organismo, por exemplo), numa espécie de imponderabilidade quântica em que tudo é probabilístico, mas o grau provável de confiança em qualquer previsão pode ser como jogar numa fantástica lotaria.

A cada instante, ainda que impercetivelmente, um sistema complexo é, portanto, uma coisa nova, aparentada com o seu estado anterior – como a nossa cara pela manhã se parece geralmente com a cara da véspera, salvo qualquer erupção cutânea ou ressaca violenta – mas já irreversivelmente outra. Por isso as ideias de que a história se repete, ou de que o país não muda, são por vezes perigosas literalizações de simples figuras de estilo. É certo que tem graça identificar o parentesco entre o comendador Acácio e uns quantos traseiros parlamentarmente assentados, mas convém não esquecer que até as moscas e as suas preferências gastronómicas evoluem por seleção natural.

Os sistemas complexos/dinâmicos/adaptativos são uma das fronteiras da ciência moderna. Quando se diz que os meteorologistas se enganam muito, ou que os arquitetos urbanistas de hoje são piores do que os romanos, ou que os psicólogos e sociólogos não servem para nada, é porque não se percebe que os problemas que estes enfrentam são desta espécie de complexidade (desconfio que alguns deles também não percebem, mas isso é outro problema). Quem não conviva prudentemente com o grau de incerteza próprio de sistemas biológicos, sociais e ecológicos (três caixinhas chinesas a contar de baixo), está mais ou menos condenado a pensar como o dr. Marinho e Pinto, economistas das Neves e analistas Lourenços, ou os ouriços-cacheiros de Isaiah Berlin (pensadores de uma única ideia à qual reduzem, ou reconduzem, todo o universo e arredores). 

O que me traz de volta ao fascinante tsundoku que me rodeia. Neste meu pequeno sistema complexo, em que livros se encontram por aparente acidente, nunca se sabe bem o livro que se segue. Não sei o livro que vou ler a seguir; não sei se a seguir vou ler mais do que um livro; não sei sequer se a seguir me apetece ler qualquer destes livros (o carteiro continua a entregar encomendas e as livrarias ainda não fecharam); não sei o que algum destes livros poderá mudar na arrumação do meu sótão de neurónios e sinapses… Só sei que não vou arrumar nada hoje. E isso é bom.

08 agosto, 2014

O verão é BEStial


Para quem só veja telejornais, até pode parecer que as vozes que comentam a solução do BEStial problema se dividem de acordo com as muito previsíveis trincheiras de situação e oposição, o que torna também previsível que os simpatizantes do governo digam “sim senhor” e os outros redigam “senhor não”. Mas as dúvidas quanto às garantias de defesa do contribuinte aparecem de toda a parte, e não vêm de perigosos comunistas, nem de céticos impenitentes, nem de portugueses que são suspeitos de malandragem ou ideológicas perversões apenas por serem portugueses escaldados e não filiados.

Só por exemplo, caiu-me na caixa de correio o post de um blogue, cujo título em português poderia ser “Como saquear um país, à maneira do Espírito Santo”, de uma certa Frances Coppola (eu sei o que o nome lembra, mas o Padrinho, por cá, tem outro sal). Traduzo uma parte do texto sobre o dinheiro do Fundo de Resolução que o estado vai emprestar, os 4,4 ou 3,9 mil milhões extraídos dos fundos da troika reservados para recapitalização dos bancos: [O dinheiro] pode estar reservado para esse fim, mas continua a ser dívida pública. A não ser que possa ser refinanciado com dinheiro do setor privado MUITO rapidamente, a declaração do Banco de Portugal de que capitalizar o novo banco “não terá qualquer custo para o erário público, [nem para os contribuintes]” não é remotamente realista.

O dinheiro deste fundo é em grande parte público por várias razões, que não vêm ao caso, mas principalmente porque quando o risco de espinhas é mesmo, mesmo sério, os privados génios da gestão e da finança esperam sempre até que o robalinho esteja escalado. Os contribuintes, por sua vez, seguram o coração nas mãos, porque nos bolsos já pouco há para segurar, e esperam o pior de quem já tantas vezes lhes assegurou que estava tudo bem na banca. Agora, com este novo banco, que não passa de um banco de urgência, os principais financiadores do estado temem naturalmente que lhes venham dizer como poderão involuntariamente contribuir (mais uma vez) para salvar a pátria que outros esmifram.

