Mas esta não é a
história de Jimmy Giuffre, nem um ensaio sobre génios mais ou menos ignorados.
Não é sequer a história da menina que perdeu a boneca porque se distraiu a
olhar para o gato que se atirou da janela atrás de um pássaro que voou atrás do
mosquito que era afinal a flauta tocada por Jimmy Giuffre. Estas frases eram
apenas uma maneira de chamar a atenção. De chamar a atenção de pessoas, já que não
sei tocar instrumento que possa prender à terra criaturas que facilmente dão à
asa.
|
“O Pintassilgo” de Carel
Fabritius (1654) |
A atenção é um
recurso escasso. Na economia do tempo das nossas vidas, é talvez o menos
abundante dos recursos. É pela nossa atenção que lutam publicitários e
políticos, por exemplo, quando apontam, de modo mais ou menos subtil, a ranhura
onde esperam a inserção do nosso cartão de débito ou o crédito do nosso voto.
Todos os que acham que têm algo para dizer querem a nossa atenção,
evidentemente. Todos os que gostam de nós esperam a nossa atenção,
naturalmente. E há ainda os que apenas querem a atenção de quem quer que seja,
mesmo que não tenham nada para oferecer em troca: um dedo de talento, amor
algum, beleza bastante, saber que sirva.
Obviamente, não há
atenção que chegue para tudo, nem para todos. A procura excede muito claramente
a oferta. Sendo recurso tão escasso, a atenção é um bem precioso. Não sendo
metal ou mineral, vale a sua ausência de peso em ouro. Mas há diferenças
importantes entre atenção e quaisquer recursos transacionáveis. A primeira não
pertence ao governo ou ao patrão, que dela não podem dispor como provavelmente
gostariam – cortando, plafonando, taxando ou confiscando. Esta diferença
interessa-me. Significa que, quer o tempo que tenhamos seja curto ou longo,
aquilo a que damos atenção é da nossa exclusiva e indeclinável
responsabilidade. Sobretudo para aqueles que vivem com muito pouco, ou com
pouco mais do que o bastante para manter a cabeça colada aos ombros e o estômago
descolado das costas, não existe mais poderoso capital. No entanto, são estes
também os infelizes que, geralmente escravos de labores puramente alimentares, menos
liberdade têm para escolher aquilo a que gostariam de dedicar a sua atenção.
Outra diferença entre
atenção e bens apropriáveis, e talvez a mais importante, é que a atenção não se
pode comprar. Pelo menos na nossa língua, os verbos que lhe servem de predicado
não sugerem comércio. Dizemos “dar atenção”; dizemos “prestar atenção”; dizemos
“chamar a atenção” e “desviar as atenções”. Em inglês diz-se “pay attention!”, mas na verdade não é a
atenção que se paga, paga-se dando atenção, o que é sinal de boas maneiras. Pode
pagar-se o tempo de alguém que se emprega para que se dedique a uma tarefa, mas
o que é remunerado é o tempo nela despendido e/ou o produto do trabalho, não aquilo
que durante a execução da tarefa possa ter ocupado a mente e os sentidos do
executante. Ao coser um sapato, o sapateiro pode muito bem ganhar asas nos pés,
como certo deus grego; sapatear uma valsa em tempo de swing, como
Fred Astaire, ou encher de calçado o traseiro do seu
ódio de estimação, como qualquer de nós faz quando sonha acordado.
Mas é aqui que a proverbial fêmea do mamífero bunodonte,
artiodáctilo, não ruminante e doméstico torce o rabo. Uma vez que tanta coisa é
feita para atrair atenções, toda a prudência é pouca na maneira de as
distribuir. Se há muito quem esbanje dinheiro, ou desaproveite aquilo que tem, mais
são ainda os que malbaratam uma insanidade de horas entregando os sentidos a
coisas que não fazem sentido nenhum, como se atenção sobrasse para atender a
tudo e não houvesse sequelas associadas ao mau uso do tempo. O cérebro é que
paga. Se muitos pensam cuidar suficientemente da saúde pelos particulares
cuidados que dedicam à parte do corpo a sul do pescoço, já a matéria esponjosa alojada
a norte absorve essencialmente fast-food
mental, certamente porque é pré-cozinhado e de mais fácil digestão, mas também
porque atrai mais atenções. Em português também se diz “prender a atenção”.
Como se fosse um pássaro? O que nos prende pode ser o que nos perde.
Exemplos disto mesmo:
o grosso da matéria publicada em jornais e revistas, e seus correlatos
televisivos e radiofónicos, sob a designação de notícia, reportagem ou
comentário, bem como muitas das obras ficcionais e programas de entretenimento que
os meios de radiodifusão produzem e importam. Esta espécie de carne processada,
feita de ideias acriticamente repetidas e de simplificações patetas, é por
muita gente consumida em quantidades que impedem a normal circulação de
estímulos elétricos entre os neurónios, os quais deveriam criar novas redes de ligações,
assim aumentando a maravilhosa complexidade da máquina pensante e, quem sabe
até, com sorte, gerar ideias novas.
Se todos tratassem da
cabeça com os cuidados que já vão dedicando ao coração e ao estômago e não
deixassem que as suas atenções fossem desviadas pelas conversas da treta que o
mercado mediático tem que produzir constantemente, talvez procurando alimento mental
de maior substância e uma maior variedade de estímulos sensoriais (como os que
todas as artes proporcionam, por exemplo) talvez houvesse esperança de salvar, já
não digo a pátria, mas a própria vida.
O que ocupa a atenção
também pode ser o que a liberta. A atenção é um bicho com asas. Como aqueles
que Jimmy Giuffre tocou.
|
O pintassilgo de Donna Tartt, que ganhou o prémio
Pulitzer desde ano, nas substanciais 800 páginas que prenderam já a atenção de
muitos milhares de leitores.
|