you can't leave me on the shelf
you gotta commit yourself
you gotta commit yourself
Billie Holiday, “Now or Never” (1949)
Quando olho
para uma estante, vejo apenas um sítio para arrumar livros. Tenho uma visão
pitosga do mobiliário e da decoração. Embora saiba que as prateleiras podem ser
usadas para colocar muitos outros objetos, a coisa que primeiro me ocorre, certamente
por força do que a vida me fez e do que eu faço dela, é aquilo que as
prateleiras podem fazer pela minha modesta biblioteca. A limitação não está nas
estantes, portanto, mas na minha imaginação.
As minhas
estantes são estantes especializadas. Como se especializaram em livros, estes acabaram
por ocupar todo o espaço de que elas podiam dispor. Logo, as estantes são como
as pessoas. Às nossas especializações, profissionais ou diletantes, costumamos
chamar “ocupações”, designação que parece apropriada, uma vez que elas ocupam
muito do espaço onde outras coisas poderiam caber. Podem ir ocupando literalmente
o espaço físico e finito das casas onde vivemos, se forem como as estantes de
quem adquire muitos livros, por exemplo, mas ocupam sobretudo o espaço da
mente, cujo potencial infinito costumamos confinar aos dois ou três quartinhos
habituais, aqueles recantos da casa do ser que nos dão o conforto da
familiaridade.
Somos, pelo
menos em parte, aquilo que nos ocupa, mas estes hábitos ocupacionais são apenas
aquilo de que podemos mais facilmente falar quando nos apresentamos a alguém. Dizemos:
“sou professor”, “sou eletricista”, “sou melómano”, “sou colecionador de borboletas”,
etc. As ocupações são identidades de cartão, bidimensionais e recicláveis, embora
poucas vezes as reciclemos de forma voluntária, porque perder um hábito que socialmente
nos define é mais difícil do que perder alguém de família.
E quando a autodefinição
nos agrada, persistimos. Se a persistência se torna monomania, porém, podemos um
dia acordar com o mundo às avessas: em vez de ver nas estantes superfícies para
arrumação de livros, podemos dar connosco a achar que o mundo inteiro é apenas um
conjunto de estantes em potência. O hábito torna-se assim num vício com inclinações
expansionistas. A partir daí, a lógica já só existe na mente do obcecado
bibliómano, que ainda assim a achará evidente e universalmente compreensível.
Portanto, até
os bons hábitos podem ser maus. A especialização disciplinar dos estudiosos de
qualquer matéria é um desses hábitos expansionistas: é uma coisa tão boa que
pode ser catastrófica. É desejável, porque é sempre preciso saber mais e é
impossível não restringir aquilo que se estuda a uma pequena parcela da
realidade de cada vez. Só que, quanto mais o olhar se especializa e mais é o
que vê no menos que olha, mais é também o que perde naquilo que deixa de olhar:
Até que a luz que se faz não deixa ver
a luz inteira
e a noite fechada de fraco fósforo
se alumia
Aquilo que nos define pode ser
também aquilo que nos cega e nos constrange. E constrange e obscurece o mundo ao
ponto de o tornar invisível, de tão claro.
Mas o que é realmente aterrador é quando a visão
estreita de pessoas individuais se transforma em todo um Zeitgeist, que em português se costuma traduzir por “espírito do
tempo”. É o que ocorre quando o olhar de uma especialidade se transforma na
única maneira de pensar sobre a realidade, ou uma parte considerável dela,
quando uma monomania se transforma
numa monocultura.
Infelizmente, vivemos numa
dessas monoculturas e a especialidade que arruma o mundo todo nas suas
prateleiras é a economia. Já ouvi dizer que a crise nos transformou a todos em
economistas instantâneos, o que, para mim, não significa que haja mais gente a
perceber melhor o que se passa, mas mais gente a olhar para o mundo pelo lado
errado do telescópio. Pode ser que muitos não tenham dado conta, mas toda a
conversa que passa por política nestes tempos que não correm, mas se arrastam, não
é mais do que a redução pitosga da sociedade a um conjunto de indicadores
macroeconómicos e variáveis contabilísticas.
A sociedade não é redutível a
relações económicas. A economia não é uma “teoria de tudo”. Andam a pôr a nossa
vida nas prateleiras erradas.