Eu não faço ideia nenhuma se o “fundo de resolução” pode resolver alguma coisa, ou apenas ajudar a dissolver o que a enxurrada ainda não levou, porque não faço fé nas previsões de financeiros, nem de políticos, independentemente da doutrina económica que professem. E não por rabugice, ou embirração, mas apenas por semialfabetizada cautela quanto à ciência possível de sistemas complexos e, vá lá, admito, porque já ouvi muitos destes indivíduos dizer tantas asneiras e aldrabices com olhinhos cândidos ou poses de doutor, que não me sinto inclinado a deixar-me de cautelas, nem de caldos de galinha.

Considerando que todos os erros e desastres são no fim explicados com aquilo que “na altura” não se podia adivinhar, como agora aconteceu e sempre tem acontecido para justificar medidas de emergência de todos os tamanhos e feitios, que descanso estival nos podem garantir as garantias que agora nos dão?

Quem disse que neste verão o país não arde? 

23 junho, 2014

A atenção é um bicho com asas

Jimmy Giuffre, saxofonista, clarinetista, flautista, arranjador e compositor de jazz, escreveu e tocou música para pessoas, pássaros, borboletas e mosquitos. Há hoje quem ache que as primeiras, na altura, não lhe prestaram suficiente atenção.

Mas esta não é a história de Jimmy Giuffre, nem um ensaio sobre génios mais ou menos ignorados. Não é sequer a história da menina que perdeu a boneca porque se distraiu a olhar para o gato que se atirou da janela atrás de um pássaro que voou atrás do mosquito que era afinal a flauta tocada por Jimmy Giuffre. Estas frases eram apenas uma maneira de chamar a atenção. De chamar a atenção de pessoas, já que não sei tocar instrumento que possa prender à terra criaturas que facilmente dão à asa.  

“O Pintassilgo” de Carel Fabritius (1654)
A atenção é um recurso escasso. Na economia do tempo das nossas vidas, é talvez o menos abundante dos recursos. É pela nossa atenção que lutam publicitários e políticos, por exemplo, quando apontam, de modo mais ou menos subtil, a ranhura onde esperam a inserção do nosso cartão de débito ou o crédito do nosso voto. Todos os que acham que têm algo para dizer querem a nossa atenção, evidentemente. Todos os que gostam de nós esperam a nossa atenção, naturalmente. E há ainda os que apenas querem a atenção de quem quer que seja, mesmo que não tenham nada para oferecer em troca: um dedo de talento, amor algum, beleza bastante, saber que sirva.

Obviamente, não há atenção que chegue para tudo, nem para todos. A procura excede muito claramente a oferta. Sendo recurso tão escasso, a atenção é um bem precioso. Não sendo metal ou mineral, vale a sua ausência de peso em ouro. Mas há diferenças importantes entre atenção e quaisquer recursos transacionáveis. A primeira não pertence ao governo ou ao patrão, que dela não podem dispor como provavelmente gostariam – cortando, plafonando, taxando ou confiscando. Esta diferença interessa-me. Significa que, quer o tempo que tenhamos seja curto ou longo, aquilo a que damos atenção é da nossa exclusiva e indeclinável responsabilidade. Sobretudo para aqueles que vivem com muito pouco, ou com pouco mais do que o bastante para manter a cabeça colada aos ombros e o estômago descolado das costas, não existe mais poderoso capital. No entanto, são estes também os infelizes que, geralmente escravos de labores puramente alimentares, menos liberdade têm para escolher aquilo a que gostariam de dedicar a sua atenção.

