18 abril, 2014

Uma vida normal, ou o regresso da ovelha que não gosta de rebanhos

Este blogue mudou de nome. Não sei se agora será ainda a mesma coisa. O título original, “Crises e coisas feias”, conduzia os seus temas possíveis à viela estreita em que o país se deixou enfiar, ou no qual acordou encafuado por artes da quadrilha de contabilistas criativos e engenheiros da finança a quem entregou a pasta e o papel. Era um óbvio produto destes tempos difíceis e das erupções cutâneas que os fala-barato me provocam. Num certo sentido, acabava por padecer, por contágio e por contexto, de um dos males que queria diagnosticar: a redução da política a meros “ajustes de contas” – quer em sentido literal, quer figurado – e a redução do mundo e da vida à linguagem da gestão e dos mercados.

Governar, hoje, consiste quase exclusivamente em reduzir o défice (a qualquer preço) e fazer política não é mais do que o arremesso de projéteis avulsos ao telhado do vizinho. É pobrezinho. Na cabeça de demasiada gente, já não vivemos numa economia de mercado, mas numa “sociedade de mercado”, em que tudo se pode comprar e vender – desde os melões, às atenções – e em que tudo tem um preço, mas nada tem grande valor. Viver, assim, não é preciso.

O novo título do blogue, “A agenda do eremita”, sugere a liberdade que uma certa forma de solidão permite. Sem pertencer a nenhuma forma de organização coletiva (ser sócio do ACP não conta!), nem me sentindo especialmente atado por baraços profissionais (sinto-me, na minha corporação, um corpo estranho, ainda que essencialmente inerte), fico desobrigado de seguir o rebanho e dispensado de balir em uníssono na hora da ordenha. Esta ovelha não dá leite. E para o atual peditório já todos demos mais do que a conta. Só não demos os tiros que alguns mereceriam, se a revolução certa se pudesse fazer na rua.


LS Lowry: "Man Lying on a Wall", 1957

E há, certamente, uma revolução a fazer, mas é uma revolução de dar voltas à cabeça, exercício que provoca algumas vertigens. Hei de voltar a essas voltas um dia destes (se entretanto não mudar de ideias), mas a minha vida não é isto. É que, ao contrário do que os escritos anteriores poderiam sugerir, a economia e a política ocupam uma parte bastante pequenina dos meus dias. Aliás, uma das minhas estratégias de sobrevivência consiste mesmo em evitar noticiários, debates e entrevistas sobre o estado de sítio, não vá a coisa passar-me a peçonha e deixar-me a falar (e a pensar?) como os jornalistas da bolsa e dos negócios: “abrindo em baixa”, “em linha com outras praças”, “seguindo no vermelho” ou “encerrando em contra ciclo”. Ah! A pura poesia dos mercados… passados, futuros e derivados!

Este blogue estava a precisar que eu o deixasse ter uma “vida normal”, como todos os portugueses estão a precisar que os deixem ter uma vida normal. Numa vida normal e num país decente, cada um deveria poder dedicar-se à sua atividade cuidando apenas de fazer bem (e de, não podendo ou não sabendo amar, ao menos não fazer mal aos outros). Numa vida normal e num país tolerável, ninguém deveria estar entalado entre as angústias do Sudão e os impostos da Suécia. Numa vida normal e num país que não me desse urticária, eu não me ocuparia só de crises e de coisas feias por causa do bom e do bonito.

Por enquanto, ainda há quem se lembre da vida antes do eufemístico “ajustamento”: dos cortes que foram uma ceifa, da poda que foi um desbaste e do enxerto que foi de porrada. A nossa vida não é isto.

30 março, 2014

Armados e perigosos

Regresso hoje ao que mais me exaspera e deprime nas conversas diárias sobre a crise. Como tenho tentado dizer nestas páginas, de várias maneiras e com insucesso garantido (ver posts anteriores), há menos verdade nas ideias que determinam decisões políticas e económicas do que muitos, nas suas vãs filosofias, gostariam de acreditar, ou de fazer-nos acreditar. “Há mais coisas entre o céu e a terra, Horácio!” Há mais de mil maneiras de fazer bacalhau, mais do que uma maneira de esfolar o gato, e até, obviamente, várias maneiras de pagar uma dívida. É a política, estúpido!

