09 novembro, 2014

Tragicomédia com pratos voadores

Há uma enorme tensão dramática num diálogo entre alienados com armas na mão. A tensão é quase sempre sustentada pela ameaça iminente de um desfecho trágico. Nos filmes ou no teatro, esse dramatismo faz parte do prazer que o espetador procura. Na vida real, porém, talvez só alguma perversão explique por que vejo tantas vezes o canal parlamento. 


As cenas de teatro que este canal oferece são bastante repetitivas, mas nem por isso menos assustadoras. Um destes dias, por exemplo, atiravam-se entre as várias bancadas alguns números do orçamento para 2015 – o aumento do IMI, a fiscalidade dita verde, a suposta impossibilidade de baixar o IRS – e vários deputados dos partidos que se acostumaram a governar comportavam-se como se brincassem na praia com preciosos pratos de porcelana chinesa pensando que fossem frisbees. Talvez os pratos, que são a vida de todos nós, e para muitos já são apenas cacos, devessem merecer um pouco mais de cuidado. As erráticas trajetórias dos pratos voadores, nestas discussões, provocam-me sempre uma valente dor de cabeça. Às vezes chega a ser uma espécie de violenta enxaqueca. 


Mas se fechar bem os olhos, espetar um indicador em cada ouvido e esperar 20 ou 30 anos, talvez isto passe. Estou a contar com uma esperança de vida que não subtraia muito dinheiro à segurança social com o pagamento da minha reforma (meramente hipotética, ou até mirífica, eu sei), porque o meu principal papel, enquanto cidadão responsável de um país em permanente estado de carência, é garantir o desafogo orçamental suficiente para que os governos competentemente distribuam os proveitos de uma fiscalidade justa por quem realmente merece e precisa. E são muitos os que aparentemente precisam: cônjuges, filhos, sobrinhos, afilhados, amigos, compadres, correligionários, clientes e respetivas empresas de sucesso; bem como gente bem colocada para beneficiar cônjuges, filhos, sobrinhos, afilhados, amigos, compadres, correligionários, clientes e respetivas empresas de sucesso.

Como isto é tudo gente de bem, com famílias numerosas e amigos que também se reproduzem com alguma desenvoltura, não se pode sequer dizer que os beneficiários da governamental munificência sejam uma minoria negligenciável, nem que os seus interesses não devam merecer o nosso abnegado sacrifício. Espera-se de nós – deficitários na fina astúcia de ser amigos, familiares, correligionários, clientes, ou empreendedores especializados na arte de estabelecer relações nos círculos certos, ou em outras figuras da geometria política partidária privatizada (PPP) – que compreendamos o défice das contas públicas, o problema da dívida externa, o fundo de apoio à banca e o fundo de resolução do BES, funções quadráticas, antimatéria, as profecias do Bandarra e a importância dos brócolos numa dieta saudável. Será pedir muito?


Desconfio que foi o Bandarra quem profetizou este grande império de espíritos tansos e que foram os brócolos que obrigaram milhares de portugueses mais fraquinhos, e menos espirituosos, à emigração. Eu até gosto de brócolos e também gostaria de mudar de estado, mas por este andar, só se for para o estado gasoso. O que não seria improvável se eu fosse um banco. Afinal, conhecemos vários casos de bancos que num dia eram sólidos e no dia seguinte passaram diretamente a gasosos, perdendo aquela parte importante entre os dois estados que é a liquidez, num fenómeno de verdadeira sublimação. 


As cenas do teatro parlamentar não aspiram a nada de sublime. Os atores são quase todos toscos, sejam eles figurões ou figurantes, e muitos são apenas parte do trágico coro canino que dobra a cerviz perante a sombra do dono. O que eles representam percebe-se. Quem eles deviam representar demora a perceber.

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