Quando tantos sofrem a tortura refinada de voltar a ingerir óleo de fígado
de bacalhau; quando se submete o corpo do paciente país às sangrias que o
barbeiro receitou, parecem nascer como cogumelos na terra húmida, entre calhaus
e tubérculos, os moralistas espontâneos. Devo advertir que são, em geral,
nocivos à saúde, embora os efeitos variem de pessoa para pessoa, consoante as
defesas que o organismo de cada uma tenha desenvolvido contra os arrogantes
dislates e a néscia autossuficiência. No meu caso, o primeiro sintoma é sempre
a náusea.
Aparecem, então, os cogumelos moralistas. Vêm de catecismo e de cacete, de
fé e de fado, e veem um país a preto e branco. Dividem sempre tudo em dois: o
público e o privado; os preguiçosos e os empreendedores; os que usam chapéu
preto e os que usam chapéu branco; os que estão de acordo com as opiniões que
eles mesmos geraram ou enxertaram, numa relação endogâmica entre os dois
neurónios eremitas a quem arrendam a caixa craniana, e os estúpidos, que são
todos os outros.
Dizia um, erguendo a voz e agitando os bracinhos gordos espetados, com as
mãos quase postas, como quem impinge o livrinho sagrado das suas receitas, e a
cabeça em cima dos ombros como um abacaxi invertido: “Dos verdadeiros pobres
ninguém fala!”. E repetia: “Dos verdadeiros pobres ninguém fala!”. Quando ouvi
o senhor professor brandir esta síntese da sua perfeita dialética, senti-me naturalmente
esmagado sob o peso de tanta densidade filosófica, humilhado na minha confessa
omissão, que ele, num golpe de virtuosa retórica, tão perfeitamente flagelava.
A ciência do homem! O cume altivo da sabedoria daquele verdadeiro Everest
intelectual, tão perto do céu quanto a seres humanos seria possível alcançar, se
não tivessem passado da Idade do Bronze e inventado os aviões!
Mas depressa me dei conta do truque. Lá estava mais uma marota divisãozinha
em dois: os “verdadeiros pobres” e os que “andam a fingir que são pobres”. Não
há nada como dividir os pobres. Os pobres são mesmo bastante divisíveis. São
bem mais fáceis de dividir do que os sacrifícios da austeridade e do que
aqueles chocolates que nunca partem bem ao meio. Então quando os pobres se multiplicam
(mesmo sem se reproduzirem, os madraços!) o melhor é mesmo dividi-los. Para
reinar, sim. Estes moralistas são muito reinadios. E a melhor maneira de dividir
os pobres é mesmo dizer que só uma parte deles é que é “verdadeiramente” pobre.
Reparem como pendurei umas aspas, ou umas orelhas de burro, nas palavras do doutor.
Não é preciso ser filósofo para distinguir a pobreza absoluta daqueles
a quem tudo falta – comida, escola, medicamentos, trabalho, um tostão furado e
um lugar onde cair morto – da pobreza relativa daqueles para quem,
não obstante o que possam ter, não existe garantia de participação plena numa
sociedade na qual supostamente têm direitos iguais aos de todos os outros cidadãos
– uma casa decente, comida bastante, a melhor escola possível, saúde de acordo
com as necessidades, e o rendimento que chegue para garantir esses direitos e,
já agora, também o acesso a uns quantos bens materiais e imateriais que só aos
filisteus parecem luxo, mas são condição de dignidade. A exclusão social por
razões económicas, que limita direitos e reduz a qualidade de vida, ainda que
seja apenas por comparação com a qualidade de vida daqueles com quem se
partilha a nacionalidade, não merece, na filosofia moral deste católico
caridoso, pertencer à categoria de pobreza. É que, ainda por cima, em vez de
darem graças a Deus por poderem usufruir de oxigénio gratuito, estes “remediados”
(será que o professor os admite ao menos nesta condição?) têm o descaramento de
se queixar e “andam a fingir que são pobres”. Não serão pobres, mas são seguramente
mentirosos e mal-agradecidos.
Ao venturoso professor César pode faltar a imaginação para se ver na pele
dos outros, daí a falta de empatia. Para a lagarta da alface, o mundo é uma
alface. Mas o bem-aventurado professor das Neves leu o sermão da montanha e
sabe que é seu o reino dos céus, ao qual ascenderá em primeira classe, a dos
pobres em espírito.
2 comentários:
=) vou passar a usar os teus textos nas aulas. Posso?
Abraço!
Não achas que podem constituir uma ameaça para a saúde pública?
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