Outra diferença entre atenção e bens apropriáveis, e talvez a mais importante, é que a atenção não se pode comprar. Pelo menos na nossa língua, os verbos que lhe servem de predicado não sugerem comércio. Dizemos “dar atenção”; dizemos “prestar atenção”; dizemos “chamar a atenção” e “desviar as atenções”. Em inglês diz-se “pay attention!”, mas na verdade não é a atenção que se paga, paga-se dando atenção, o que é sinal de boas maneiras. Pode pagar-se o tempo de alguém que se emprega para que se dedique a uma tarefa, mas o que é remunerado é o tempo nela despendido e/ou o produto do trabalho, não aquilo que durante a execução da tarefa possa ter ocupado a mente e os sentidos do executante. Ao coser um sapato, o sapateiro pode muito bem ganhar asas nos pés, como certo deus grego; sapatear uma valsa em tempo de swing, como Fred Astaire, ou encher de calçado o traseiro do seu ódio de estimação, como qualquer de nós faz quando sonha acordado.    

Mas é aqui que a proverbial fêmea do mamífero bunodonte, artiodáctilo, não ruminante e doméstico torce o rabo. Uma vez que tanta coisa é feita para atrair atenções, toda a prudência é pouca na maneira de as distribuir. Se há muito quem esbanje dinheiro, ou desaproveite aquilo que tem, mais são ainda os que malbaratam uma insanidade de horas entregando os sentidos a coisas que não fazem sentido nenhum, como se atenção sobrasse para atender a tudo e não houvesse sequelas associadas ao mau uso do tempo. O cérebro é que paga. Se muitos pensam cuidar suficientemente da saúde pelos particulares cuidados que dedicam à parte do corpo a sul do pescoço, já a matéria esponjosa alojada a norte absorve essencialmente fast-food mental, certamente porque é pré-cozinhado e de mais fácil digestão, mas também porque atrai mais atenções. Em português também se diz “prender a atenção”. Como se fosse um pássaro? O que nos prende pode ser o que nos perde.

Exemplos disto mesmo: o grosso da matéria publicada em jornais e revistas, e seus correlatos televisivos e radiofónicos, sob a designação de notícia, reportagem ou comentário, bem como muitas das obras ficcionais e programas de entretenimento que os meios de radiodifusão produzem e importam. Esta espécie de carne processada, feita de ideias acriticamente repetidas e de simplificações patetas, é por muita gente consumida em quantidades que impedem a normal circulação de estímulos elétricos entre os neurónios, os quais deveriam criar novas redes de ligações, assim aumentando a maravilhosa complexidade da máquina pensante e, quem sabe até, com sorte, gerar ideias novas.

Se todos tratassem da cabeça com os cuidados que já vão dedicando ao coração e ao estômago e não deixassem que as suas atenções fossem desviadas pelas conversas da treta que o mercado mediático tem que produzir constantemente, talvez procurando alimento mental de maior substância e uma maior variedade de estímulos sensoriais (como os que todas as artes proporcionam, por exemplo) talvez houvesse esperança de salvar, já não digo a pátria, mas a própria vida.   

O que ocupa a atenção também pode ser o que a liberta. A atenção é um bicho com asas. Como aqueles que Jimmy Giuffre tocou.

O pintassilgo de Donna Tartt, que ganhou o prémio Pulitzer desde ano, nas substanciais 800 páginas que prenderam já a atenção de muitos milhares de leitores. 

22 maio, 2014

Eurovisões

1
Para a maioria dos portugueses, não há muita diferença entre votar nas eleições para o Parlamento Europeu ou no Festival da Eurovisão. A grande diferença é que, num dos casos, a votação é precedida de música. Obviamente, refiro-me à campanha eleitoral.

2
Não sei quantas pessoas elogiaram a qualidade das listas dos maiores partidos. Devem ser listas de pijama, porque me dão muito sono.

3
Uma vez que perto de um terço dos eleitores sondados manifesta ainda a intenção de votar nos partidos que transformaram a caixa de aposentações numa caixa de esmolas e os funcionários públicos em vaquinhas leiteiras para dar de mamar a outros, o suicídio começa a parecer-me uma alternativa menos negra e uma carreira de bombista oferece um futuro mais promissor e um cinto menos apertado.