E a política, além de ser “a arte do possível, do alcançável – a arte da segunda melhor escolha” (tradução aproximada das palavras de Bismarck) é necessariamente discurso e retórica, porque as palavras são as suas armas principais. A expressão “luta política” diz quase tudo sobre a herança belicosa dos confrontos verbais mais ou menos ritualizados a que hoje praticamente se resumem os debates parlamentares e os comícios e passeatas de fim de semana para consumo televisivo.



As palavras desta “luta” são muitas vezes armas sujas e de pontaria incerta, o que significa que têm incalculáveis danos colaterais. Quase sempre ocultam mais do que revelam e os bordões a que recorrem traem uma indigência intelectual perigosa, a prevalência inquietante de atávicos simplismos, ou ambas as coisas simultaneamente. As ideias da “culpa” da dívida e da sua “expiação”, mediante certos “sacrifícios”, por exemplo, que estão implícitas ou explícitas em muitos discursos pseudo-explicativos, são noções arquetípicas que caem bem ao puritanismo calvinista e ao masoquismo católico – ou ao casamento feliz dos dois na conjuntura atual – subjacentes até nas palavras dos mais laicos pensadores, mas ensinam coisa nenhuma sobre a natureza realmente complexa dos sarilhos em que estamos metidos. Causa não é sinónimo de culpa; dívida não é sinónimo de pecado e o “sacrifício” de pessoas inocentes no fogo do inferno do desemprego e da pobreza não devia ser solução aceitável.

Dava jeito aos pobres portugueses que os políticos deixassem de usar metáforas mortas e se libertassem dos seus amuletos verbais; que parassem de procurar, ou fingir que procuram, culpas e culpados (tirando os óbvios criminosos), e que tratassem de encontrar explicações válidas e verdadeiras soluções. O chumbo de dispersão verbal com que mutuamente se alvejam polui o ar que respiramos e deixa atrás uma nuvem negra que leva tempo a dissipar-se e não permite discernir na linha do horizonte saída “limpa” (lavada dos pecados?) para futuro algum.

Brandindo armas que usam mal, ou usam com segundas intenções, os políticos são perigosos e deveriam ser vigiados por quem os soubesse obrigar a morder a língua e a morrer do seu próprio veneno. Os vigilantes que hoje temos não servem, porque muitos jornalistas e comentadores não sabem, ou não querem, falar língua diferente e apenas ecoam as palavras que os políticos preferem que se ouçam.

O mundo muda todos os dias, mas nós estamos metidos numa camisa de forças políticas cujo discurso estagnado amortalha o país, que só não vai morrer porque é teimoso. 

08 março, 2014

O verdadeiro carnaval: entremez e desfile de um país emburrecido


Acordo num país mal ataviado, de barba por fazer
e a notícia da manhã traduz o que importa
numa língua morta.

As frases recitadas
que todas as noites nos embalam o sono
e nos tolhem os sonhos,
são uma missa entoada em latim vulgar,
não dão pra dançar.

Ouço cantar uma língua de contas
e de trapos
e vejo aos saltos coelhos e cartolas,
merkels e mercados,
bancos e bandidos,
e muitos passos
perdidos.

Desfilam sociedades secretas
e casas de segredos,
arranjinhos e arremedos,
piores emendas para maus sonetos
e muitos bichos caretos.

Entre um estômago meio cheio
e uma cabeça meio vazia,
olhamos como se esperássemos
um milagre de maria.

Mas diz que, não tarda, vamos ali ao mercado
e que é tudo fiado,
mas com juros baixinhos.
Pra comprar jaquinzinhos?

Diz que o país, se calhar,
vai crescer um cabelo.
E o tamanho do pelo
vai pagar o pão?

Diz que dívida assim
e o défice anão; 
diz que pouco salário
e menor pensão;
diz que quem fala do alto
é quem tem a razão,

mas o maior défice
é de imaginação.


24 fevereiro, 2014

Clube dos austríacos mortos

Sabem qual é a melhor maneira de governar o país? Eu não sei, mas quanto mais é o pouco que sei, mais me surpreende a segurança dos que presumem saber.