Curso do Instituto de Emprego e Formação Profissional

4
O candidato a Presidente da Comissão Europeia apoiado pelos partidos do governo acha que as pessoas são tão importantes como o feijão de lata Continente, o papel higiénico Renova, ou as loiças de Valadares. Ainda não cheira mal?    

5
Assis tem justificação para a pobreza do seu discurso europeu. É franciscano. Mas é o Rangel quem anda a comer como um passarinho e entrou em dieta rigorosa de ideias próprias (alguma vez teve?).  

08 maio, 2014

Enfiar a cachaça na veia: brevíssimo tratado sobre os perigos da erosão semântica

Já todos fizemos aquela experiência, um pouco infantil, que consiste em repetir a mesma palavra muitas vezes, até termos a sensação de que ela não faz sentido algum, de que não passa de um conjunto de sons arbitrariamente reunidos. Pois bem, se não é essa a sensação que os portugueses têm quando ouvem palavras e expressões como “ajustamento”, “despesa do estado”, “défice orçamental”, “crescimento”, “recessão”, “espiral recessiva”, “austeridade”, “regresso aos mercados”, “saída limpa”, “estado social”… Se não é essa a sensação que têm até quando ouvem dizer “esquerda” e “direita”, então é porque andam muito distraídos, ou podem estar a marchar, como regimento de soldados cegos, para a trincheira onde os conduza a voz da autoridade à qual escolheram obedecer. Pode até parecer que ali ao fundo há um jardim, mas é mais provável que exale um fedor de fim.


A repetição mecânica e preguiçosa de conceitos sujeita as palavras que os sustentam a um processo de erosão semântica que é tanto mais acelerado quanto maior é o número de pessoas que acefalamente as usam. Ao passarem de boca em boca, gastas pela saliva de políticos de aviário, porta-vozes oficiosos, comentadores incontinentes e cidadãos incautos, as palavras comportam-se como calhaus cujas arestas vão perdendo definição. A contundência da primeira pedrada, aquele momento original em que o vocábulo, à força de querer dizer qualquer coisa, poderia abrir uma janela onde ela antes não existia (ou, quem sabe, até uma cabeça), esse poder de operar na renitente espessura da realidade uma incisão que deixe penetrar alguma luz sobre a noite opaca da ignorância, dissipa-se progressivamente no rotundo de gordas frases e na moleza de arremessos verbais que tanto caem no banco, como na serradura, carpinteirando apitos para caçar patos. Até que, por fim, a rocha não passa de areia, que se atira aos olhos de quem não quer ver e suporta bem a reiteração de mentiras sobre maleitas e mezinhas. A familiaridade dos bordões pode dar algum conforto aos supersticiosos; os repetidos refrões podem até embalar os tolos, mas eu, enquanto música de fundo, aprecio pouco, e como sucedâneo de pensamento político, prefiro margarina sem sal. Escorrega melhor e não faz tanto mal. Se o absurdo não liberta (como diria Camus), pelo menos alivia (diria eu).

Mas se há palavras e expressões cujo uso frequente decorre de fatores estreitamente conjunturais, e que rapidamente voltarão à sua vidinha nas notas de rodapé e apêndices de relatórios e contas, sem que daí decorra prejuízo para o erário público ou para a saúde do corpo social, outras há que – submetidas à usura do expediente político e das mais piedosas intenções – quando esvaziadas de sentido, fazem esquecer a razão pela qual as pessoas se organizam em grupos e em estados e tornam a ideia de regressar ao estado natural para caçar o almoço e reduzir o número de concorrentes comensais um pouco menos repelente. Se o medo assalta as pessoas sob a forma de qualquer insegurança, a revolta é compreensível e a lei uma mula.

Se continuarem a dizer “desigualdade” e “pobreza” como se elas não fossem mais do que borbulhas irritantes no rosto da crise que passa, arriscam-se a não perceber que a doença é funda, vem de muito longe, se tem agravado nos últimos 30 anos e não se trata com cuidados paliativos. Não perceberam ainda que há uma “selva” em “capitalismo selvagem” e que segundo a “lei da selva” todos fazem parte da cadeia alimentar, mas a maioria acaba no sistema digestivo do predador mais forte?