Quem conseguisse ouvir, de orelhas limpas, o que dizem políticos e comentadores, de todos os orientes ideológicos, deveria ficar confuso. Admitindo a possibilidade de alguém ser objetivo ao ponto de não deixar nenhum preconceito afetar o seu juízo, a variedade de soluções governativas incompatíveis que cobrem o céu e encobrem o sol conferiria a todos o direito à perplexidade e à ignorância. Contra lógica e razão, porém, há demasiada gente que parece nunca ter dúvidas quanto aos benefícios desta política, ou aos malefícios daqueloutra. 

Na verdade, só não fica toda a gente de olhos trocados perante discórdias e dislates, porque todos temos um filtro automático, que deixa facilmente penetrar no crânio aquilo que nos agrada e que rejeita, ou aceita com muita dificuldade, tudo o que ameace levantar o pó das ideias recebidas. É compreensível, mas é forte pena, porque significa que o nosso nível de exigência com programas políticos é demasiado baixo e se resume, em geral, a cair para o lado da cama em que dormimos melhor. No fundo, esperamos apenas que nos ofereçam o conforto das opiniões para as quais o contexto social que habitamos nos moldou e os nossos interesses nos empurram. Ninguém pense que é imune a este tipo de preconceito. Mudar de ideias, e sobretudo ser persuadido a mudar de ideias pelos argumentos de alguém que não nos seja próximo e estimado, é mais difícil do que mudar as pintas do leopardo.

Esta predisposição natural é o que explica convicções ideológicas que não passam daquilo a que me apetece chamar uma “doença mimética degenerativa”. Ou seja, tendemos a reproduzir inconscientemente, mas com crescente grau de imperfeição relativamente ao modelo original, coisas que no seu tempo não passaram de boas hipóteses explicativas para realidades outras, mas que continuamos a aceitar como se fossem os equivalentes políticos e económicos da lei da gravidade: coisas universais e imutáveis. Só que não pode haver duas leis da gravidade! Segundo as leis da física, as coisas caem todas na mesma direção e não é provável que se ouça alguém defender acaloradamente opinião contrária, a não ser, talvez, num manicómio.

Não sendo possível provar que todos os políticos, economistas e comentadores sejam loucos ou desonestos (não vale fazer piadas fáceis), conclui-se das suas divergências que, no conhecimento das sociedades e no governo das nações, as leis são menos evidentes do que nas ciências em que se podem fazer demonstrações experimentais e matemáticas. Nas ciências sociais, das três, uma: ou ainda não se encontrou uma lei da gravidade, ou a sua demonstração está por fazer, ou, simplesmente, ela não existe. Eu sei qual das três hipóteses me parece a mais provável, mas deixo que os leitores façam as suas próprias escolhas. 
           
Como não se espera que um político, muito menos um político que ocupa ou se candidata a um cargo executivo, exprima dúvidas e responda “não sei”, os países são governados com base em convicções que só podem ser, na melhor das hipóteses, “ideológicas” e, nos casos piores, a defesa de interesses instalados mais ou menos óbvios. Dando de barato a indecência desta segunda hipótese, é interessante saber como se formam as ideologias da primeira. De onde se retiram as certezas quanto à justeza (já não digo à “verdade”) do que se pensa? Como os políticos não são feitos de matéria diferente do resto dos humanos, na falta de conhecimento seguro, usam os mesmos filtros automáticos, lugares comuns e ideias “mimeticamente degeneradas” a que quase toda a gente recorre quotidianamente.

Os políticos que hoje estão em exercício, em Portugal e em muitos outros países, não revelam maior espessura intelectual do que um filete de cavala, e a linguagem que utilizam trai a origem das suas poucas ideias. Aqueles que agora nos governam pertencem, alguns sem o saberem, ao “clube dos austríacos mortos”, que continua a dominar o pensamento dos que acreditam que se descobriu uma fórmula político-económica para o melhor governo das sociedades apenas porque ficaram demonstrados o fracasso e os crimes dos regimes comunistas, mas em que o próprio conceito de sociedade é enfraquecido pelo individualismo que constitui o núcleo da doutrina. Na famosas palavras de Thatcher: “There is no such thing as society. There are individual men and women, and there are families.” (Não há sociedade. Há homens e mulheres individuais e há famílias.)

No livro Ill Fares the Land (2010), o historiador Tony Judt traçou sumariamente a descendência intelectual das ideias dominantes que desde a década de oitenta fizeram marcha atrás nas reformas sociais do período posterior à 2ª Guerra Mundial. Se a origem próxima da fé cega nas virtudes do mercado, mais ou menos desregulado, e do suposto imperativo de reduzir o papel do estado à insignificância, está nos chamados “rapazes de Chicago”, a doutrina destes é já uma degenerescência de ideias anteriores, nascidas num contexto político e social bem diferente daquele em que vivemos hoje.

F. A. Hayek e Ludwig von Mises.

Mas o problema não está nas ideias de Friedrich Hayek ou Ludwig von Mises, que inspiraram a doutrina do mercado livre da “Escola de Chicago”, nem na ideia de “destruição criativa” do capitalismo de Joseph Schumpeter, muito menos na “sociedade aberta” de Karl Popper, ou até nos métodos de gestão de Peter Drucker. A Áustria em que todos eles nasceram, viveram e da qual todos eles escaparam, entre o crepúsculo do império Austro-Húngaro e as convulsões políticas e económicas que se prolongaram até ao fim da Guerra Fria, sob a ameaça permanente e sucessiva de regimes opressivos e sanguinários movidos por ideologias arregimentadoras e coletivizantes, pode explicar em boa parte o seu excessivo individualismo e a resistência a conceitos e categorias que lhes recordassem tribulações passadas. Compreensível instinto, e uma defesa contra extremos indesejáveis, mas que exige contextualização e distância crítica, que nos protejam hoje de outros dogmatismos, receituários simplistas, ou “ideias mimeticamente degeneradas”.  

Traduzo aqui algumas palavras de Tony Judt:

“(…) quando recapitulamos os clichés convencionais sobre mercados livres e liberdades ocidentais, estamos de facto a fazer eco – como luz de uma estrela que empalidece – de um debate inspirado e ocorrido há setenta anos, entre homens na sua maioria nascidos em finais do século XIX. É verdade que os termos económicos em que somos levados a pensar hoje em dia não são geralmente associados a estas distantes divergências e experiências políticas. A maioria dos estudantes de pós-graduações em gestão nunca ouviram falar de alguns destes exóticos pensadores estrangeiros e não são encorajados a lê-los. E no entanto, sem um entendimento das origens austríacas da sua (e da nossa) maneira de pensar, é como se falássemos uma língua que não compreendemos inteiramente.”
E vamos continuar a falar. E a ouvir. E a não compreender muito bem aquilo que dizemos ou ouvimos. Mas nem por isso duvidando o suficiente. Duvidamos dos políticos e, no entanto, vamos caucionando as políticas. Só porque precisamos de acordar amanhã e de acreditar que é outro dia, mas sem sabermos bem o que nos dizem, ou o que aquilo que nos dizem quer dizer.     

14 fevereiro, 2014

Mudar de sheep

A situação do país continua a preocupar-me um bocadinho, mas aparentemente não devia. Não só é bastante evidente que estamos todos cerca de zero-vírgula-quase-nada-por-cento mais ricos, como finalmente descobrimos que o país está nas mãos de um bom pastor. Perdão, gestor. Eu não sou grande coisa em contas, por isso não entendi bem como é que esta soma se traduziu em mais uma subtração no meu boletim de vencimento, mas também pode ser a graduação dos óculos.

Ou então, tudo isto se passa num quadro surrealista. Uma destas noites, não sei se mal acordado, meio adormecido ou simplesmente em sonhos, julguei ouvir o primeiro-ministro fazer uma palestra (discurso, alocução, aula de gestão?) sobre Mirós e ovelhas. Perante um auditório de autarcas, o senhor de São Bento entoava mais uma vez o recitativo da dívida seguido da ária da troika e, não obstante ser barítono, atreveu-se, qual tenor, a um dó de peito por causa de umas telas que não podia ter. Dava ele a entender que quem não tem dinheiro, não tem bichos.

Sem alucinogénio que explicasse a estranheza do que ouvia, comecei a suspeitar de um estado de dissonância cognitiva quando o PM verberou aqueles que se julgam donos do país e ainda por cima querem uns Mirós, mas que, afinal, parece que só têm umas ovelhas velhas (ponto de exclamação!).