Segundo Hobbes (que selvaticamente traduzo), o “estado natural”, caso não existisse uma comunidade política (uma sociedade organizada), “não deixaria lugar para produzir nada, porque os frutos da produção seriam incertos. Consequentemente, não valeria a pena cultivar a terra, nem navegar, nem haveria utilidade para as mercadorias importadas, nem construção de espaçosos edifícios, nem máquinas para transportar ou remover coisas pesadas, nem conhecimento do mundo, nem maneiras de medir o tempo, nem artes, nem letras, nem sociedade e, o pior de tudo, haveria medo constante e perigo de morte violenta, e a vida das pessoas seria solitária, embrutecida e curta.”

Se não há aqui nada reminiscente da abdicação voluntária de educação, saúde e justiça – oferecidas a todos em condições de real igualdade – camuflada pela erosão semântica da expressão “estado social” que estrategicamente penduraram nas falácias dos défices e das dívidas, é porque há muita gente interessada em “enfiar a cachaça na veia” (a expressão original, que o leitor já gastou também, metia avestruzes e areia e já não dava pedra).       

18 abril, 2014

Uma vida normal, ou o regresso da ovelha que não gosta de rebanhos

Este blogue mudou de nome. Não sei se agora será ainda a mesma coisa. O título original, “Crises e coisas feias”, conduzia os seus temas possíveis à viela estreita em que o país se deixou enfiar, ou no qual acordou encafuado por artes da quadrilha de contabilistas criativos e engenheiros da finança a quem entregou a pasta e o papel. Era um óbvio produto destes tempos difíceis e das erupções cutâneas que os fala-barato me provocam. Num certo sentido, acabava por padecer, por contágio e por contexto, de um dos males que queria diagnosticar: a redução da política a meros “ajustes de contas” – quer em sentido literal, quer figurado – e a redução do mundo e da vida à linguagem da gestão e dos mercados.

Governar, hoje, consiste quase exclusivamente em reduzir o défice (a qualquer preço) e fazer política não é mais do que o arremesso de projéteis avulsos ao telhado do vizinho. É pobrezinho. Na cabeça de demasiada gente, já não vivemos numa economia de mercado, mas numa “sociedade de mercado”, em que tudo se pode comprar e vender – desde os melões, às atenções – e em que tudo tem um preço, mas nada tem grande valor. Viver, assim, não é preciso.

O novo título do blogue, “A agenda do eremita”, sugere a liberdade que uma certa forma de solidão permite. Sem pertencer a nenhuma forma de organização coletiva (ser sócio do ACP não conta!), nem me sentindo especialmente atado por baraços profissionais (sinto-me, na minha corporação, um corpo estranho, ainda que essencialmente inerte), fico desobrigado de seguir o rebanho e dispensado de balir em uníssono na hora da ordenha. Esta ovelha não dá leite. E para o atual peditório já todos demos mais do que a conta. Só não demos os tiros que alguns mereceriam, se a revolução certa se pudesse fazer na rua.


LS Lowry: "Man Lying on a Wall", 1957

E há, certamente, uma revolução a fazer, mas é uma revolução de dar voltas à cabeça, exercício que provoca algumas vertigens. Hei de voltar a essas voltas um dia destes (se entretanto não mudar de ideias), mas a minha vida não é isto. É que, ao contrário do que os escritos anteriores poderiam sugerir, a economia e a política ocupam uma parte bastante pequenina dos meus dias. Aliás, uma das minhas estratégias de sobrevivência consiste mesmo em evitar noticiários, debates e entrevistas sobre o estado de sítio, não vá a coisa passar-me a peçonha e deixar-me a falar (e a pensar?) como os jornalistas da bolsa e dos negócios: “abrindo em baixa”, “em linha com outras praças”, “seguindo no vermelho” ou “encerrando em contra ciclo”. Ah! A pura poesia dos mercados… passados, futuros e derivados!