Cartaz do filme "Black Sheep", 2006

É possível que a minha confusão se deva ao facto de o orador ter usado termos estrangeiros (estes gestores gostam muito de falar inglês). Segundo ele, “é preciso mudar de sheep”. Precisamos todos de mudar de sheep, aparentemente. Ainda sem entender a relação entre os quadros de Miró e o gado ovino, percebi que afinal podemos ter bichos, desde que sejam umas ovelhas novas.

Para quem não saiba inglês, nem a consoante inicial de chip (a palavra que Passos Coelho tentou dizer) se pronuncia como a de sheep (a que ele efetivamente disse), nem as vogais rimam. Mas chip rima com ship, o barco em que estamos metidos neste dilúvio e do qual só vão sair ilesos os tubarões e o caruncho. 

De uma só penada, o primeiro-ministro demonstrou o seu amor pela arte e pelo património e apresentou uma justificação prática da necessidade de testes de inglês no 9º ano.


29 dezembro, 2013

A sopa dos pobres é o chichi dos ricos?

Vivemos hoje uma ironia trágica. Aqueles que nos vendem a ideia da “distribuição dos sacrifícios” (expressão eufemística que significa que os pobres têm que pagar pelas asneiras dos ricos, ou os cidadãos individuais pelos crimes dos bancos) são também os que menos acreditam na “redistribuição da riqueza”. Esta seria a função de uma fiscalidade verdadeiramente progressiva e equilibrada: corrigir assimetrias que ofendem o mais elementar sentido da decência e dividem a sociedade entre uma pequena vara de porcos anafados e crescentes rebanhos de cordeiros escanzelados, corroendo por dentro o corpo social como metástase de um tumor maligno.
   
A ideia de redistribuição por via fiscal, materializada na criação do estado social de tipo europeu, fez escola e caminho nos países mais desenvolvidos desde os reformismos de finais do século XIX até à década de 1970, reduzindo progressivamente o fosso de rendimentos e criando sociedades mais felizes. Não é por acaso que os países com menores diferenças de rendimentos aparecem sempre entre aqueles com mais elevados índices de bem-estar. De então para cá, para desgraça de muitos e benefício de poucos, outra ortodoxia tomou conta do espaço mental e, em consequência, as desigualdades atingiram níveis pornográficos.

O sistema que hoje insidiosamente se semeia, a pretexto de uma muito conveniente crise financeira, protege preferencialmente os lucros, em detrimento dos rendimentos do trabalho, e tem vindo a reduzir progressivamente a proteção e os benefícios sociais que asseguravam uma certa medida de igualdade e de mobilidade social, condições necessárias de uma sociedade justa e saudável. Isto já foi dito por tanta gente (incluindo o Papa) e de tantas maneiras, que se tornou um mero lugar-comum. E, no entanto, é geralmente ignorado, na melhor das hipóteses, com um encolher de ombros condescendente e com uma arrogância intolerável. A crise atual serve apenas como justificação fácil para a tomada de medidas que estão entre os mandamentos de uma doutrina que vem de longe e que é o oposto da social-democracia europeia, do liberalismo americano e da doutrina social da igreja católica.

E tudo em nome de um suposto incentivo ao investimento privado e à criação de riqueza, da qual todos beneficiariam a prazo (nem que seja no longo prazo, quando todo estivermos mortos). Essencialmente, é a teoria do trickle-down economics (designação engraçada que, nem de propósito, se deve a uma graça do humorista americano Will Rogers na era da Grande Depressão). Os seus defensores acreditam, ou querem fazer-nos acreditar, que se os ricos estiverem muito, muito cheios, alguma liquidez lhes escorrerá pelas pernas abaixo e que este acidente urinário fará a todos muito proveito.


Percebe-se que haja quem goste da ideia, mas parece que as coisas não funcionam bem assim. Nem a acumulação de riqueza por uma minoria parece ter direta correlação com o crescimento da economia, nem os pobres ganham com isso mais do que umas migalhas extraviadas e contrafeitas (ver, por exemplo, este livrinho). Como se viu este ano em Portugal, com mais 85 milionários a chorar a caminho do banco e muitos milhares às gargalhadas no banco alimentar, as bexigas dos ricos têm uma notável capacidade de retenção. 



08 dezembro, 2013

À moral de César não bastava ser pobre

Quando tantos sofrem a tortura refinada de voltar a ingerir óleo de fígado de bacalhau; quando se submete o corpo do paciente país às sangrias que o barbeiro receitou, parecem nascer como cogumelos na terra húmida, entre calhaus e tubérculos, os moralistas espontâneos. Devo advertir que são, em geral, nocivos à saúde, embora os efeitos variem de pessoa para pessoa, consoante as defesas que o organismo de cada uma tenha desenvolvido contra os arrogantes dislates e a néscia autossuficiência. No meu caso, o primeiro sintoma é sempre a náusea. 

Aparecem, então, os cogumelos moralistas. Vêm de catecismo e de cacete, de fé e de fado, e veem um país a preto e branco. Dividem sempre tudo em dois: o público e o privado; os preguiçosos e os empreendedores; os que usam chapéu preto e os que usam chapéu branco; os que estão de acordo com as opiniões que eles mesmos geraram ou enxertaram, numa relação endogâmica entre os dois neurónios eremitas a quem arrendam a caixa craniana, e os estúpidos, que são todos os outros.



Dizia um, erguendo a voz e agitando os bracinhos gordos espetados, com as mãos quase postas, como quem impinge o livrinho sagrado das suas receitas, e a cabeça em cima dos ombros como um abacaxi invertido: “Dos verdadeiros pobres ninguém fala!”. E repetia: “Dos verdadeiros pobres ninguém fala!”. Quando ouvi o senhor professor brandir esta síntese da sua perfeita dialética, senti-me naturalmente esmagado sob o peso de tanta densidade filosófica, humilhado na minha confessa omissão, que ele, num golpe de virtuosa retórica, tão perfeitamente flagelava. A ciência do homem! O cume altivo da sabedoria daquele verdadeiro Everest intelectual, tão perto do céu quanto a seres humanos seria possível alcançar, se não tivessem passado da Idade do Bronze e inventado os aviões!

Mas depressa me dei conta do truque. Lá estava mais uma marota divisãozinha em dois: os “verdadeiros pobres” e os que “andam a fingir que são pobres”. Não há nada como dividir os pobres. Os pobres são mesmo bastante divisíveis. São bem mais fáceis de dividir do que os sacrifícios da austeridade e do que aqueles chocolates que nunca partem bem ao meio. Então quando os pobres se multiplicam (mesmo sem se reproduzirem, os madraços!) o melhor é mesmo dividi-los. Para reinar, sim. Estes moralistas são muito reinadios. E a melhor maneira de dividir os pobres é mesmo dizer que só uma parte deles é que é “verdadeiramente” pobre. Reparem como pendurei umas aspas, ou umas orelhas de burro, nas palavras do doutor.

Não é preciso ser filósofo para distinguir a pobreza absoluta daqueles a quem tudo falta – comida, escola, medicamentos, trabalho, um tostão furado e um lugar onde cair morto – da pobreza relativa daqueles para quem, não obstante o que possam ter, não existe garantia de participação plena numa sociedade na qual supostamente têm direitos iguais aos de todos os outros cidadãos – uma casa decente, comida bastante, a melhor escola possível, saúde de acordo com as necessidades, e o rendimento que chegue para garantir esses direitos e, já agora, também o acesso a uns quantos bens materiais e imateriais que só aos filisteus parecem luxo, mas são condição de dignidade. A exclusão social por razões económicas, que limita direitos e reduz a qualidade de vida, ainda que seja apenas por comparação com a qualidade de vida daqueles com quem se partilha a nacionalidade, não merece, na filosofia moral deste católico caridoso, pertencer à categoria de pobreza. É que, ainda por cima, em vez de darem graças a Deus por poderem usufruir de oxigénio gratuito, estes “remediados” (será que o professor os admite ao menos nesta condição?) têm o descaramento de se queixar e “andam a fingir que são pobres”. Não serão pobres, mas são seguramente mentirosos e mal-agradecidos.

Ao venturoso professor César pode faltar a imaginação para se ver na pele dos outros, daí a falta de empatia. Para a lagarta da alface, o mundo é uma alface. Mas o bem-aventurado professor das Neves leu o sermão da montanha e sabe que é seu o reino dos céus, ao qual ascenderá em primeira classe, a dos pobres em espírito.  

Instantes

1   Diziam, pela calada agonia dos instantes que eram mudos.   Julgavam-nos pela constância infinita das lamentações pelo fôlego breve do pá...