Este blogue estava a precisar que eu o deixasse ter uma “vida normal”, como todos os portugueses estão a precisar que os deixem ter uma vida normal. Numa vida normal e num país decente, cada um deveria poder dedicar-se à sua atividade cuidando apenas de fazer bem (e de, não podendo ou não sabendo amar, ao menos não fazer mal aos outros). Numa vida normal e num país tolerável, ninguém deveria estar entalado entre as angústias do Sudão e os impostos da Suécia. Numa vida normal e num país que não me desse urticária, eu não me ocuparia só de crises e de coisas feias por causa do bom e do bonito.

Por enquanto, ainda há quem se lembre da vida antes do eufemístico “ajustamento”: dos cortes que foram uma ceifa, da poda que foi um desbaste e do enxerto que foi de porrada. A nossa vida não é isto.

30 março, 2014

Armados e perigosos

Regresso hoje ao que mais me exaspera e deprime nas conversas diárias sobre a crise. Como tenho tentado dizer nestas páginas, de várias maneiras e com insucesso garantido (ver posts anteriores), há menos verdade nas ideias que determinam decisões políticas e económicas do que muitos, nas suas vãs filosofias, gostariam de acreditar, ou de fazer-nos acreditar. “Há mais coisas entre o céu e a terra, Horácio!” Há mais de mil maneiras de fazer bacalhau, mais do que uma maneira de esfolar o gato, e até, obviamente, várias maneiras de pagar uma dívida. É a política, estúpido!

E a política, além de ser “a arte do possível, do alcançável – a arte da segunda melhor escolha” (tradução aproximada das palavras de Bismarck) é necessariamente discurso e retórica, porque as palavras são as suas armas principais. A expressão “luta política” diz quase tudo sobre a herança belicosa dos confrontos verbais mais ou menos ritualizados a que hoje praticamente se resumem os debates parlamentares e os comícios e passeatas de fim de semana para consumo televisivo.



As palavras desta “luta” são muitas vezes armas sujas e de pontaria incerta, o que significa que têm incalculáveis danos colaterais. Quase sempre ocultam mais do que revelam e os bordões a que recorrem traem uma indigência intelectual perigosa, a prevalência inquietante de atávicos simplismos, ou ambas as coisas simultaneamente. As ideias da “culpa” da dívida e da sua “expiação”, mediante certos “sacrifícios”, por exemplo, que estão implícitas ou explícitas em muitos discursos pseudo-explicativos, são noções arquetípicas que caem bem ao puritanismo calvinista e ao masoquismo católico – ou ao casamento feliz dos dois na conjuntura atual – subjacentes até nas palavras dos mais laicos pensadores, mas ensinam coisa nenhuma sobre a natureza realmente complexa dos sarilhos em que estamos metidos. Causa não é sinónimo de culpa; dívida não é sinónimo de pecado e o “sacrifício” de pessoas inocentes no fogo do inferno do desemprego e da pobreza não devia ser solução aceitável.

Dava jeito aos pobres portugueses que os políticos deixassem de usar metáforas mortas e se libertassem dos seus amuletos verbais; que parassem de procurar, ou fingir que procuram, culpas e culpados (tirando os óbvios criminosos), e que tratassem de encontrar explicações válidas e verdadeiras soluções. O chumbo de dispersão verbal com que mutuamente se alvejam polui o ar que respiramos e deixa atrás uma nuvem negra que leva tempo a dissipar-se e não permite discernir na linha do horizonte saída “limpa” (lavada dos pecados?) para futuro algum.

Brandindo armas que usam mal, ou usam com segundas intenções, os políticos são perigosos e deveriam ser vigiados por quem os soubesse obrigar a morder a língua e a morrer do seu próprio veneno. Os vigilantes que hoje temos não servem, porque muitos jornalistas e comentadores não sabem, ou não querem, falar língua diferente e apenas ecoam as palavras que os políticos preferem que se ouçam.

O mundo muda todos os dias, mas nós estamos metidos numa camisa de forças políticas cujo discurso estagnado amortalha o país, que só não vai morrer porque é teimoso. 

Instantes

1   Diziam, pela calada agonia dos instantes que eram mudos.   Julgavam-nos pela constância infinita das lamentações pelo fôlego breve do pá...